O contrato de seguro automotivo decorre do pacto da livre manifestação de vontade dos contratantes, com o objetivo de garantir uma indenização, mediante o pagamento do prêmio, na hipótese de ocorrer um determinado evento danoso previsto contratualmente, com base no art. 757 do CC.
Antes de mais nada, é importante ressaltar que a relação entre seguradora e segurado é típica relação de consumo, devendo, portanto, ser regida pelo Código de Defesa do Consumidor.
A submissão da relação securitária ao CDC é de extrema importância, porque traz uma série de garantias ao segurado não existentes para aquelas relações regidas pelo Código Civil.
Assim, por exemplo, dentre tantos outros de igual importância, nos termos do artigo 47 do CDC, presumida a boa-fé do consumidor, tem-se por necessária a melhor interpretação do contrato que lhe seja favorável.
Quando falamos especificamente sobre o contrato de seguro automotivo, é certo presumir que o segurado firma o contrato com a óbvia expectativa de ter a cobertura financeira no caso da ocorrência de algum sinistro, e intui, mesmo na qualidade de leigo, que eventual negativa da sua cobertura caracterizaria nítido abuso.
Segundo Cavalieri Filho, são três os elementos essenciais do seguro: o risco, a mutualidade e a boa-fé.
Risco significa perigo, possibilidade de ocorrência de dano em razão de um evento futuro e possível, que não depende das partes. Onde não houver risco, não haverá seguro.
Mutualidade significa se tratar de um contrato bilateral com obrigações para ambas as partes, onde o segurado paga determinada quantia previamente ajustada (o prêmio), pelo período no qual o seguro terá vigência. A seguradora, por sua vez, assume a obrigação de ressarcir o segurado em caso de prejuízo previsto contratualmente.
A boa-fé, por sua vez, é um dever imposto às partes: agir com lealdade e com correção durante todas as etapas de um contrato.
Feitas essas considerações, a primeira conclusão a que chegamos é a de que qualquer negativa de cobertura que venha a ser apresentada pela seguradora não prescindirá de que, em momento anterior à celebração da apólice, tenham sido esclarecidas ao candidato à celebração do contrato aquelas cláusulas que impliquem em restrições aos seus direitos, em caracteres ostensivos, legíveis, sob pena de a seguradora não mais poder negar a cobertura de forma lícita.
Contudo, o que vemos na prática são contratos tipicamente de “adesão”, ou seja, contratos em que os direitos, deveres e condições são previamente estabelecidos pela seguradora proponente, sem que o segurado possa discutir ou modificar o seu conteúdo. E este fato dá margem para a ocorrência das chamadas “cláusulas abusivas” – aquelas que notoriamente são desfavoráveis à parte mais fraca da relação contratual.
Portanto, o reconhecimento da existência de cláusula abusiva no contrato de consumo torna inválida a relação contratual, por conta da quebra no desequilíbrio na relação de direitos e deveres das partes.
Ok. Mas, afinal de contas, a seguradora pode ou não pode se negar a efetuar a cobertura de sinistro no caso de o condutor se encontrar com a CNH (Carteira Nacional de Habilitação) suspensa ou cassada?
Vamos lá.
No ordenamento jurídico brasileiro, desde o advento do antigo Código Civil de 1916, foi adotada, como regra, em matéria de responsabilidade civil, a chamada “teoria da culpa”. Isso implica em dizer que o dever de indenizar é condicionado à demonstração de que os prejuízos sofridos por quem os alega decorreram de conduta culposa daquele a quem se pretende atribuir a responsabilidade.
Noutras palavras, para que determinada pretensão indenizatória possa vingar, há a necessidade de que seja claramente demonstrado o nexo de causalidade entre os prejuízos reclamados e determinada conduta ilícita.
Assim, no campo específico da relação securitária, para se aferir a responsabilidade civil por um acidente, é preciso que se identifique, no momento do sinistro, se a ação ou omissão do condutor era ou não capaz de produzir o dano.
Ou seja: é preciso identificar se a conduta do motorista era, por si só, capaz de dar causa ao dano.
Vejamos um exemplo elaborado pelo professor Ilan Goldberg:
“Ocorrido determinado acidente de trânsito, neste se envolveram os veículos A e B. Por absoluta desatenção do proprietário do veículo A, este acabou por se chocar contra a traseira do veículo B.
Em condições normais, inexistiriam dúvidas de que a responsabilidade pelo ocorrido seria do proprietário do veículo A, que seria obrigado a reparar os prejuízos sofridos por B.
Por outro lado, suponha-se que o proprietário do veículo B não dispusesse de carteira de habilitação e, para agravar ainda mais o quadro, fosse menor impúbere e estivesse completamente embriagado.
O quadro relacionado à responsabilidade civil sofreria alguma alteração?”
E a resposta é: não!
A responsabilidade total pelo acidente continuaria sendo do condutor do veículo A que, por absoluta desatenção, chocou-se contra a traseira do veículo B.
A falta de habilitação, embriaguez e/ou menoridade, muito embora condenáveis nestas circunstâncias, não tiveram qualquer relação causal com o evento danoso, ou ainda, por outro lado, não representaram de maneira alguma causa direta ou necessária à ocorrência do acidente.
Para que não restem dúvidas, o Código Civil Brasileiro, no artigo 768, tratou de regular a possibilidade da perda da garantia pelo segurado em razão do agravamento do risco por conduta própria:
“Art. 768. O segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”.
Portanto, pela redação do dispositivo acima, denota-se que as companhias seguradoras só poderão negar a cobertura ao segurado se provarem que ele tenha agravado intencionalmente o risco.
E é pacífico na jurisprudência pátria o entendimento de que o motorista que eventualmente esteja com sua CNH vencida ou suspensa, na condução de um automóvel, poderá cometer uma infração administrativa, desde que tenha sido aberto processo administrativo para tal. Contudo, essa infração, por si só, não reputa o agravamento de risco de forma intencional, não sendo justificativa suficiente para a negativa de pagamento do seguro.
Dessa forma, a cláusula que afasta a cobertura em caso de o condutor estar com a habilitação suspensa/cassada é nula, por exigir do consumidor obrigação inacessível, nos termos do Art. 51, IV, do CDC:
“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
(...)
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;”
Por outro lado, além de violar os princípios consumeristas, a previsão contratual de exclusão de cobertura em caso de CNH suspensa ou cassada representa afronta à proteção legal contra o enriquecimento sem causa. Afinal, com tal negativa, estar-se-ia a privilegiar a empresa com um benefício (pagamento assíduo das mensalidades), sem que haja a contraprestação respectiva (proteção ao sinistro).
Portanto, considerando-se o conjunto principiológico que norteia o Código do Consumidor, bem como a adoção, pelo regime jurídico brasileiro, no tocante à responsabilidade civil, da teoria da culpa, não se pode opor negativa de cobertura tão somente pela restrição na CNH do condutor segurado, repita-se, quando a partir desta restrição não se nota interferência direta e decisiva para a consumação do sinistro.