Não é raro que as operadoras de planos de saúde restrinjam a cobertura de certos tratamentos indicados por médicos aos beneficiários, sob o fundamento de que não constam no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), o qual, nesta linha argumentativa de negativa de cobertura, seria taxativo, de modo que os tratamentos não previstos em sua relação não precisariam ser cobertos pelas operadoras. Contudo, e em que pese a matéria não estar pacificada na jurisprudência, inclusive na do Superior Tribunal de Justiça, o entendimento pela taxatividade do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS não é o mais adequado.
Primeiramente, importa consignar que, embora, de fato, alguns tratamentos não estejam expressamente previstos no Rol da ANS, ele constitui tão somente uma referência básica para a cobertura obrigatória mínima oferecida pelas operadoras de planos de saúde, o que, inclusive, é reconhecido em muitos contratos.
Este mesmo entendimento, isto é, o de que o Rol da ANS apresenta apenas um piso em numerus apertus e não um teto em numerus clausus, era imediatamente extraível da Resolução Normativa 428/17 da ANS, que previa que o referido rol “constitui a referência básica para cobertura mínima obrigatória da atenção à saúde nos planos privados de assistência à saúde” (artigo 1º, caput), bem como dispunha que “as operadoras de planos de assistência à saúde poderão oferecer cobertura maior do que a mínima obrigatória” (artigo 2º). Inclusive, a própria lei 9.961/2000, que criou a ANS, dispõe, em seu artigo 4º, inciso III, que compete à aludida agência reguladora “elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constituirão referência básica”.
É bem verdade que a Resolução Normativa 465/21 da ANS, que revogou a Resolução Normativa 428/17, entrando em vigor em 1º/4/21, passou a considerar o mencionado rol como taxativo (artigo 2º), sendo que tal posicionamento vem sendo adotado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça desde o overruling ocorrido por ocasião do julgamento do Recurso Especial 1.733.013/PR, em que restou consignado que “é inviável o entendimento de que o rol é meramente exemplificativo e de que a cobertura mínima, paradoxalmente, não tem limitações definidas”1. Entretanto, esta não é a melhor interpretação possível.
Primeiramente, as resoluções normativas editadas pela ANS têm natureza jurídica de regulamentos infralegais, os quais, nesta condição, não podem sobrepujar-se a princípios e direitos expressamente previstos no ordenamento jurídico brasileiro. Inclusive, reiteradamente, o Supremo Tribunal Federal reforça o escorreito entendimento segundo o qual “em espaço que se revela qualitativamente diferente daquele em que exercida a competência legiferante, a competência regulatória é, no entanto, conformada pela ordem constitucional e legal vigente”2.
Assim, quando o artigo 10, § 4º, da lei 9.656/1998 estabelece que “a amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar [...] será estabelecida em norma editada pela ANS”, não autoriza que a agência reguladora inove na ordem jurídica e tampouco colida com os princípios e os direitos presentes no ordenamento jurídico brasileiro, e nem poderia fazê-lo, já que uma restrição de direitos só pode ser feita por lei em sentido formal, em observância ao princípio constitucional da legalidade (artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal). Com efeito, “uma das mais intrincadas questões afetas às agências reguladoras e ao direito da regulação é sua compatibilização com o princípio da reserva legal, que ainda hoje é da essência do modelo democrático”3.
Em verdade, o artigo 10, caput, da lei 9.656/1998 prevê que o plano-referência de assistência à saúde deve prover cobertura médico-ambulatorial e hospitalar das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (qual seja, a vigente CID-10), excepcionadas tão somente as hipóteses previstas nos incisos do mesmo artigo, as quais, conforme o § 1º, serão objeto de regulamentação da ANS, mas sem que esta agência reguladora restrinja abusivamente a amplitude prevista para o segmento contratado pelo beneficiário consumidor do plano de saúde, colocando-o em desvantagem exagerada.
Ademais, embora a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça tenha se manifestado pela mudança de entendimento quanto ao caráter exemplificativo do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, tal posicionamento não foi proferido em sede de recursos repetitivos, não possuindo, portanto, força vinculante em sentido estrito, tal como ocorre na hipótese estabelecida no artigo 927, inciso III, do Código de Processo Civil, devendo, pois, prevalecer o princípio do livre convencimento motivado, para que o magistrado decida conforme as peculiaridades de cada caso concreto, a fim de sopesar as disposições contratuais dos planos de saúde com os tratamentos necessários os beneficiários, circunstanciados pelas competentes prescrições médicas.
Inclusive, a Terceira Turma da Corte Superior segue o entendimento diametralmente oposto, qual seja, o de que “a natureza do rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS é meramente exemplificativa, reputando, no particular, abusiva a negativa de procedimento prescrita para auxílio no tratamento de doença coberta pelo plano de saúde”4. A mesma Turma também entende que “o plano de saúde pode estabelecer as doenças que terão cobertura, mas não o tipo de terapêutica indicada por profissional habilitado na busca da cura”5. Ainda, para a Terceira Turma, “a qualificação do rol de procedimentos e eventos em saúde como de natureza taxativa demanda do consumidor um conhecimento que ele, por sua condição de vulnerabilidade, não possui e nem pode ser obrigado a possuir”6.
Ora, o acesso a uma informação adequada e clara é um direito básico do consumidor (artigo 6º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor), de modo “que suas expectativas em relação ao produto ou serviço sejam de fato atingidas, manifestando o que vem sendo denominado de consentimento informado ou vontade qualificada”7, como há muito assinala o Superior Tribunal de Justiça.
Nesse sentido, na relação de consumo entre as operadoras de planos de saúde e os beneficiários (chancelada pela Súmula 608 da Corte Superior8), a simples adesão ao contrato não pode implicar automaticamente em um consentimento informado, vez que as informações disponibilizadas no instrumento contratual e no próprio Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS são de linguagem técnico-científica e de difícil compreensão, o que reforça ainda mais a ausência de taxatividade do referido rol.
Importa destacar que tal entendimento não despreza o complexo cálculo atuarial feito pelas operadoras de planos de saúde e tampouco a necessidade de que a atividade por estas prestada seja viável do ponto de vista econômico-financeiro. O que se propõe, em verdade, não é onerar demasiadamente as operadoras, mas sim evitar que, uma vez escolhidas as doenças que serão cobertas pelo plano de saúde (e respeitadas, sempre, as enfermidades previstas na CID vigente), haja uma indevida restrição na cobertura da doença do beneficiário, com fulcro em uma frágil cláusula contratual que alude à suposta taxatividade do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS como óbice para cobrir um tratamento que, embora não previsto no aludido rol, é prescrito por um médico competente.
Este tipo de cláusula contratual é, inclusive, nos termos do artigo 51, inciso IV e § 1º, inciso II do Código de Defesa do Consumidor, nula de pleno direito, pois coloca o beneficiário consumidor em uma desvantagem exagerada ao restringir seu direito de receber o tratamento adequado e prescrito à doença coberta pelo plano de saúde, direito subjetivo intrínseco que decorre da própria natureza do contrato firmado com as operadoras de planos de saúde. Nesta esteira, a melhor jurisprudência vem assinalando que a nulidade das cláusulas limitativas do tratamento de doenças cobertas pelos planos é evidente, “diante da ofensa à própria garantia de saúde que concede, sendo incompatível, inclusive, com a boa-fé objetiva e, especialmente, com a função social do contrato firmado pelas partes”9.
Destarte, pelas razões expostas neste breve artigo, conclui-se pela importância de afirmar o caráter exemplificativo do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, sendo este, inclusive, o entendimento que se espera por parte da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, quando pacificar a controvérsia hoje existente entre a Terceira e a Quarta Turmas.
1 REsp 1733013/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 10/12/2019, DJe 20/02/2020.
2 ADI 4093, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 24/09/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-203 DIVULG 16-10-2014 PUBLIC 17-10-2014.
3 BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, transformações do Estado e legitimidade democrática. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 229, p. 285-311, jul./set. 2002. p. 310.
4 AgInt no REsp 1877692/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/06/2021, DJe 11/06/2021.
5 AgRg no REsp 1547168/SP, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/04/2016, DJe 03/05/2016.
6 REsp 1876630/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 09/03/2021, DJe 11/03/2021.
7 REsp 1144840/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/03/2012, DJe 11/04/2012.
8 Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão. (SÚMULA 608, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 11/04/2018, DJe 17/04/2018).
9 TJPR - 10ª C. Cível - 0004007-87.2018.8.16.0194 - Curitiba - Rel.: DESEMBARGADOR FRANCISCO EDUARDO GONZAGA DE OLIVEIRA - J. 19.07.2021.