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A eficácia das cotas de gênero no Direito Eleitoral Brasileiro

Desde a primeira legislação que passou a prever as cotas de gênero para todos os cargos com eleições pelo sistema proporcional, já se passaram 24 anos e, ainda assim, pouca foi a evolução da participação ativa das mulheres no campo político.

29/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Fruto do movimento sufragista, que surgiu no século XIX, o decreto 21.076/32 (Código Eleitoral de 1932), foi a primeira norma de abrangência nacional a prever o direito ao voto pelas mulheres. Por sua vez, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934, foi a primeira a garantir às mulheres o direito de votarem e serem votadas. Todavia, ao longo dos anos, constatou-se que a participação feminina nos pleitos eleitorais era ínfima, principalmente, por se tratar de ambiente eminentemente masculino.

Em vista disso, surgiu a necessidade de garantir e incentivar a efetiva participação das mulheres na política. Neste ponto, destaca-se que a Argentina foi o primeiro País da América Latina a estabelecer a chamada cota de gênero, em 1991, por meio da Ley de Cupo Femenino (Lei 24.012/91) posteriormente regulamentada pelo Decreto nº 379/1993. Segundo a referida Lei “As listas que se apresentarem deverão ter mulheres em no mínimo 30% dos candidatos aos cargos a serem eleitos e nas proporções com possibilidade de serem eleitas” (tradução nossa).

Já em 1994, o País passou por uma reforma constitucional, de forma que, com as significativas mudanças legislativas, no ano de 2001 a Argentina renovou toda a composição da Câmara Alta e, conforme destaca a doutrinadora Cristina Aquino de Souza (p. 256, 2016): 

Isso possibilitou a ampliação do impacto das cotas nessas eleições ao Senado, de forma que a porcentagem de representantes mulheres nesse órgão aumentou de 3%, em 1999, a 35%, em 2001 (MARÍA CARRIO, 2002), e atualmente mantém-se em 38,8% (IDEA, 2014).1 

Considerando a notória efetividade da legislação argentina, assim como da sua correta aplicação, o País se tornou referência na representatividade das mulheres na política. Segundo Cristina (p. 256, 2016)2, o êxito do sistema adotado decorreu, dentre outras hipóteses, da existência de sanções legais para o descumprimento da norma e pelas decisões do judiciário que impõe o cumprimento da cota.

Por sua vez, no Brasil, o êxito da implementação das cotas femininas não se repetiu. Consoante frisa Ricardo José Pereira Rodrigues (p. 13, 2017)3, a primeira forma de cota de gênero instituída no País se deu por meio da lei 9.100/95. De acordo com a referida norma, aplicada apenas nas eleições para vereadores, 20% das vagas que cada partido poderia registrar, deveriam ser destinadas às candidatas mulheres. No entanto, considerando a ausência de consequências pela desobediência ao referido percentual, pouca foi sua aplicação nas eleições de 1996.

Ainda assim, esta primeira norma foi essencial para o desenvolvimento da lei 9.504/97 (Lei das Eleições), que estipulou as cotas eleitorais para todas as eleições submetidas ao sistema proporcional – o que exclui o Senado Federal. Em sua redação original, a norma já previa um percentual mínimo de 30% e máximo de 70% que os partidos deveriam preencher com candidatos de cada sexo. No entanto, o texto legal utilizava a expressão “deverá reservar”, ou seja, os partidos tinham a mera faculdade de preencher 30% dos registros com candidatas do gênero feminino, segundo bem destaca Cristina (p. 260, 2016)4.

Neste mesmo viés, repetindo o equívoco da lei 9.100/95, a doutrinadora salienta que a Lei das Eleições, em sua redação original, não determinava qualquer consequência caso não fossem preenchidas as vagas reservadas. Em vista disso, novamente a norma mostrou-se de pouca eficácia para integrar as mulheres à política.

Desta forma, constatado o equívoco, a lei 12.034/09, alterou a redação do art. 10, § 3º, da Lei das Eleições, tornando obrigatório o preenchimento de ao menos 30% das vagas do partido por candidatas femininas, regra ainda vigente. Com isso, se o partido não cumprir com o referido percentual, por tratar-se de condição coletiva de elegibilidade, haverá o indeferimento da candidatura de todo o partido (MACEDO, 2014, p. 214)5.

Além do mais, visando incentivar as campanhas femininas, a lei 13.877/19, alterou o art. 44, inciso V, da lei 9.096/95, de forma a prever que no mínimo 5% dos recursos oriundos do Fundo Partidário devam ser aplicados “na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação políticas das mulheres”. Em consonância a isso, o art. 19, § 3º, da resolução 23.607/19, do Tribunal Superior Eleitoral, estabeleceu que, já para as eleições de 2020, os partidos deveriam “destinar ao financiamento de campanhas de suas candidatas no mínimo 30% dos gastos totais contratados nas campanhas eleitorais com recursos do Fundo Partidário”. No entanto, mesmo diante de todas as normativas que visam a participação feminina, a fraude às candidaturas tornou-se um caminho mais cômodo e fácil para os partidos políticos.

Há uma ausência de compreensão, portanto, quanto ao objetivo das cotas de gênero, que é a valorização das mulheres no meio político, com a devida representatividade. Neste sentido, as professoras e pesquisadoras Malu Gatto, da University College London, e Kristin Wyllie, da James Madison University, elaboraram um estudo no qual concluíram que nas eleições de 2018, 35% candidaturas femininas para a Câmara dos Deputados, não alcançaram 320 votos, sendo este, de acordo com as pesquisadoras, um dos principais indícios de fraude nas candidaturas6. Referida pesquisa se confirma por meio de uma breve análise dos processos judiciais que visam apurar a fraude às cotas de gênero, considerando que a irrisória quantidade de votos na candidata feminina é utilizada como meio de prova em quase todas, se não, em todas as ações.

Desta maneira, mesmo após 11 anos da instituição das cotas de gênero nos moldes atuais, pela lei 12.034/09, pouca é a efetividade da referida norma. Destaca-se que somente em 2019 o Tribunal Superior Eleitoral veio a analisar quais as consequências decorrentes da comprovação de fraude nas cotas de gênero. No cerne do Recurso Especial Eleitoral nº 193-92.2016.6.18.0018, referente às eleições de 2016, fixado como leading case, os Ministros entenderem pela cassação da totalidade das candidaturas das coligações que foram beneficiadas pelas fraudes, independentemente de o candidato ter ou não conhecimento delas.

Já no Estado do Paraná, os Recursos Eleitorais que apreciaram assuntos pertinentes às candidaturas femininas fictícias são datados a partir do ano de 2017 e, em sua grande maioria, tratam tão somente da legitimidade passiva da demanda. Dentre os escassos que se aprofundam na matéria, menciona-se o RE nº 247-50.2016.616.0168, RE nº 495-22.2016.616.0166, RE nº 764-55.2016.616.0071, RE nº 42-69.2018.6.16.0000, RE nº 24-14.2019.6.16.0000 e RE nº 0600722-53.2020.6.16.0026, entretanto, poucas são as discussões sobre as consequências decorrentes da fraude.

Apesar dessas decisões representarem avanços para o Direito Eleitoral Brasileiro, principalmente no que tange à inclusão feminina na política nacional, é incontestável que se anda a passos lentos. No ano de 2020, o Brasil ocupava a 148ª posição de 189, entre os países com a maior porcentagem de mulheres ocupando o parlamento. De acordo com pesquisa “Mulheres na Política”, realizada pela ONU e pela UIP7, na Câmara de Deputados a porcentagem ficou em 14,6%, enquanto no Senado Federal ficou em 13,6%. Portanto, ainda que sejam a grande maioria das eleitoras, as mulheres não ocupam nem um quarto das cadeiras de cada uma das casas do Congresso Nacional.

Diante dos fatos, o modelo de cotas de gênero atualmente adotado no País, mostra-se insuficiente para a realidade brasileira. Ainda assim, o Projeto de Lei Complementar 112/21, que institui o novo Código Eleitoral, com texto já aprovado perante a Câmara de Deputados, basicamente reproduziu o texto do art. 10, § 3º, da Lei das Eleições. A mudança encontra-se na previsão da aplicação de multa em caso de fraude à cota de gênero, uma vez que, segundo o art. 626, § 1º, do Projeto de Lei Complementar 112/21, referida conduta consistiria em um abuso do poder político.

No que tange às sanções de cassação do registro, diploma ou mandato do candidato beneficiado e a inelegibilidade do respectivo responsável, o § 2º do art. 626 dispõe que elas poderão ser aplicadas quando restar caracterizado o ilícito descrito no caput do referido artigo, qual seja, o abuso de poder político mediante a exploração eleitoreira da estrutura do Estado e o uso desvirtuado das competências e prerrogativas inerentes à condição de agente público que acarrete vantagem eleitoral indevida. Verifica-se, desta maneira, que o legislador pretendeu excluir a aplicação das referidas sanções nos casos de abuso de poder político caracterizados pela fraude à cota de gênero, já que esta forma está disposta no § 1º do art. 626, e não no caput. Desta feita, a única consequência ao reconhecimento da fraude à cota de gênero será a aplicação de multa.

Por outro lado, o Senado Federal aprovou o texto do Projeto de Lei 1.951/21, que poderia alterar a Lei dos Partidos Políticos, Lei das Eleições e o Código Eleitoral – normas estas que seriam revogadas pelo novo Código Eleitoral. Segundo o referido Projeto, a Lei 4.737/65 passaria a prever que no mínimo 30% das cadeiras da Câmara dos Deputados, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa do Distrito Federal e das Câmara Municipais, sejam preenchidas por mulheres. A adoção do sistema de reserva de cadeiras é um modelo de cotas defendido por aqueles que pretendem a participação ativa das mulheres na política, já que cria um verdadeiro incentivo aos partidos políticos para que invistam e desenvolvam as campanhas de suas candidatas do gênero feminino, ao invés de, simplesmente, preencherem um número para que os candidatos masculinos concorram e se elejam.

Entretanto, o Projeto de Lei 1.951/21, que aguarda aprovação na Câmara dos Deputados, encontra-se de certa forma prejudicado em decorrência do Projeto de Lei Complementar 112/21, que da mesma maneira aguarda apreciação no Senado Federal, havendo a possibilidade de que a referida Casa, neste momento, busque integrar alguns elementos do Projeto de Lei 1.951/21.

Desta feita, aguarda-se o fim do processo legislativo do novo Código Eleitoral, para saber quais serão os novos moldes dado às cotas de gênero. Porém, uma coisa é certa, os partidos devem estar cientes da gravidade da indicação de candidatas femininas sem que legitimamente concorram ao pleito eleitoral, o que causa desiquilíbrio e disparidade na disputa dos cargos, desestimulando a participação efetiva das mulheres na vida política. Por outro lado, as próprias mulheres devem entender que a participação delas na política não é meramente para atender a um percentual, mas, sim, para garantir que elas sejam ouvidas e respeitadas.

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1 SOUZA, Cristiane Aquino de. A eficácia das cotas eleitorais na argentina e no brasil. Novos estudos jurídicos, v. 21, n. 1, 2016. p. 246-268. Disponível em: < https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/8766/4889 >. Acesso em: 10 set. 2021.

2 SOUZA, Cristiane Aquino de. A eficácia das cotas eleitorais na argentina e no brasil. Novos estudos jurídicos, v. 21, n. 1, 2016. p. 246-268. Disponível em: < https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/8766/4889 >. Acesso em: 10 set. 2021.

3 RODRIGUES, Ricardo José Pereira. A evolução da política de cota de gênero na legislação eleitoral e partidária e a sub-representação feminina no parlamento brasileiro. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v.12, n.1, 2017. Disponível em: < https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/rdp/article/view/10400/5817 >. Acesso em: 14 set. 2021.

4 SOUZA, Cristiane Aquino de. A eficácia das cotas eleitorais na argentina e no brasil. Novos estudos jurídicos, v. 21, n. 1, 2016. p. 246-268. Disponível em: < https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/8766/4889 >. Acesso em: 14 set. 2021.

5 MACEDO, Elaine Harzheim. A cota de gênero no processo eleitoral como ação afirmativa na concretização de direitos fundamentais políticos: tratamento legislativo e jurisprudencial. Revista da AJURIS, v. 41, n. 133, março de 2014. Disponível em: < https://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/11430/2/A_cota_de_genero_no_processo_eleitoral_como_acao_afirmativa_na_concretizacao_de_direitos_fundamentais_politicos.pdf >. Acesso em: 16 set. 2021.

6 PASSARINHO, Nathalia. Candidatas laranjas: pesquisa inédita mostra quais partidos usaram mais mulheres para burlar cotas em 2018. Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47446723 >. Acesso em: 21 set. 2021.

7 ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas; UNIÃO Interparlamentar. Mujeres en la política: 2020. Disponível em: < https://www.unwomen.org/-/media/headquarters/attachments/sections/library/publications/2020/women-in-politics-map-2020-es.pdf?la=en&vs=828 >. Acesso em: 10 set. 2021.

Ana Beatriz Debona
Bacharela em Direito pela Unipar - Universidade Paranaense. Advogada integrante do escritório Fonsatti Advogados Associados.

Isadora da Silva Medeiros
Graduanda em Direito pela Unioeste - Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Colaboradora do escritório Fonsatti Advogados Associados.

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