“Quem fiscaliza os fiscais?” já perguntava o poeta romano Juvenal em suas “Sátiras”.
Essa preocupação tem afligido nosso Poder Legislativo, por entender que o maior e mais eficaz “fiscal” da cidadania brasileira é o Ministério Público. Fiscalizando a cidadania, o Ministério Público se envolve em embates contra todos, principalmente os poderosos – leia-se: os milionários e os políticos. Os parlamentares – não a maioria, espero – usam essa desculpa de querer fiscalizar o fiscal (MP) para, em verdade, manietá-lo.
Em análise a esse respeito, no livro “Revisitando uma história sem fim: o Ministério Público em tempos de crise”1, busquei, com base em minha experiência como membro da Instituição2 e nestes últimos vinte e cinco anos de exercício da advocacia, fazer uma séria advertência sobre o futuro da Instituição.
Além das agressões até então já sofridas, como as catorze modificações do texto constitucional original (EC 45/04), dentre as quais aquela que criou o Conselho Nacional do Ministério Público, que me pareceu a mais grave interferência em sua autonomia e independência.3
Encerrando esse trecho de minha análise, escrevi:
“Mais não será preciso dizer. Apenas prognosticar o que parece evidente – mais restrições virão, com certeza, se o Ministério Público não souber como reagir – e reação pacífica, como reagiu Gandhi ao imperialismo inglês”.4
Infelizmente, não demorou muito – aí está a abominável PEC 5/20, de autoria do Deputado Federal Paulo Teixeira e quase inteiramente reformulada pelo Relator Paulo Dantas, da CCJ.
1. Sistema de controle sobre o Ministério Público criado pela PEC
Alterando a composição do CNMP, a famigerada PEC 5/20, em verdade busca estabelecer um controle sobre o próprio órgão e, em decorrência, sobre todo o Ministério Público do Brasil.
O inciso VI do art.130-A, vigente, foi mantido e apenas desdobrado em dois incisos (VIII e IX) – a indicação dois cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada, um pela Câmara e outro pelo Senado.
Incluiu-se – no inciso X da PEC – mais um membro a ser escolhido, alternadamente pela Câmara e pelo Senado, dentre membros do Ministério Público Estaduais ou da União (que engloba os Ministérios Públicos Federal, do Trabalho, Militar e do Distrito Federal e Territórios), desde que tenham sido Procuradores de Justiça ou Geral-Geral de um dos ramos do Ministério Público da União.
Também foi incluído um Ministro ou Juiz, indicado pelo STF e eleito, a cada biênio e alternadamente, pelo Senado e pela Câmara (inciso XI).
Portanto, de dois integrantes, o Poder Legislativo passou a influir diretamente na escolha de quatro deles.
Mas, esse não é o pior do sistema imposto.
O que é muito mais grave é a criação de um Corregedor Nacional e de um Vice-Presidente – os quais, no entanto, somente poderão ser aqueles que foram indicados, alternativamente, pelo Senado e pela Câmara, entre os que foram Procuradores Gerais (regra do inciso X da PEC, mencionado acima).
Como o Presidente nato do CNMP é o Procurador-Geral da República, a PEC se apressa em prever as atribuições do Vice-Presidente e do Corregedor (que serão da confiança do Senado e da Câmara): i) receber reclamações e denúncias, de qualquer interessado, relativas aos membros do Ministério Público e dos seus serviços auxiliares; II) exercer funções executivas do Conselho, de inspeção e correição geral; III) requisitar e designar membros do Ministério Público, delegando-lhes funções, e requisitar servidores de órgãos do Ministério Público.
Em suma, enfeixam os maiores poderes e deixam o Presidente do Conselho na burocrática, exclusiva e formal função de presidir as sessões do órgão.
Dotados de poder de execução e de recrutar auxiliares, delegando-lhes funções, na prática o CNMP ficará em mãos do Vice-Presidente e do Corregedor Nacional, que atuarão como longa manus do Senado e da Câmara!
2. Um comando somente dos mais velhos
Geralmente os mais novos membros do Ministério Público são os mais ativos e contra eles se dirige a ira da PEC demolidora.
Nessa esteira, dispõe ela que somente poderão integrar o CNMP aqueles integrantes da Instituição com mais de 35 anos de idade e mais de 10 anos de carreira (§ 3º-D)
Esses mesmos requisitos devem ser preenchidos pelos candidatos a qualquer órgão da Administração Superior do Ministério Público (Procuradoria-Geral, Corregedoria-Geral, Conselho Superior do Ministério Público e Órgão Especial do Colégio de Procuradores) e para os cargos de confiança (§ 3º E).
O revide é evidente e injusto.
3 – Competência revisional de amplíssimo espectro
A revisão (ex officio ou não) de processos disciplinares já era prevista – mas agora a revisão pode ser de mérito das decisões de execução dos Conselhos Superiores do Ministério Público – quando negarem vigência ou contrariarem a Constituição Federal, tratado, lei ou decisões normativas do CNMP.
A norma, em primeiro lugar, contraria a própria PEC, que estabelece as competências do CNMP, dentre as quais não há revisão de atos de execução.
Vai mais longe: cria, sub-repticiamente, uma decisão normativa do CNMP!
Fere, portanto – e mortalmente – o princípio da independência funcional.
O Conselho Superior do Ministério Público tem funções administrativas e funções de execução – quando exerce a atividade-fim da Instituição. No exercício dessa última atribuição, perdeu, o Conselho sua autonomia funcional.
Não é tudo. No § 3º - F, a PEC estabelece a competência do CNMP para, mediante procedimentos não disciplinares “rever ou desconstituir atos que constituam violação de dever funcional dos membros, após a devida apuração em procedimento disciplinar, ou em procedimento próprio de controle, quando se observar a utilização do cargo com o objetivo de se interferir na ordem pública, na ordem política, na organização interna e na independência das instituições e dos órgãos constitucionais”.
Está aí um claro e solar revide aos acontecimentos que envolveram a chamada “Operação Lava-Jato”!
Há, porém, na medida, um erro palmar. Na verdade, uma “desmedida”: não se pode impor a toda uma Instituição peias e amarras absolutas, pelo erro de uns poucos de seus integrantes. O remédio, aqui, mata o doente!
4 – Uma nova lei Orgânica Nacional?
A PEC infeliz cuida de temas próprios de uma lei Orgânica. Como os parlamentares não dispõe de iniciativa dessa lei, cuidam de formatá-la por meio de alteração das normas constitucionais.
Verdade!
A desventurada PEC altera a composição dos Conselhos Superiores dos Ministérios Públicos, presidido pelo Procurador-Geral de Justiça, devendo contar com um terço de sua composição (cujo número deixa em aberto) entre membros de cada nível, entrância ou categoria da carreira e dois terços escolhidos diretamente pelo Procurador-Geral no último nível da carreira, para investidura coincidente com a do Procurador-Geral, permitida a recondução. O primeiro terço é eleito para mandato de dois anos.
Além de excluir o Corregedor-Geral como membro nato do Conselho, ao estabelecer escolha direta pelo Procurador-Geral de Justiça de 2/3 dos membros, a PEC contraria o espírito democrático do Ministério Público, que tradicionalmente prevê eleição para todos os cargos da administração superior. Pior: o Procurador-Geral sempre terá a maioria no Conselho e, pois, a eleição prevista é uma tremenda farsa!
A PEC da farsa é realmente inacreditável!
5) Vedação de exercício de atividade político-partidária
A fim de deixar bem claro o seu espírito revanchista, a PEC altera a vedação sobre exercício da atividade político-partidária – que continua vedada – mas agora com acréscimo: fica vedado, também, “interferir na ordem política e nas instituições constitucionais com finalidade exclusivamente política”.
O subjetivismo ínsito do conceito “interferir” e a exegese do que seja “finalidade exclusivamente política” são portas abertas para ataques ao Ministério Público, os mais injustos, desclassificados e inadequados que se possa imaginar.
É uma Espada de Dâmocles posta sobre a cabeça dos milhares de membros do Ministério Público Brasileiro.
6) Um Código Nacional de Ética e Disciplina do Ministério Público?
Trata-se do gran finale!
Coroando a peça da PEC estatuiu ela o prazo de 120 dias após a sua promulgação para que o CNMP encaminhe ao Congresso Nacional projeto do Código Nacional de Ética e Disciplina do Ministério Público Brasileiro, cuja menor sanção é a pena de advertência e estabelece prazos de prescrição das sanções disciplinares.
Essa PEC, em verdade, causaria espanto até para falecida Velhinha de Taubaté!5
1 Obra publicada em 2020, pela Editora Contracorrente.
2 Participei ativamente da Constituinte de 88, como Presidente da então Confederação Nacional do Ministério Público – CONAMP. Fiz a primeira audiência pública da Constituinte, que foi exatamente sobre o Ministério Público. Para maiores detalhes, v. “Ministério Público – 25 anos de novo perfil constitucional – Criação de uma identidade”, da Editora Malheiros (2013), obra que escrevi com Walter Paulo Sabella e José Emmanuel Burle Filho. Ainda: “Uma História Sem Fim”, de Joaquim Cabral de Mello Neto, publicado pela CONAMP.
3 Obra citada, pág. 71 e seguintes.
4 Obra citada, p. 73.
5 Personagem, como se sabe, criada por Luís Fernando Veríssimo, que dizia ser ela a “última pessoa que ainda acreditava no governo”. Veríssimo afirmava que na Câmara e no Senado sempre os parlamentares imaginavam como ela iria responder. Infelizmente, faleceu em 25 de agosto de 2005, por decepção com o quadro político brasileiro. Uma pena!