Nosso Estado brasileiro é, realmente, ou deveria ser, um Estado laico. Um Estado laico não significa, contudo, um Estado ateu. Não somos um Estado com uma religião oficial, como na época da nossa primeira Constituição do Império, em 1824, em que a religião do país era o catolicismo. Naquele momento, as pessoas de outras religiões podiam celebrar seus cultos e suas crenças, com liberdade, porém de forma reservada, limitada. Hoje, as diversas religiões devem coexistir em harmonia, com respeito e tolerância e compreensão. Daí a ideia do pluralismo religioso e de crença. Neste espaço, por causa do Dia da Santa Aparecida, farei breves considerações sobre a celebração do dia, bem como, por outro lado, sobre a laicidade do Estado brasileiro. Em frente!
Na ocasião em que surgiu a imagem da santa destruída na rede de 3 pescadores, em 1717, o Brasil, nosso país, nossa nação ainda se encontrava distante do que é hoje. Nesta época, a colônia portuguesa iniciava a construção de sua identidade. Para tanto, necessitava, inclusive, de uma santa.
Nesse sentido, o brasileiro precisava de fato de uma santa, que atendesse às necessidades dos fiéis. Daí a crença religiosa e, mais importante, da fé. Daí se fazer longas passeatas e cumprir promessas. Importa também destacar o fato de se construir, no Brasil, no século 20, uma basílica em sua homenagem, o segundo maior templo católico do mundo.
Pode-se dizer que há nessas relações a combinação entre fé e paixão. E também uma relação de identidade que nos possibilita compreender a santa como um símbolo genuinamente nacional, o que permite representar a unidade do país.
Isto porque até aqueles que não se identificam com a santa, por assuntos religiosos, têm ciência de que a imagem religiosa se trata de um retrato do Brasil.
Daí ser provável, a partir desta combinação entre fé, paixão e identidade, compreender a santa Aparecida, na perspectiva do primeiro símbolo de fato nacional, imagem mais antiga da história brasileira, que representa a unidade do nosso país.
Realmente, levou tempo para deixar de ser um evento local e se tornar um fenômeno nacional. Como disse, mesmo aqueles que não se simpatizam com a questão religiosa da santa, reconhecem que, diante de tanta simplicidade, na verdade, enxergam um rico pedaço do Brasil.
Por outro olhar, a laicidade do século XXI deve possibilitar a articulação da diversidade cultural e da unidade do vínculo político e social, do mesmo modo que as laicidades da história tiveram que saber combinar as diversidades religiosas e a unidade deste vínculo.
Neste ponto, cabe trazer a Declaração Universal da Laicidade no Século XXI. Em seu Preâmbulo dispõe:
“Considerando a crescente diversidade religiosa e moral no seio das sociedades atuais e os desafios encontrados pelos Estados modernos para favorecer a convivência harmoniosa; considerando também a necessidade de respeitar a pluralidade das convicções religiosa, atéias, agnósticas, filosóficas e a obrigação de favorecer, por diversos meios, a decisão democrática pacífica; e, finalmente, considerando a crescente sensibilidade dos indivíduos e dos povos com relação às liberdades e aos direitos fundamentais e aos direitos fundamentais, incentivando os Estados a buscarem o equilíbrio entre os princípios essenciais que favorecem o respeito pela diversidade e a integração de todos os cidadãos com a esfera pública, nós, universitários, acadêmicos e cidadãos de diferentes países, propomos a reflexão de cada um e o debate público, sobre a seguinte declaração.” [Declaração apresentada por Jean Baubérot (França), Micheline Milot (Canadá) e Roberto Blancarte (México) no Senado Francês, em 9 de dezembro de 2005, por ocasião das comemorações do centenário da separação Estado-Igrejas na França.]
Igualmente, cumpre mencionar também o Preâmbulo de nossa Constituição brasileira:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.” (grifo nosso)
Nosso Preâmbulo, não tem força normativa. Porém, possui relevante impacto social, servindo como guia, como bússola, para orientar as relações sociais em nosso país. O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) já se posicionou sobre o tema, em referência ao Preâmbulo da Constituição do Estado do Acre, em que não havia a previsão “sob a proteção de Deus”. Decidiu-se, na ocasião, que o Preâmbulo não serve como parâmetro para a análise da constitucionalidade das leis, nem mesmo, poder normativo. Porém, como dito, tem importante valor simbólico da nação brasileira, como norte de suas relações.
Finalmente, após a leitura dos diplomas normativos e de todo o exposto, constatamos:
1) Deve prevalecer a liberdade de crença e religião no Estado democrático brasileiro, com respeito, tolerância e compreensão, tendo em vista o pluralismo religioso e a convivência pacífica e harmoniosa entre os diferentes credos;
2) Estado laico não é Estado ateu. O Estado brasileiro pode e deve coexistir, em relações sociais de amparo aos menos favorecidos, para a redução da pobreza, da miséria, e para a promoção da alimentação, moradia, saúde e outras medidas, com o apoio das organizações religiosas, inclusive, da própria Igreja Católica, sem prejuízo, no entanto, de outras religiões, como o Judaísmo, o Espiritismo, o Budismo, dentre outras, como as religiões dos Evangélicos.
3) A palavra de ordem é: Coexistência. Um mundo e não só um país. Um sentimento e não só uma nação. Um fio condutor que ligue e conecte todas as pessoas, para o bem comum, para o bem-estar, para um fim maior. Coexistir todas e todos de diferentes crenças e religiões, lembrando que, no final, as religiões levam, por diferentes caminhos, para o mesmo destino: a prática cotidiana do bem e o ensino de valores que enaltecem a alma e balizam as relações humanas.