Migalhas de Peso

A falibilidade do conceito de direito baseado estritamente na norma positivada: uma análise sob a ótica do juiz hércules

Reflexões em torno do papel do juiz - ou sobre até que ponto se estende e se legitima a discricionariedade da sua atuação - nos hard cases, quando o ordenamento jurídico positivado não dispõe previamente, em abstrato, de uma alternativa de resolução do caso em concreto à luz da lei.

8/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Introdução

Quando o sistema jurídico é contemplado com a consumação da sua função mais precípua, que é o proferimento de decisões judiciais – principalmente as mais polêmicas, relativas a casos complexos, que são naturalmente difíceis de serem proferidas –, os operadores do direito, a comunidade jurídica em geral ou até mesmo os jurisdicionados mais leigos podem se remeter, invariavelmente, a algumas indagações triviais acerca de tal acontecimento: será que, diante do contexto jurídico (formal e material) e social a que estão expostos, os magistrados têm a obrigação – ou estão, por qualquer motivo, vinculados – a decidir tais casos de um determinado modo específico, de acordo com um “padrão de julgamento”?

Isto é, será que, ao proferirem os seus julgados, estão os juízes conectados a algum padrão – jurídico, moral, pessoal ou psicológico – que venha a lhes influenciar a decidir de determinada maneira, a fim de que seja estabelecida, para o caso concreto, o modelo de decisão justa e acertada? Ou, por outro lado, será que os julgadores apenas se incumbem, de uma forma mais silogística ou mecanicista, em apenas aplicar a lei ao caso concreto, como preveem as balizas mais clássicas do positivismo acrítico?

Os questionamentos em torno do papel do juiz, ou sobre até que ponto se estende e se legitima a discricionariedade da sua atuação – especificamente no tocante ao ato de decidir – são temas recorrentes e habituais no âmbito da teoria do direito, pois estão intrinsecamente relacionados com a pergunta “o que é o direito?”. Afinal, existe direito, ou mesmo direitos e deveres jurídicos, que sejam anteriores ao proferimento da decisão judicial e que vinculem juridicamente ou moralmente os juízes?

Discorrer sobre a relação entre direito e outros ramos das Ciências Sociais não é tarefa simples. Exige uma investigação epistemológica específica, além da coragem de enfrentar todo um preconceito que, ainda hoje, rodeia abordagens dessa natureza, de caráter interdisciplinar. Ainda assim, é desafio que merece ser aprofundado e levado adiante, tendo em vista os importantes avanços que tal abordagem permite, mormente em face do indício de que, na atualidade, o elemento jurídico constitui apenas parte dos motivos que compõem o rol das circunstâncias determinantes da decisão judicial.  

2. O método de colocação da decisão judicial frente aos hard cases

O conceito atribuído aos juízes relaciona-se, historicamente, com os mitos da imparcialidade, da neutralidade e à subordinação aos termos estritos da lei. Tomando tais referenciais como ponto de partida, de imediato pode-se proceder a sua transferência também para o resultado da principal atividade judicante, que é o proferimento da decisão judicial.

Portanto, magistrados e decisões judiciais encontrar-se-iam, teoricamente, submetidos e sincronizados aos mesmos parâmetros qualitativos de suas naturezas precípuas, que são, também, por demais caracterizadores da essência peculiar decantada, como um todo, sobre o amplo conceito de justiça. Tais abordagens conceituais, devidamente alocadas, é claro, dentro de um vertente puramente dogmático-filosófico, elucidam a aura da seriedade, sobriedade e confiabilidade no desiderato jurisdicional, ao fixar a lei, como premissa de origem, à condição de pilar único das decisões judiciais, estando estas, pois, devidamente amparadas por critérios objetivos de uma cientificidade eminentemente positivista.1

As estruturas clássicas do positivismo formal concebiam o ordenamento jurídico – então alicerçado na premissa da Constituição normativa – como um sistema hígido, completo e absoluto, sem espaço para contradições, ambiguidades, incongruências ou aberturas de qualquer natureza, onde no qual o intérprete, na aplicação do Direito, deveria nortear-se de forma metódica, sempre pelo caminho da via silogística. Assim, estando o sistema positivista pautado em bases racionais e lógicas, havia a previsão, de forma sistemática, de utilização de uma subsunção que dispensava toda apreciação dos fins e valores, sendo, portanto, a sua mais alta virtude metodológica eliminar qualquer influência do intérprete sobre o resultado da interpretação.2

Esse modelo, no entanto, começou a demonstrar sinais de ruína a partir da Segunda Grande Guerra. Naquele momento evidenciou-se a derrocada da rigidez estruturada pelo sistema normativo positivista, ante a consternação acerca dos excessos praticados em nome da lei e da pureza do sistema.

A postura ativa assumida pelos magistrados, aliada à superação do modelo formalista então engendrado pelo positivismo acrítico, propiciou aos julgadores um alargamento do rol de fatores que, no ato de decidir, podem ser racionalizados e ponderados, a fim de que o julgamento a ser prolatado encontre razão de ser não só na lei, mas também, principalmente, possa manter-se sintonizado aos fatores reais – as vezes reprimidos – que encontram-se latentes na sociedade.

Com efeito, sob a perspectiva sociológica, considera-se que o ato de decidir está diretamente informado por elementos externos à lei e aos códigos, assim como pelos valores e referenciais que cada julgador carrega consigo, quer sejam familiares, educacionais, econômicos, religiosos, políticos, ideológicos, etc. São motivações tão particulares que influenciam na simpatia ou não por uma parte, na valoração favorável ou não de um determinado elemento de prova, na aceitação ou não de um argumento, na inclinação por um e não outro motivo apresentado nos autos.3

No entanto, nesta quadra cumpre atentar especialmente para os chamados casos difíceis (hard cases).  Estes seriam casos judiciais para os quais não exista uma lei específica, ou haja mais de uma solução possível, principalmente em razão das dificuldades que lhes são inerentes, as quais poderão estar associadas a problemas no sistema jurídico, a regras inconsistentes ou a problemas empíricos ou semânticos da norma4. Por outro lado, podem sobrelevar-se, também, em razão de a norma aplicável ser de “textura aberta”, o que, de acordo com Hart5, faz com que as regras apresentem sempre a possibilidade da existência de uma “região de nebulosidade”, ou uma ”penumbra de dúvida”, onde não se sabe com clareza se a regra deve ser aplicada ou não.

Nessas hipóteses, alocadas na zona marginal das regras e nos campos que a teoria dos precedentes deixa abertos, os tribunais desempenham uma função produtora de regras, estando os julgadores, portanto, legitimados a atuar de uma forma mais expansiva, sem que apenas as regras positivadas sejam levadas em consideração.

Por isso, não é correto que a pergunta “o que é Direito?” possa ser respondida examinando tão somente as leis e os Códigos, pois o verdadeiramente importante é o Direito real, ou seja, o Direito em ação que se manifesta continuamente por meio dos operadores jurídicos e singularmente dos juízes.6

Este ponto de partida não conduz, portanto, à defesa de elementos de objetividade no raciocínio judicial, senão ao reconhecimento de que, de fato, os tribunais obedecem geralmente a prescrições da legislatura. Essa obediência habitual é o que chama Ross7 “consciência jurídica formal”, mas que no trabalho interpretativo se conjuga necessariamente com a “consciência jurídica material”, isto é, com o conjunto de valores, ideais e tradições culturais que também influem no átimo da prolação do julgado. Trata-se, pois, de uma interpretação construtiva, que é, ao mesmo tempo, conhecimento e reconhecimento, passividade e atividade.

3. O arquétipo do Juiz Hércules em meio ao cenário pós-positivista

Efetivamente, os estudos mais vanguardistas da filosofia do direito – encampados especialmente pelos estudiosos alinhados à escola pós-positivista – têm cada vez mais acatado a ideia de que elementos exteriores à norma possam se conjugar e interferir na decisão a ser proferida, o que implica na possibilidade de a lei não ser o parâmetro necessariamente a ser seguido para resolução do caso concreto.

Por outro lado, o ponto nevrálgico desse processo de conjugação entre a norma e os “fatores externos” reside basicamente com relação aos casos difíceis, já que, teoricamente, a metódica antiga, fundada na simples subsunção do fato à norma, satisfaz a contento a resolução dos casos de menor complexidade.

Nessa discussão em torno de casos difíceis se sobressai Ronald Dworkin, que, desde os primeiros trabalhos teóricos, tem procurado oferecer uma metodologia viável à justificação da decisão judicial e à compreensão sobre como os juízes decidem. 

Em sua opinião8, os juízes, quando se deparam com casos dessa natureza, não decidem conforme as regras. Em verdade, estas seriam inapropriadas a oferecer solução, pois funcionam segundo o padrão do “tudo ou nada”, sem abertura para as circunstâncias que envolvem um caso difícil. Além do mais, casos difíceis pressupõem atividade interpretativa e esta conduz o juiz à criação do direito.

Contudo, a realidade jurídica oferece inúmeras dificuldades ao juiz. Para que ele se desvencilhe, por exemplo, da condição paradoxal de ter de decidir e de não dispor de parâmetros legais, Dworkin propõe que sejam utilizados argumentos de princípios.

Segundo Cláudia Regina da Silva9, a utilização desse tipo de recurso não só favoreceria a identificação e delimitação do direito a ser aplicado no caso concreto, mediante a proteção de direitos individuais, como também ofereceria resposta àquilo que os positivistas não responderam: ao papel exercido pela moralidade (e pelos valores) do juiz na elaboração da decisão judicial. E neste sentido, Dworkin entende que os juízes não só podem como devem realizar – e, de fato, realizam – investidas na esfera do debate moral, a fim de decidir os casos concretos. Em outras palavras, Dworkin reage à separação entre lei e moral defendida pelos positivistas, e em resposta assevera que a história e a moralidade unem-se na criação dos direitos dos indivíduos.10

À necessidade de melhor explicitação de sua teoria, Dworkin utilizará dois recursos: um modelo de julgador ideal, chamado Hércules, e um modelo interpretativo a ser empregado por esse juiz na aplicação das leis e princípios ao caso concreto.11

O juiz Hércules, enquanto ser utópico e polivalente, estaria familiarizado tanto com as concepções jurídicas dominantes no povo como com os resultados das ciências afins, também devendo contar com uma sólida cultura econômica e mercantil, compreender as peculiaridades das profissões artísticas e, inclusive, estar em dia com todos os truques do criminoso profissional. Onisciente e sobre-humano, conhece a sua falta de legitimidade para criar normas e sabe que as partes no conflito pretendem o amparo de seu Direito, de um Direito próprio e preexistente.12

Se aonde não chegam as normas institucionais explícitas ou onde estas não proporcionam uma resposta adequada, chega à moral; e, se essa moral não pode considerar simultaneamente algo como justo ou injusto, é óbvio que um juiz que cumpra o método hercúleo valer-se-á sempre de um critério externo para resolver cada caso, entendendo por critério externo aquele que não é criado pelo juiz, mas que é anterior à sua atuação e conhecido pelos que estão sendo julgados.13

Parece que tanta sabedoria, unida ao juramento, teria como resultado um sujeito-julgador que teria mais maturidade que a maioria dos membros de partidos que fazem o papel de legislador.

Detalhe importante reside no fato de que o Juiz Hércules não receia se ver (e ser visto) como um ser eminentemente moral, que defende crenças e opiniões particulares sobre as mais variadas discussões. E não poderia ser o contrário, haja vista encontrar-se integrado à realidade que julga, sendo ele mesmo cidadão e juiz ao mesmo tempo, permanecendo atento às circunstâncias sócio-políticas que o rodeiam.

Hércules, portanto, representaria a figura do juiz-assistencial, típico da era do “bem-estar social”, que tenta se desdobrar como engenheiro social. Sua atividade impõe a relativização do mito da supremacia do legislador, resultante da mudança de paradigma, cuja decisão advinha da imposição da norma ao fato.

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BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

HART, Herbert L. A. O conceito de direito. 5. ed. Trad. A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994.

SANCHÍS, Luis Prieto. Os princípios, o problema da discricionariedade judicial e a tese da unidade de solução justa. In MOREIRA, Eduardo Ribeiro (Org.). Argumentação e Estado Constitucional. São Paulo: Ícone, 2012.

SILVA, Cláudia Regina Alves da. O Caso Ellwanger como Parâmetro Metodológico da Criação Judicial do ireito pelo STF. Anais do XV Encontro Preparatório do CONPEDI. Recife: 2006

VIGO, Rodolfo Luís. Interpretação jurídica: do modelo juspositivista-legalista do século XXI às novas perspectivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

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1 VIGO, Rodolfo Luís. Interpretação jurídica: do modelo juspositivista-legalista do século XXI às novas perspectivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 36.

2 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 2ª edição – São Paulo: ed. Malheiros Editores, 2007, pgs. 133 e 134.

3 PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 16.

4 STRUCHINER, Noel. Uma análise da textura aberta da linguagem e sua aplicação ao direito. São Paulo: Renovar, 2002. p 101-104.

5 HART, Herbert L. A. O conceito de direito. 5. ed., Trad. A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994. P. 37 e 38.

6 SANCHÍS, Luis Prieto. Os princípios, o problema da discricionariedade judicial e a tese da unidade de solução justa, p 217.

7 SANCHÍS, Luis Prieto. Os princípios, o problema da discricionariedade judicial e a tese da unidade de solução justa, p. 217.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 141.

9 SILVA, Cláudia Regina Alves da. O Caso Ellwanger como Parâmetro Metodológico da Criação Judicial do ireito pelo STF. Anais do XV Encontro Preparatório do CONPEDI. Recife: 2006.

10 Idem.

11 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 168

12 Idem, p. 168.

13 Idem, p. 133.

14 SILVA, Cláudia Regina Alves da. O Caso Ellwanger como Parâmetro Metodológico da Criação Judicial do ireito pelo STF. Anais do XV Encontro Preparatório do CONPEDI. Recife: 2006.

Ygor Werner
Advogado. Mestre em D. Constitucional (UFRN), com extensão realizada na Faculdade de Direito da Univ. de Coimbra, em Portugal. Pós-graduado em D. Civil e Proc. Civil (UFRN) e em D. Tributário (IBET).

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