Migalhas de Peso

A mulher de César e os diretores dos bancos centrais

Quando se trata de um dirigente de bancos centrais, falar é prata e calar é ouro, como diziam os antigos.

6/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Prolegômenos

Conforme notícia recente dois presidentes do banco central americano (Federal Reserve System – FED). Renunciaram aos seus cargos em razão da revelação de negociações financeiras por eles efetuadas, fatos dos quais se teria inferido a existência de deficiências nas regras de investimento daquele órgão1.

Conforme as informações divulgadas no texto citado, ao mesmo tempo em que o FED gastava trilhões de dólares para estabilizar os mercados financeiros e impulsionar a economia, aqueles gestores fizeram ampla negociação de ações no ano de 2020. Segundo a fonte citada, tais operações não seriam ilícitas, mas o seu exame demonstrou que estava presente a possibilidade de terem agido em situação de conflito de interesses, tendo a questão se afastado do plano da ilegalidade para ficar no plano da moral e da ética. Foi esse aspecto que me lembrou da antiquíssima assertiva vinda da Roma Imperial no sentido de que não era suficiente que a mulher de César fosse honesta, mas que ela deveria também parecer ser honesta. Devemos, pois, trabalhar com os conceitos de moral e ética – ainda que rapidamente, dados os limites deste texto – para em seguida caminharmos para a classificação das condutas daqueles dois diretores do FED e fazermos uma comparação de como tal situação seria tratada no âmbito do Banco Central do Brasil – BCB.

1.  Ética e moral

Cabe aqui uma breve abordagem sobre o tema, a respeito do qual confesso ao prezado leitor que estou empobrecido temporariamente quanto ao acesso da parte filosófica da minha biblioteca, por motivo do exílio involuntário determinado pela pandemia que ora nos assola. Poucas obras tenho à mão aqui sobre essa matéria e, por isso confesso, sem falso pudor, que farei uso dos verbetes apropriados encontrados na internet que, nesse particular revelaram apresentar uma qualidade e fidedignidade aceitáveis. Afinal de contas o presente artigo não é uma obra acadêmica, mas uma discussão menos compromissada sobre um tema importante.

A história da ética e da moral pode ter o início marcado na primeira vez em que um representante do homo sapiens se apropriou por meio de estratagemas da comida do seu vizinho. Na circunstância desse evento possível, já existia uma sociedade organizada, na qual haviam sido construídos (ou descobertos) valores e desvalores. É essencial estabelecer que o agente antiético dessa história se valeu de alguma facilidade pessoal, a qual lhe permitiu ter acesso a uma informação sobre o lugar onde o alimento apropriado estava guardado. Por exemplo, ele seria um pajé da tribo, conhecedor dos segredos das suas ovelhas.

É importante discernir que o termo ética é mais abrangente no seu conteúdo do que o termo moral, que poderia ser tido (em parte) como uma modalidade da expressão daquela. Ou seja, enquanto a ética volta-se para os princípios que movem as ações humanas (contraste ente o certo e o errado, o justo e o injusto, o bem e o mal) a moral refere-se aos costumes e hábitos, de natureza comportamental, dotada de um caráter prático e normativo. Dessa forma podemos dizer que a ética tem uma amplitude universal, enquanto a moral está referenciada a determinados ambientes sociais, sendo a sua expressão diversa entre um e outros. Por exemplo, a visão do casamento monogâmico e poligâmico, este aceito em algumas culturas e condenado em outras. Tal matrimônio, por sua vez, pode ser resultante de uma posição religiosa. Em outras palavras, pode-se dizer que a moral fica no campo do hábito e do costume, enquanto a ética cuida de uma filosofia da moral, a busca da construção de uma ciência moral.

Como se pode verificar, houve uma evolução do conceito de ética na filosofia, derivada do termo grego êthos, que na sua origem significava “caráter”, representando os modos de agir de uma pessoa, correspondente hoje em dia à moral, conforme visto acima. Do seu lado, o termo “moral” (mores) vem do latim, com o sentido de costume ou hábito. A história da ética passa pela filosofia grega (entre os principais representantes Sócrates, Platão Aristóteles e Epicuro), chegando a Espinoza e Kant, para ficar somente por aqui. A Ética a Nicômaco, de Aristóteles, tem atingido os foros de um best seller. Não iremos nos debruçar sobre o seu pensamento. Mas é oportuno destacar o fragmento abaixo, tirado da Ética a Nicômaco, que cuidava da busca da felicidade, na condição de uma finalidade objetivada por todas as ações humanas:

“(...) o bem humano é o exercício ativo das faculdades da alma humana em conformidade com a virtude, ou se houver diversas virtudes, em conformidade com a melhor e mais perfeita delas”.

Dessa forma, a investigação de se pretende fazer neste texto está no campo da ética, particularmente aplicada à conduta dos dirigentes superiores dos bancos centrais, fazendo-se uma apreciação a partir das considerações da notícia acima referida sobre demissões no FED e em comparação com o que acontece no direito brasileiro, concernente ao BCB.

Inspirados em Santo Agostinho, buscamos aqui a verdade da coisa, que é diferente da verdade do entendimento1. A primeira se situa no âmbito objetivo, que pretendemos referenciar à ética, a enquanto a segunda remanesce no plano da moral, de natureza subjetiva. Assim sendo, procuramos saber qual é a verdade que se aplica à atuação dos dirigentes dos bancos centrais, de forma generalizada.

2. Princípios da moralidade na administração pública

De maneira geral, tais princípios são inerentes a todos os ordenamentos jurídicos de países democráticos. Entre nós os enumeramos como legalidade, impessoalidade e moralidade, entre os que nos interessam presentemente3:

(i) Legalidade – o agente público deve se comportar no limite da lei;

(ii) Impessoalidade – o agente público deve atentar para a realização dos interesses do Estado e não os seus pessoais ou de terceiros.

(iii) Moralidade -o agente público não deve agir com excesso, desviar-se de suas funções, agir arbitrariamente ou sem lisura. Aqui atua a condenação por agir em situação de conflito de interesses.

Tais princípios funcionam como uma barreira que o agente público não deve ultrapassar, por qualquer meio direto ou indireto, sob pena de responsabilidade pessoal e da obrigação de restituir ao Estado o prejuízo que tenha causado como resultado de sua conduta ilícita ou lícita, mas condenável no plano da ética, bem como a perda de algum proveito pessoal que tenha auferido em tal prática.

3. O que aconteceu no FED

Basicamente os diretores daquele órgão negociaram ações, podendo ter sido financeiramente favorecidos segundo determinadas ações do FED no exercício de suas funções institucionais, as quais teriam contado com a sua participação. Isso poderia se dar a título de informação privilegiada ou, pior ainda, se alguma medida daquele órgão proposta ou endossada por eles resultasse em valorização das ações de sua propriedade e/ou aumento do lucro das companhias emitentes, em relação aos quais viessem a ser pagos dividendos mais elevados.

Por exemplo, entre os títulos adquiridos por um dos dois dirigentes, contavam-se títulos lastreados em hipotecas, precisamente os mesmos em que o FED tem gastado centenas de bilhões de dólares. Foi informado na notícia sob exame que, neste exercício, aqueles diretores contribuíram para as previsões da política da taxa de juros. Ambos têm sido considerados como formuladores de políticas relativamente “hawkish” (beligerante), as quais muitas vezes favorecem taxas de juros mais elevadas para conter a inflação.

O resultado é que um dos diretores pediu demissão por alegados motivos de saúde e o outro tem renúncia marcada para o dia oito deste mês, com a finalidade de evitar uma distração da missão mais ampla do FED. Claro que a coisa certamente não ficará por aí.

4. O tratamento da ética no Banco Central do Brasil

Observe-se, inicialmente, que o tema aqui é abordado tão somente no plano abstrato, porque não cuida de qualquer situação particular, passada ou presente.

A eleição e a destituição dos diretores do BCB passaram a ser tratadas pela lei Complementar 179, de 24.02.2021. No plano de sua conduta ética, tem vigência a Portaria 84.287, de 27.02.2015 (Regimento Interno) e a Portaria 50.498, de 28.04.2009.

O Regimento Interno do BCB cuida de maneira pormenorizada da natureza e da finalidade da instituição; da sua estrutura organizacional; da diretoria colegiada e suas competências; e de outros assuntos correlatos. Não é preciso discorrer sobre essas competências, que são muito extensas. O importante é que os diretores daquele órgão as conheçam no seu conteúdo e extensão para o fim de que as bem exerçam a bem do BCB e da política monetária no cumprimento de suas atribuições e evitem a sua responsabilização se forem descumpridas.

Observe-se que a atuação antiética pode se dar tanto por ação, como por omissão. Neste último caso, por exemplo, a demora na decretação de medida saneadora saneadora quanto a alguma instituição financeira em situação de crise, por ter parente ou amigo em cargo de direção nesta.

Dotada de uma atuação construtiva, nos termos da Portaria 50.498/2009 do BCB, a Comissão de Ética tem competência para subsidiar os membros da Diretoria Colegiada para o fim da tomada de decisões concernentes a atos que possam implicar o descumprimento das normas do Código de Ética Profissional do Servidor Público do Poder Executivo Federal e do Código de Servidores do BCB. Para esse fim aquela comissão pode dirimir dúvidas sobre normas de conduta e orientar os administradores no tocante ao trato adequado da coisa pública.

Não interessa no presente momento estender essa pesquisa para os aspectos relacionados à penalização por ato antiético comissivo ou omissivo no exercício da função dos diretores do BCB. Importa verificar, isto sim que, diferentemente do modelo do FED, os diretores do BCB têm à sua disposição um arcabouço normativo interno e externo à instituição para o fim de poderem agir sempre nos limites da ética.

Mas há um ponto importante a ser apreciado. O BCB deve manter comunicação institucional com a sociedade em geral e, particularmente, com os agentes do mercado financeiro, muito abrangente nos seus limites. Essa comunicação se faz pelo meio institucional, bem como pela publicação de textos, de apresentações e de discursos, tal como se verifica no site daquele Órgão. Não é mencionado nesse site, mas tem havido comunicação na forma de entrevistas aos meios de comunicação escrito, falado e televisivo, o que apresenta um elevadíssimo potencial de manifestações antiéticas.

Entre tais manifestações podem ser contadas aquelas que de alguma forma levem o mercado a entender que o BCB tomará alguma medida em momento futuro, do que decorre inevitavelmente uma movimentação do mercado na defesa dos seus interesses. Para o mercado a fala de um dirigente jamais será tomada como uma trivialidade ou simplesmente uma conversa sem consequências. Ela sempre gerará efeitos e muitos deles serão negativos.

É claro que ao BCB cabe dirigir o funcionamento do mercado financeiro para que atinja as suas finalidades e uma das formas é a utilização do forward guidance – FG. Trata-se de uma orientação futura, um mecanismo voltado para o ajustamento do caminho desejado para o futuro da política monetária, influenciando a decisão dos investidores e das famílias. Por exemplo, as atas do Comitê de Política Monetária do BCB no tocante a uma futura mudança da taxa Selic, segundo parâmetros nela indicados.

No caso acima, ao receber o recado, o mercado poderá adotar medidas de restrição do crédito que terão o efeito dentro de determinado período do enxugamento de dinheiro em circulação, enquanto as famílias segurarão os gastos financiados no cartão de crédito. Isso feito, em momento próximo o Comitê acima referido adotará outro caminho. A mensagem concernente ao forward guidance não tem cunho normativo, mas de natureza comportamental.

Esse instrumento deve ser usado de forma institucional pelo BCB e não acidental ou informal, por exemplo em alguma entrevista de diretor daquele. Veja-se, por exemplo, notícia do jornal “Valor Econômico” de 30 de setembro próximo passado, na qual o Presidente daquele Órgão declarou que será perseguida uma meta de inflação no horizonte relevante, no plano de um patamar significativamente contracionista4. Ora, essas expressões vagas ao que parece não têm um sentido técnico conhecido no aludido mercado e os interessados certamente procuraram entender o que significavam a até onde os seus efeitos poderiam chegar. Sem acesso à Pitonisa de Delfos, o jeito seria o de fazer adivinhações no varejo, para que, a partir das conclusões alcançadas, pudessem tomar as medidas para eles adequadas.

Outras afirmações foram feitas, não sendo necessário nos estendermos sobre elas. A dúvida que fica é sobre a natureza desse tipo de “forward guidance” verbal e informal, que pode não se espelhar em ata do COPOM e nem ser adotada no futuro pela diretoria colegiada do BCB, não tendo ela, se for o caso, ficado no vazio, mas tendo produzidos efeitos econômicos não desejados.

Concluindo, modestamente, para mim, quando se trata de um dirigente de bancos centrais, falar é prata e calar é ouro, como diziam os antigos.

__________

1 Cf. matéria do jornal “Valor Econômico” de 28.09.2021, intitulada “Dois Presidentes do FED renunciam após divulgações de transações”.

2 Lib. 2º, Solil, cap. V).

3 Veja-se a respeito, de Odete Medauar, “Direito Administrativo Moderno”, 12ª ed., revista e atualizada, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, pp. 120 e segs.

4 Cf. “Campos Neto reforça que o Banco Central vai perseguir meta de inflação “no horizonte relevante”.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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