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As repercussões trabalhistas da nova lei da Sociedade Anônima do Futebol

A lei 14.193/2021, que cria e regulamenta o modelo de sociedade anônima do futebol (SAF), traz regras com importantes impactos trabalhistas, entre as quais merecem destaque as regras que versam sobre sucessão de empregadores.

5/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Introdução

Em 09/08/2021, foi publicada a lei 14.193/2021, criando e regulamentando o modelo de sociedade anônima do futebol (SAF), com o fim de promover a profissionalização da atividade desportiva profissional futebolística.

Além de outras previsões, a nova lei traz regras que afetam diretamente os créditos de seus empregados e ex-empregados, em especial – mas não apenas – dos atletas profissionais.

No presente artigo, vamos pontuar rapidamente as principais inovações trabalhistas oriundas da referida lei, sem qualquer pretensão de nos aprofundar, menos ainda de esgotar o tema.

Entre as novidades, a lei possibilita a criação da SAF, com regras sobre sucessão de empregadores, execução coletiva e recuperação judicial. Tais novidades, como veremos, têm forte potencial de impactar no recebimento de créditos trabalhistas vencidos e futuros (judicializados ou não).

2. Sucessão de empregadores

De acordo com o art. 2º da nova lei, a SAF pode ser constituída de três formas:

(i) pela transformação das associações civis (clubes);

(ii) pela cisão do departamento de futebol do clube ou da pessoa jurídica original, com transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol.

(iii) instituição da SAF por iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento.

Nas hipóteses de criação de SAF por transformação da associação ou por cisão, opera-se a sucessão entre o clube e a SAF, sendo que a solvabilidade das obrigações trabalhistas pretéritas e futuras podem ser sensivelmente afetadas. Prevendo tal possibilidade, a recente lei regulou a sucessão nos artigos 2º, 9º e 10.

O legislador expressamente estabeleceu no art. 2º que, nas hipóteses de criação de SAF por transformação da associação em companhia ou pela cisão do departamento de futebol, a sociedade anônima sucede o clube nos contratos de trabalho existentes na data da criação da SAF, bem como nos contratos de cessão de uso imagem, marcas e outros vinculados aos atletas profissionais de futebol. Em outras palavras, nos contratos de trabalho existentes na data da criação da SAF , esta passa a figurar como empregador, no lugar do clube.

Aliado a isso, dispõe o art. 9º que a SAF responde apenas pelas dívidas trabalhistas do clube sucedido que se relacionam às atividades específicas do objeto social da companhia, ou seja, às atividades de futebol profissional. Nesse sentido, o parágrafo único do art. 9º literalmente prescreve que a SAF responde pelos débitos trabalhistas referentes aos atletas, membros da comissão técnica e funcionários cuja atividade principal seja vinculada diretamente ao departamento de futebol.

Nesse ponto, podem surgir dúvidas acerca dos débitos referentes a trabalhadores que não atuavam exclusivamente voltados ao departamento de futebol profissional do clube, como, por exemplo, profissionais de limpeza e do setor administrativo. Em tais hipóteses, deve-se analisar, no caso concreto se o trabalho exercido tinha alguma relação com a atividade de futebol profissional, ainda que não exclusivamente, quando os créditos trabalhistas vencidos passarão a ser de responsabilidade da SAF, sem prejuízo da responsabilidade da associação desportiva, se subsistir.

No que tange as dívidas trabalhistas anteriores e que não se relacionam com a atividade profissional futebolística, a SAF não se torna automaticamente responsável, conforme disposto nos caputs dos artigos 9º e 10 da nova lei. A responsabilização da SAF somente ocorre em casos de fraude (artigos 9º e 448-A, parágrafo único, da CLT) ou se estabelecido no próprio estatuto ou contratualmente entre o clube e a sociedade de futebol (sem prejuízo da responsabilidade do clube).

Assim, em princípio, com a constituição de SAF, as dívidas trabalhistas pretéritas totalmente alheias ao futebol profissional são de responsabilidade exclusiva do clube, não ocorrendo a sucessão trabalhista em relação a referidas obrigações.

Vale destacar, contudo, que, com o fim de reduzir os riscos de esvaziamento patrimonial do clube e o inadimplemento de tais dívidas, o legislador estabeleceu nos incisos I e II do art. 10 que a associação desportiva deve, obrigatoriamente, destinar ao pagamento dos referidos débitos: 20% das receitas correntes mensais auferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, em conformidade com plano aprovado no Regime Centralizado de Execuções ou plano de recuperação judicial, bem como por destinação de 50% (cinquenta por cento) dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida desta, na condição de acionista.

Desse modo, ao mesmo tempo em que o legislador afasta a sucessão pela SAF em relação aos débitos trabalhistas estranhos ao futebol profissional, impõe ao clube a vinculação de parcela das receitas que lhe forem transferidas pela SAF.

A propósito, vale destacar, ainda, que o art. 11 da lei prevê que os administradores da SAF respondem pessoal e solidariamente pelas obrigações relativas aos mencionados repasses financeiros do art. 10, estabelecendo, ainda, a responsabilização pessoal e solidária do presidente do clube ou dos sócios administradores da pessoa jurídica original pelo pagamento aos credores dos valores que forem transferidos pela SAF.

3. Da limitação à penhora de patrimônio da SAF

Outra norma que chama a atenção e que precisa ser analisada com cuidado para se evitarem interpretações equivocadas é a regra do art. 12 da lei, que veda a penhora sobre bens e receitas da SAF para pagamentos de dívidas anteriores à sua constituição, enquanto a nova companhia cumprir os pagamentos.

Deve-se atentar ao fato de que o art. 12 não cria uma blindagem patrimonial absoluta à SAF, mas apenas estabelece que, caso ela efetue os repasses previstos no plano aprovado no Regime Centralizado de Credores, não poderá sofrer constrições para pagamento de dívidas pelas quais ela não responde. O que significa dizer que, se a SAF não pagar as dívidas trabalhistas passadas e futuras de sua responsabilidade (relacionadas à atividade de futebol profissional), ela pode, sim, sofrer penhoras, inclusive sobre suas receitas.

A finalidade da norma é evitar que o patrimônio da SAF, inclusive receitas, sejam penhoradas para pagamento de obrigações de responsabilidade exclusiva do clube. Não seria nada razoável admitir a impenhorabilidade dos bens da SAF, o que violaria a inafastabilidade da jurisdição, especialmente quando se fala de créditos trabalhistas, dotados de natureza alimentar e caráter privilegiado.

Portanto, a melhor interpretação – teleológica, sistemática e à luz da Constituição –  vai no sentido de que o art. 12 apenas obsta a penhora dos bens da SAF para pagamento de dívidas trabalhistas pelas quais ela não responde De outro lado, caso a companhia não pagar os débitos trabalhistas de atletas, membros da comissão técnica e funcionários cuja atividade principal seja vinculada diretamente ao departamento de futebol, a Justiça do Trabalho pode proceder à penhora do patrimônio da SAF.

4. Meios de Pagamento das Dívidas pelo Clube: Regime Centralizado de Execuções e Recuperação Judicial ou Extrajudicial

O art. 13 da lei possibilita que o clube ou pessoa jurídica original pague suas obrigações diretamente aos seus credores ou, “a seu exclusivo critério”, por  concurso de credores por intermédio do Regime Centralizado de Execuções previsto nesta lei, ou, ainda, por meio de recuperação judicial ou extrajudicial.

Apesar de curto, o texto do art. 13 contém normas de grande relevância.

Primeiro, salientamos a expressa autorização para que os clubes –  os quais, vale lembrar, são associações e não sociedade empresariais – possam se valer da recuperação judicial e extrajudicial reguladas pela lei 11.101/05, sendo que o art. 25, na mesma linha, reconhece textualmente que os clubes exercem atividades econômicas.

Tal previsão normativa deve, provavelmente, reforçar a vertente jurisprudencial que vem admitindo a recuperação judicial por associações, fundações ou cooperativas, sob o fundamento de que referidos agentes econômicos, apesar de não serem sociedades empresárias (art. 2º da lei 11.101/05), exercem atividades econômicas.

Outro ponto importante do art. 13 é a adoção pela lei de um modelo semelhante aos modelos já utilizados pela Justiça do Trabalho de execução coletiva (Regime Especial de Execução Forçada – REEF) e de concurso de credores (Plano Especial de Pagamento Trabalhista – PEPT), regulamentados pela Consolidação dos Provimentos da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho.

O art. 13 prevê a possibilidade de concurso de credores por meio do Regime Centralizado de Execuções, que é regulamentado nos artigos 14 a 24 da nova lei.

O terceiro ponto que merece análise é a previsão normativa que franqueia ao clube optar, a seu exclusivo critério, por pagar suas obrigações diretamente aos credores, pagar por meio de concurso de credores no Regime Centralizado de Execuções ou, ainda, por meio de recuperação judicial ou extrajudicial.

Aqui, embora o texto do art. possa (equivocadamente) levar a entender que o clube tem a faculdade de escolher, a seu bel prazer, se pagará ou não seus débitos trabalhistas diretamente ou se o fará por concurso de credores ou, ainda, recuperação judicial ou extrajudicial, é evidente que somente poderá optar pelo concurso de credores ou pela recuperação judicial e extrajudicial se estiver em crise financeira ou patrimonial que justifique sua escolha. Se o clube tiver em condições financeira e patrimonial suficientes para pagar suas dívidas diretamente e não o fizer, sujeita-se à jurisdição trabalhista normalmente (inclusive medidas constritivas), não se justificando, em tal hipótese, a utilização dos referidos institutos de pagamento coletivo.

Isso porque o concurso de credores tem com pressuposto intrínseco a insolvência do devedor (dívidas que superam o patrimônio), consoante expressamente disposto nos artigos 955 do Código Civil e 748 do CPC de 1973 (ainda vigente nos termos do art. 1.052 do CPC de 2015).

Ademais, a recuperação judicial tem como requisito a crise econômico-financeira, nos termos dos artigos 47 e 51, I, da lei 11.101/2005.

Portanto, a partir de uma interpretação sistemática do art. 13 da lei 14.193/2021 com os artigos 955 do Código Civil, 748 do CPC de 1973, conclui-se que o clube somente pode deixar de pagar diretamente suas dívidas aos credores e se valer do Regime Centralizado de Execuções na hipótese de insolvência, ou seja, se a soma dos ativos for menor que o conjunto de passivos ou, ao menos, se o clube demonstrar estar em grave crise financeira. Seguindo o mesmo trilho, à luz dos artigos 47 e 51 da lei 11.101/2005, a recuperação judicial somente pode ser por ele pleiteada caso comprovadamente esteja passando por crise econômico-financeira.

5. Regime Centralizado de Execuções

O Regime Centralizado de Execuções instituído pela lei 14.193/21 tem semelhanças com o Procedimento de Reunião de Execuções, especificamente o Plano Especial de Pagamento Trabalhista, regulamentado pelo Provimento 01/2018 da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho, com algumas diferenças substanciais, tais como aumento do prazo para pagamento, não exigência de cláusula penal e a possibilidade de deságio, como se analisará adiante.

O art. 14 da lei 14.193/21 permite que o clube ou pessoa jurídica original que optar pelo concurso de credores (Regime Centralizado de Execuções) poderá concentrar no juízo centralizador as execuções, as suas receitas, os valores arrecadados e a sua destinação aos credores em concurso e de forma ordenada. Na ausência de órgão centralizador no âmbito do Tribunal Regional do Trabalho (TRT), será competente o juízo trabalhista que primeiro houver ordenado o pagamento da dívida.

O requerimento de centralização das execuções deve ser apresentado ao Presidente do TRT e deverá conter o balanço patrimonial, as demonstrações contábeis relativas aos 3 últimos exercícios sociais, as obrigações consolidadas em execução e a estimativa auditada das suas dívidas ainda em fase de conhecimento, o fluxo de caixa e a sua projeção de 3 anos e o termo de compromisso de controle orçamentário.

O devedor terá, ainda, que publicar na rede mundial de computadores a ordem da fila de credores com seus respectivos valores individualizados e atualizados e os pagamentos efetuados no período, tudo conforme artigos 15, §1º, e 16 da lei.

Caberá aos TRTs disciplinar o Regime Centralizado de Execuções, por meio de atos próprios e, na ausência de regulamentação, ao Tribunal Superior do Trabalho, na forma do art. 15.

O mesmo art. fixa seis anos como prazo limite para pagamento aos credores. Todavia, se o devedor comprovar o adimplemento de ao menos 60% do passivo original, poderá obter a prorrogação do Regime Centralizado de Execuções por mais quatro anos, podendo chegar a um total de anos.

Os créditos trabalhistas serão pagos por por ordem de antiguidade dos processos, observada o seguinte critério de preferência fixado pelo art. 17 da lei: idosos, na forma do Estatuto do idoso, pessoas com doenças graves, pessoas cujos créditos de natureza salarial sejam inferiores a 60 salários-mínimos, gestantes, pessoas vítimas de acidente de trabalho e credores com os quais haja acordo que preveja redução da dívida original em pelo menos 30%, seguindo-se aos demais créditos trabalhistas.

Importante observar que, ao tratar dos idosos, a lei remete ao estatuto do idoso, mas não define o que vem a ser doença grave, o que deve suscitar discussões judiciais. Por isso, defendemos a aplicação analógica do art. 151 da lei 8.213/91, pelo qual são consideradas graves a seguintes doenças: tuberculose ativa, hanseníase, alienação mental, esclerose múltipla, hepatopatia grave, neoplasia maligna, cegueira, paralisia irreversível e incapacitante, cardiopatia grave, doença de Parkinson, espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave, estado avançado da doença de Paget (osteíte deformante), síndrome da deficiência imunológica adquirida (aids) ou contaminação por radiação, com base em conclusão da medicina especializada.

Ademais, o art. 17, V, limitou a prioridade às vítimas de acidentes oriundos da relação de trabalho com o clube ou pessoa jurídica original, o excluindo, aparentemente, as situações de empregados terceirizados, cujos créditos venham a ser incluídos no Regime Centralizado de Execuções. Distinção esta que, a nosso ver, não se justifica em face do princípio da não discriminação, de modo que a norma deve ser interpretada extensivamente, beneficiando, inclusive,  os trabalhadores terceirizados.

Sobre a possibilidade de deságio, o art. 21 da lei o permitiu expressamente para os créditos trabalhistas, desde que tenha anuência do credor.

Outro ponto a ser observado é que o art. 18 determina que, a partir da centralização das execuções, as dívidas trabalhistas serão corrigidas somente pela taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), ou outra taxa de mercado que vier a substituí-la. Manteve, todavia, a discussão sobre a incidência ou de juros de forma separada, assim como ocorre nos demais créditos trabalhistas, após o julgamento da ADC 58 pelo Supremo Tribunal Federal.

Os artigos 20 e 22 permitem a conversão parcial ou total da dívida em ações ou títulos emitidos pelo devedor, desde que previsto no estatuto, e a cessão do crédito a terceiro, com sub-rogação em todos os direitos e obrigações do credor e manutenção da ordem de pagamento na fila de credores, devendo ser dada ciência ao devedor, bem como ao juízo centralizador da dívida para que promova a anotação.

A lei 14.193/21 não afasta a possibilidade de as partes, por meio de negociação coletiva, estabelecerem o plano de pagamento de forma diversa (art. 19).

Por fim, o art. 23 estabelece que, enquanto o devedor cumprir os pagamentos estipulados pelo regime centralizado de execuções, é vedada qualquer forma de constrição ao patrimônio ou às receitas, por penhora ou ordem de bloqueio de valores de qualquer natureza ou espécie sobre as suas receitas.

Certamente, haverá discussão sobre a abrangência dessa limitação, especialmente quando concentrada em unidade judicial não abrangida pelo juízo da nova execução porque vinculados a juízos distintos, sendo a cooperação jurisdicional com reunião ou apensamento de processos ou, ainda, a prática de atos concertados entre os juízos cooperantes um importante instrumento de solução, conforme art. 69 do CPC.

6. Considerações Finais

A lei 14.193/2021, que cria e regulamenta o modelo de sociedade anônima do futebol (SAF),  traz regras com relevantes repercussões trabalhistas, entre as quais merecem destaque as regras que versam sobre sucessão de empregadores, execução coletiva e recuperação judicial, todas com forte potencial de afetar no recebimento de créditos trabalhistas vencidos e futuros (judicializados ou não).

Ulisses de Miranda Taveira
Mestrando em Função Social do Direito pela FADISP, especialista em Direito do Trabalho e Juiz Titular da Vara do Trabalho de Mirassol D’oeste, TRT da 23ª Região. Ex- Oficial de Justiça no TRT da 15ª Região. Ex-Analista e Técnico Judiciário do TRT da 2ª Região. Professor convidado das EJUDs dos TRTs 5, 6, 15 e 23, além de cursos de pós-graduação em direito e processo do trabalho.

Vinícius de Miranda Taveira
Juiz do Trabalho do TRT15. Especialista em Direito Público. Mestrando em Função Social do Direito.

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