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Nova lei 14.215/21 institui regime jurídico transitório para as parcerias entre o Poder Público e as OSCs durante a pandemia de covid-19

Com o novo regime transitório, as OSCs e os gestores públicos terão maior segurança jurídica no tocante às parcerias executadas e firmadas durante a crise sanitária do novo coronavírus.

15/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Após meses de intensa mobilização coletiva, as cerca de 780 mil organizações da sociedade civil (OSCs) existentes hoje no Brasil, segundo dados do IPEA de 20201, conquistaram um feito importante. Na sessão conjunta do Congresso Nacional, por maioria absoluta dos votos, foi derrubado o veto integral do Presidente Jair Bolsonaro, ao projeto de lei 4.113/20 que havia sigo anteriormente aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal2.  

De autoria do Deputado Federal Afonso Florence (PT/BA) e de diversos outros parlamentares que compõem a Frente Parlamentar Mista em Defesa das OSCs, a lei 14.215/21 estabeleceu um regime jurídico aplicável provisoriamente às parcerias firmadas entre o Poder Público e as entidades do chamado “Terceiro Setor”, durante o período de vigência do estado de calamidade pública em decorrência da pandemia da COVID-19.

A nova norma visa orientar gestores públicos e organizações sobre os ajustes necessários diante do referido cenário de restrições, gerando maior segurança jurídica às relações de parceria – termos de fomento, termos de colaboração e acordos de cooperação, firmados sob a égide da lei 13.019/14 (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil – MROSC), além de suas exceções, como contratos de gestão com organizações sociais, termos de parceria com organizações da sociedade civil de interesse público, convênios com organizações de saúde, termos de compromisso cultural previstos na Lei Cultura Viva (Lei 13.018/14), entre outros.

O texto prevê a possibilidade de suspensão parcial ou integral das parcerias em razão das medidas restritivas impostas pela pandemia, sem prejuízo do período de vigência do respectivo instrumento e sem necessidade de celebração de termo aditivo, bastando o apostilamento. Nesses casos, considerando que o planejamento da organização já havia sido formalizado – por meio do plano de trabalho aprovado em conjunto com o Poder Público – no momento da pactuação do instrumento, a norma garantiu o repasse de no mínimo 70% dos recursos previstos para a execução do projeto, evitando eventuais congelamentos de verbas pela Administração e interrupções de atividades e projetos em fase de implementação3. Por outro lado, também será possível a prorrogação de ofício, de acordo com o caso concreto, da vigência da parceria pelo período em que vigorarem as ações de isolamento social.

Ainda, a lei permite eventual complementação do objeto de parcerias já em vigor, por meio de termo aditivo, de modo a adequá-las ao novo contexto para combate dos efeitos direitos e indiretos da pandemia. Para tanto, deverá ser assegurada a existência de nexo de causalidade entre o “objeto complementar” e a política pública que originou a formalização da parceria; conformidade  das novas ações com os objetivos sociais estatutários de atuação da entidade parceira; celebração de acordo prévio entre os partícipes;  demonstração de viabilidade da execução; redefinição, quando necessária, de metas, resultados e prazos para prestação de contas; e preservação da categoria econômica da despesa decorrente do objeto inicial, vedada a substituição de despesas correntes por despesas de capital, ou vice-versa.

Também foram prorrogados em até 180 dias, contados do término da parceria, os prazos para prestação de contas, tanto parcial quanto final – regra essa também aplicável para a apresentação de contas, por parte da Administração Pública, aos Tribunais de Contas. Adicionalmente, a norma recém-aprovada garantiu que o descumprimento de metas e resultados inicialmente previstos não poderá ser utilizado como fundamento de futura irregularidade das contas da entidade – quando a inobservância em questão decorrer das medidas de contingenciamento da pandemia. No futuro, por ocasião das análises das prestações de contas referentes a este período, o dispositivo em questão será muito importante para evitar glosas indevidas de despesas efetuadas pelas entidades privadas sem fins lucrativos.

Ademais, a lei 14.215/21 suspendeu a exigibilidade de devolução ao erário de recursos relativos a prestações de contas de termos de fomento, termos de colaboração, termos de parceria, contratos de gestão, contratos de repasse e de convênios celebrados pela Administração Pública, enquanto durarem as medidas restritivas à COVID-19 estabelecidas por meio de norma federal, estadual, distrital ou municipal. Nesse mesmo sentido, a nova lei autoriza o parcelamento do débito até o limite de 96 parcelas mensais, iguais e consecutivas. Para parcerias firmadas com base no MROSC, o parcelamento poderá ser substituído pela realização de ações compensatórias, conforme previsão legal já existente, desde que não tenha havido dolo ou fraude e que não seja caso de restituição integral dos recursos.    

Em relação às parcerias emergenciais temporárias entre a Administração Pública e as organizações da sociedade civil, cujo objeto se relacione ao combate dos efeitos diretos e indiretos da pandemia do novo coronavírus ou à adoção de medidas correlatas, poderá ser dispensada a realização de chamamento público, com preferência para as organizações já mantenedoras de parcerias com a Administração ou que sejam por ela credenciadas. Para estas parcerias, poderão ser postergadas a apresentação dos documentos exigidos pela legislação para habilitação da entidade, bem como serão simplificados os procedimentos preliminares à celebração do instrumento. Já o plano de trabalho poderá conter a descrição das metas, indicadores e resultados do projeto de forma sintética e objetiva. A norma estendeu a hipótese de dispensa de chamamento público já prevista no inciso II do art. 30 da lei 13.019/14, para demais tipos de parcerias com entidades privadas sem fins lucrativos quando voltadas exclusivamente ao combate da COVID-19 e seus efeitos.

Sobretudo nos municípios, muitas das políticas públicas que envolvem serviços públicos relevantes, especialmente na área socioassistencial, são ofertados em parceria com a Administração Pública por organizações da sociedade civil que cultivam proximidade no território com a população atendida. Desde o primeiro momento do alastramento do novo coronavírus, muitas inciativas de apoio à grupos mais vulneráveis foram feitas pelas organizações e a potencialidade dos entes federados em geral contarem com esta rede para o combate aos efeitos diretos e indiretos da pandemia é reconhecida pela nova lei. As ações desenvolvidas pelas organizações da sociedade civil em parceria com o Poder Público em todo o território nacional garantem o devido acesso de parte substancial da população brasileira aos equipamentos públicos por elas geridos e aos projetos e atividades por elas executadas.

Ressalta-se que as OSCs realizam o atendimento de pessoas com deficiência, de idosos e de mulheres vítimas de violência doméstica, promovem o acolhimento de pessoas em situação de rua e de crianças e adolescentes em risco, bem como proporcionam o tratamento de doenças raras. são fundamentais não apenas para a assistência social, mas também para a promoção e a defesa dos direitos humanos, da saúde, da educação, da cultura, da ciência e tecnologia, da moradia, entre outras áreas que ilustram sua importância para o regime democrático e para as políticas públicas que efetivam as condições básicas de dignidade de parcela vulnerável da população.

Esta lei é fruto de ampla articulação promovida pela Plataforma por um Novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (“Plataforma MROSC”) – representativa de mais de 1.600 signatários, dentre movimentos sociais, associações de base comunitária, institutos, fundações privadas e cooperativas da economia solidária –, que identificou sua necessidade4 e atuou durante todo o processo, desde a formulação até a aprovação final, tendo publicado Nota Técnica sobre o PL 41135 em apoio ao PL, participado de audiência pública na Comissão Temporária do Covid-19 do Senado Federal6, e veiculado a Nota Técnica pela derrubada do veto7 pelo Congresso, rebatendo os motivos elencados pelo Presidente da República.  Em conjunto com a Frente Parlamentar Mista em Defesa das OSC's também realizou ato público virtual pela derrubada do veto8.

Registre-se a atuação da Associação Nacional dos Procuradores Municipais (ANPM), que divulgou nota9 manifestando o seu apoio à aprovação do PL (antes da apreciação do veto pelo Congresso Nacional), sobretudo porque a pandemia “evidenciou a importância das ONGs para a sustentabilidade das cidades brasileiras, considerando que é na realidade local que se percebe diretamente os problemas enfrentados pelos cidadãos”; e a Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB de São Paulo que também manifestou sua concordância ao PL, encaminhando ofício10 ao Presidente do Senado durante a tramitação do projeto de lei; entre outros atores.

Vale ainda mencionar a aprovação da lei 14.065/20, que justamente “autorizou pagamentos antecipados nas licitações e contratos, adequou limites de dispensa e ampliou o uso do Regime Diferenciado de Contratações Públicas durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo decreto legislativo 6, de 20 de março de 2020”. Embora tenha expressamente ampliado sua aplicação ao MROSC, tal previsão carece de qualquer eficácia, já que a lei de licitações não se aplica11 às parcerias entre a Administração Pública e as OSCs12.

Já tendo sido aprovado um regime jurídico transitório aplicável às licitações durante o estado de calamidade pública em virtude da pandemia de COVID-19, restava conferir, à luz do princípio da isonomia entre as pessoas jurídicas, tratamento semelhante às OSCs e aos respectivos instrumentos de parceria. Não há qualquer motivo, proporcional e razoável, para realizar tal distinção entre pessoas jurídicas de direito privado, conferindo tratamento equacionado às necessidades das empresas com finalidades lucrativas e não fazendo o mesmo neste momento emergencial para aquelas sem finalidades lucrativas, quando ambas igualmente contratualizam com a Administração Pública. Em nossa visão, configura violação ao princípio da igualdade, mas, sobretudo, demonstra o desinteresse pelo campo da sociedade civil organizada no Brasil.

Por fim, é importante esclarecer que a nova lei não fere a Lei de Responsabilidade Fiscal. Inclusive, ao referendar a medida cautelar concedida na Ação Direta de Inconstitucionalidade 635713, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que “o excepcional afastamento da exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias, durante o estado de calamidade pública e para fins exclusivos de combate integral da pandemia de Covid-19, não conflita com a prudência fiscal e o equilíbrio orçamentário intertemporal consagrados pela LRF”.

Veio em boa hora a derrubada do veto presidencial ao PL 4.113/20 pelo Congresso Nacional e a promulgação da lei 14.215/21, sobretudo em vista do trabalho de relevante interesse público desenvolvido pelas organizações da sociedade civil e da situação de especial vulnerabilidade do público por elas atendido, agravada pela pandemia da COVID-19. Já havíamos chamado a atenção para este tema em publicação recente do Núcleo de Estudos Avançados do Terceiro Setor da PUC/SP, que apontou os debates regulatórios principais das organizações da sociedade civil durante a pandemia14. Com o novo regime transitório, as OSCs e os gestores públicos terão maior segurança jurídica no tocante às parcerias executadas e firmadas durante a crise sanitária do novo coronavírus.

_____________

1 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. ESCUDERO, Camila; RIBEIRO, Ana Camila; ANDRADE, Pedro; e MELLO, Janine. Perfil das organizações sociais e organizações da sociedade civil de interesse público em atividade no Brasil. RJ, 2020. Em: clique aqui. Acesso em: 11/10/21.

2 Agência Senado, 27/09/2021, Congresso derruba veto e garante repasses federais para terceiro setor. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 11/10/2021.

3 Na ausência de um regramento próprio, o tema vinha sendo judicializado como pudemos sistematizar em artigo anteriormente publicado. LOPES, Laís de Figueirêdo.; STORTO, Paula Raccanello.; ANDRADE, Juliana Brandão. A manutenção de repasses de recursos públicos para OSC durante a pandemia da covid-19. Migalhas. São Paulo. 10 jul. 2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 11/10/2021.

4 A Plataforma por um novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil lançou em junho de 2020 a publicação “MROSC e Covid-19: Manual Prático de Apoio às Organizações da Sociedade Civil” com o objetivo de trazer um roteiro para apoiar os processos de tomada de decisão das OSC nas relações de parceria firmadas com o poder público com base na Lei nº. 13.019/2014 – MROSC nesse momento de pandemia da Covid-19, com informações relevantes em cada uma das etapas de desenvolvimento da relação de parceria: planejamento, seleção e celebração, execução, monitoramento e prestação de contas. Logo após identificar a necessidade da proposição legislativa, passou a atuar junto com a Frente Parlamentar Mista em Defesa das OSC's na elaboração do Projeto de Lei nº 4.113/2020. O Manual está disponível em clique aqui. Acesso em: 11/10/2021.

5 Nota Técnica  sobre o Projeto de Lei nº 4.113/2020, de 29/09/2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 11/10/2021.

6 Presidida pelo Senador Confúcio Moura (MDB/RO), a Comissão Temporária do Covid-19 do Senado Federal realizou audiência pública sobre debate a situação das organizações da sociedade civil durante a pandemia e o PL 4113/2020, que trata das parcerias celebradas pela administração pública; a situação das comunidades menos favorecidas e os resultados das mobilizações sociais para enfrentamento da pandemia, no dia 14 de junho de 2021. Vídeo disponível em clique aqui. Acesso em: 11/10/2021.

7 Nota Técnica pela derrubada do veto ao Projeto de Lei 4.113/20, de 28/08/21. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 11/10/2021.

8 Notícia sobre o ato virtual pela derrubada do veto presidencial ao PL 4113 pode ser encontrada no link clique aqui. Acesso em: 11/10/2021.

9 ANPM divulga Nota de Apoio ao PL 4113/2020, 21/09/2021. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 11/10/2021.

10 Jornal da Advocacia OAB/SP de 02/07/2021. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 11/10/2021.

11 Cf. Art. 84 do MROSC: “Não se aplica às parcerias regidas por esta Lei o disposto na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993”.

12 Sobre a inaplicabilidade da Lei de Licitações às parcerias com OSCs, ver mais em: CALIXTO, Clarice; CARRIJO, Cesar Dutra; e LOPES, Laís de Figueirêdo. Nova lei de licitações não se aplica a parcerias com organizações da sociedade civil. Jota. São Paulo. 20 de maio de 2021. 

13 Disponível em: clique aqui. Acesso em: 11/10/2021.

14 LOPES, Laís de Figueirêdo; STORTO, Paula Raccanello; REICHER, Stella Camlot. Debates regulatórios: assembleias virtuais, tributação das doações e parcerias das organizações da sociedade civil com a Administração Pública durante a pandemia da COVID-19. In: ALEXANDRE, Maria de Fátima; e PADULA, Roberto Sanches (Coord.) Gestão de Organizações da Sociedade Civil em Tempos de Crise e Pandemia. São Paulo, Tiki Books: PUC-SP/PIPEq. 2021, pp. 119 a 146. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 11/10/2021.

Laís de Figueirêdo Lopes
Advogada, Doutoranda em Direito Público pela Universidade de Coimbra, Mestre em Direitos Humanos pela PUC/SP e Sócia de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados. Integra o Conselho Consultivo da Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e a Coordenação da Frente Jurídica da Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva. Foi Conselheira do Conade - Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência representando o Conselho Federal da OAB, de 2006 a 2011, e Ex-Assessora Especial do Ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, de 2011 a 2016. Participou do comitê ad hoc de elaboração da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU de 2005 a 2006, e do processo de ratificação no Brasil de 2007 a 2009.

Beatriz Lemos Brandão Schirra
Advogada de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados. Especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. Bacharel em Direito pela PUC/SP.

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