Migalhas de Peso

Amicus curiae, audiências públicas e decisões judiciais

A sociedade deve aplaudir a amplitude da possibilidade de intervenção do amicus curiae permitida pelo novo código, e os tribunais, principalmente os tribunais superiores, devem ver com bons olhos esta possibilidade.

28/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O CPC de 2015 ampliou as possibilidades de intervenção de amicus curiae no processo civil. Antes restrita a ações de controle concentrado de constitucionalidade, agora é permitida, a sua intervenção, em qualquer processo, desde o primeiro grau de jurisdição. Isto fica claro da leitura do art. 138, caput, que faz menção ao juiz e ao relator. Digna de aplauso a opção do legislador: não só acórdãos devem representar prestação jurisdicional de qualidade, mas também sentenças.

Embora o Código de Processo Civil de 2015 preveja de forma ampla a possibilidade da intervenção do amicus curiae, o fato é que é inigualável a relevância de sua manifestação quando o processo tramita perante os órgãos cujas decisões têm carga normativa expressiva, principalmente quando se trata de tribunais superiores.

Tem-se criticado o sistema de precedentes trazido pelo código afirmando-se que padece de um certo déficit democrático, que não existe quando a jurisprudência amadurece naturalmente, ao longo do tempo. Nos países de civil law, ou seja, em que o juiz tem que decidir de acordo com a lei, a jurisprudência passa a ter relevância, quando, depois de um tempo de discussão, em que há uma dose saudável de incertezas, os tribunais acabam pacificando a sua jurisprudência, normalmente em torno de um acórdão emanado de um tribunal superior.

No entanto, esses institutos que o código criou como por exemplo o IRDR, e alguns que o código aprimorou, como por exemplo os repetitivos, geram a produção de um precedente vinculante de uma maneira que pode ser vista como “precoce”, porque seria anterior ao tempo natural de amadurecimento dar discussão na sociedade.

Por isso é que, acertadamente, o novo código prevê a possibilidade de intervenção de amicus curiae bem como a de realização de audiências públicas1, justamente, para, com isso, provocar um saudável contraditório com a sociedade: é precisamente essa a função da intervenção do amicus curiae e a da realização de audiências públicas.

amicus curiae, como se sabe, foi importado dos países de língua inglesa, e, aos poucos, se foi compreendendo, no Brasil o que, afinal de contas, é um amicus curiae. A doutrina afirma que a primeira vez que o direito brasileiro tratou do tema foi na Lei 6.385 de 1976, na Lei da Comissão de Valores Mobiliários. Neste diploma legal, se estabelece a regra de que a CVM deve ser intimada em todos os processos que cuidam de questões ligadas ao mercado de capitais, para verificar se existe interesse em sua manifestação.2 Na verdade, as manifestações da CVM quando julga ter interesse mais se assemelham a uma prova pericial ou a uma manifestação “explicativa” para o juiz, daquilo que acontece no processo.3 É comum, por exemplo, haver intervenção da CVM para explicar o sentido financeiro de eventos societários que, à primeira vista, podem ter aparência de fraude, o que teria feito com que o investidor chegasse a acionar a sociedade. A intervenção da CVM, num caso como este, poderia ter a finalidade de explicar analiticamente o que ocorreu de forma a demonstrar que não se trataria de ato ilícito.

É curioso registrar também que foi admitida a participação de uma pessoa física como amicus curiae, o que não é comum. Foi a professora Ada Pellegrini Grinover, no ano de 2017, admitida pelo Ministro Marco Aurelio como amicus curiae, num processo em que se discutia a legitimidade de associações para mover ações para a proteção de direitos individuais homogêneos de seus associados. Evidentemente, a sua participação equivaleu em tudo e por tudo à apresentação de um parecer.

Hoje, a ideia que se tem do que seja um amicus curiae amadureceu: entende-se, quase que unanimemente, na doutrina, que o amicus curiae é aquele que tem condições de levar ao tribunal a visão de diversos setores da sociedade a respeito do objeto sobre o qual se discute.4 Por isso é que, de regra, são pessoas jurídicas.

O papel do amicus curiae se reveste de especial relevância quando se trata de sociedades plurais, ou seja, de sociedades em que existem várias “verdades”: de rigor, vários pontos de vista. Evidentemente, por exemplo, numa ação em que se discutem juros bancários é relevante para a corte ouvir alguém que fale pela Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), assim como é importante que alguém se manifeste em nome dos consumidores.

Muito frequentemente, os amici curiae dando a sua visão, abordam os impactos que a decisão no sentido “x” ou “y” terá sobre a sociedade, mais especificamente sobre o setor da sociedade que representa. Usam, naturalmente, argumentos consequencialistas. Projetam, no futuro, as possíveis consequências da decisão, seja ela no sentido “x” ou “y”.

Os argumentos consequencialistas devem ser bem vistos, até mesmo porque, hoje, é a própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, a LINDB que, no artigo 20, prevê a necessidade de o impacto das decisões no mundo real seja levado em conta pelo juiz, ao decidir.

Evidentemente, argumentos consequencialistas não podem ser a única base de uma decisão judicial: o direito posto não pode ser ignorado! Ademais, deve haver demonstração efetiva da possibilidade da ocorrência das consequências apontadas.

amicus curiae deve demonstrar de modo bem fundamentado, de preferência até mesmo com dados estatísticos e matemáticos, o impacto que a decisão do tribunal tem o potencial de gerar no mundo empírico. Esta é uma característica que legitima o uso dos argumentos consequencialistas principalmente no contexto das decisões dos tribunais superiores.

A intervenção de amicus curiae e a realização de audiências públicas enriquecem o debate entre o Judiciário e a sociedade. É interessante constatar-se o quanto as discussões ocorridas durante as audiências públicas e as manifestações dos amicus curiae podem realmente influenciar o teor das decisões dos tribunais superiores.

A manifestação da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (ABECIP), por exemplo, influenciou visivelmente a decisão do Supremo Tribunal Federal que gerou o Tema 249.5 Entendeu-se, nesse acórdão, que o Decreto-lei nº 70/66 tinha realmente sido recepcionado pela Constituição, considerando-se que, além dos argumentos dogmáticos, se a decisão fosse em sentido contrário haveria sério risco à estabilidade do sistema financeiro de habitação.6

Na recente decisão sobre o direito ao esquecimento, Tema 7867, foram inúmeras as manifestações de amicus curiae.8 Decidiu-se no sentido que o direito ao esquecimento é antidemocrático. Entendeu-se que o direito não pode apagar a história. Não há o direito ao esquecimento: ao contrário, há o direito à história, a se saber dos fatos.

Por isso é que se pode, a nosso ver, afirmar que a presença do amicus curiae, quando do julgamento de um recurso que deve gerar precedente vinculante, seja um Recurso Extraordinário, seja um Recurso Extraordinário Repetitivo ou, ainda, um Recurso Especial Repetitivo, reveste-se de forte interesse público. O contraditório com a sociedade, na verdade, legitima o sistema de precedentes. O sistema de precedentes, em última análise, de que os tribunais superiores participam ativamente na construção do direito. Portanto, nada mais desejável do que a participação da própria sociedade nesta construção.

Como consequência dessa constatação, em nossa opinião, não deveria haver discussão sobre o cabimento de recurso que indefere a intervenção do amicus. É evidentemente desejável que a perspectiva de o amicus curiae trazer a visão de um determinado setor da cidade a respeito do conflito, visão essa que pode ser mesmo acompanhada de dados objetivos, não seja avaliada só pelo órgão monocrático, mas seja, também, pelo colegiado.9

O código, evidentemente, permite essa interpretação, já que a lei diz que é irrecorrível a decisão que admite a intervenção do amicus curiae. Nada diz sobre a decisão que não a admite (art. 138 do CPC). Ademais, trata-se de intervenção de terceiro, abrangida pelo art. 1.015, IX do CPC. Isto, ainda, sem se levar em conta o argumento de que dispositivos que restringem direitos (o direito a recorrer, no caso) devem ser interpretados restritivamente.

Por isso é que também nos parece dever-se admitir a intervenção dos amici curiae mesmo após ter sido pautado o recurso.10 Neste momento, ainda há tempo de o amicus exercer algum tipo de influência na decisão, já que, usualmente, o único que tem o voto pronto, neste momento, é o relator.

A sociedade deve aplaudir a amplitude da possibilidade de intervenção do amicus curiae permitida pelo novo código, e os tribunais, principalmente os tribunais superiores, devem ver com bons olhos esta possibilidade, que, em vez de trazer algum tipo de prejuízo, ao contrário disso, têm o condão de contribuir efetivamente para a neutralização das críticas que se fazem ao sistema de precedentes trazido pelo código, legitimando a participação do Poder Judiciário na construção do direito.

_____________

1 Em 2007, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510/DF sobre a Lei de Biossegurança, o Supremo Tribunal Federal realizou a primeira audiência pública de sua história, convocando médicos e especialistas para conferir legitimidade democrática acerca do debate da utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas e terapias.

2 “Art. 31 - Nos processos judiciários que tenham por objetivo matéria incluída na competência da Comissão de Valores Mobiliários, será esta sempre intimada para, querendo, oferecer parecer ou prestar esclarecimentos, no prazo de quinze dias a contar da intimação. (Incluído pela Lei nº 6.616, de 16.12.1978)”.

3 Cassio Scarpinella Bueno esclarece que a intervenção da CVM amplia o objeto do conhecimento do magistrado - que terá mais propriedade para decidir -, mas não significa uma ampliação do objeto do processo, isto é, da matéria a ser decidida (fls. 271 da obra Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro: um terceiro enigmático).

4 Para Cassio Scarpinella Bueno, não há como recusar ser, o amicus curiae, um agente do contraditório.

5 Tese Firmada: É constitucional, pois foi devidamente recepcionado pela Constituição Federal de 1988, o procedimento de execução extrajudicial, previsto no Decreto-lei nº 70/66.

6 No RE 627.106/PR, destaca-se trecho do voto do Min. Alexandre de Moraes: “Assim, considerando que a questão já se encontrava pacificada no âmbito desta SUPREMA CORTE deste 1998, conforme julgado citado alhures, e que não ocorreram alterações nos dispositivos constitucionais ora em debate e tampouco na legislação impugnada (artigos 29, parte final, e 31 a 38 do Decreto-Lei 70/66), bem assim mantém-se o mesmo contexto socioeconômico que envolve o procedimento de execução extrajudicial, entendo que a orientação desta SUPREMA CORTE, há muito já existente a respeito da matéria, deve ser mantida, sob pena de afronta à segurança jurídica, colocando em risco a estabilidade do Sistema Financeiro de Habitação – SFH”.

7 Tese Firmada: É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral - e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível.

8 No RE 627.106/PR, destaca-se trecho do voto do Min. Dias Toffoli: “Todos os amici curiae que falaram também trouxeram elementos extremamente importantes. A Dra. Taís Gasparian, que falou pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), disse que, para se reconhecer o direito ao esquecimento, teríamos que ter por pressuposto o princípio do segredo ou da sonegação de informação. O Dr. Carlos Affonso Pereira de Souza, que falou pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS), falou a respeito do direito ao esquecimento, da preocupação com uma elasticidade conceitual desse direito, ou seja, qual seria a delimitação desse direito. Em minha leitura, sintetizou o problema com a seguinte questão: seria o direito ao esquecimento mais uma categoria emocional, e não uma categoria jurídica? O Dr. Anderson Schreiber, que falou pelo Instituto Brasileiro de Direito Civil, destacou que o direito ao esquecimento é um direito a favor da verdade. O Dr. Anderson defendeu o reconhecimento desse direito tal qual já o fez o STJ neste próprio caso. Destacou a importância de se reconhecer, em nosso ordenamento jurídico, a existência do direito ao esquecimento como um direito à própria verdade. O Dr. Eduardo Mendonça, que falou pelo Google, destacou que o limite deve ser o conteúdo ilícito, ou seja, a questão não é de esquecimento ou de não esquecimento, mas, sim, de lícito ou ilícito. Um direito ao esquecimento sem parâmetros seria um direito à conveniência ou à não conveniência da informação. O Professor Doutor Oscar Vilhena, que falou pelo Instituto Palavra Aberta, destacou que reconhecer o direito ao esquecimento seria permitir graves ameaças à democracia, que a Constituição Federal não autoriza o direito ao esquecimento e que o direito ao esquecimento é um falso direito, um pretenso direito. O Dr. José Eduardo Martins Cardozo, que falou em favor do reconhecimento do direito ao esquecimento pelo Instituto de Direito Partidário e Político, ao revés de outros que se manifestaram, disse exatamente o contrário do que disse Oscar Vilhena: que o direito ao esquecimento é inerente e fundamental aos Estados democráticos. O STJ já o reconheceu no caso Candelária, de conhecimento público e notório. O Dr. André Giacchetta, que falou pela Verizon Media do Brasil Internet Ltda., atual denominação da Yahoo!, destacou que o fundamento no caso González, decidido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, na verdade, não foi o direito ao esquecimento. O fundamento foi a proteção aos dados pessoais. A legislação brasileira, no que diz respeito à LGPD, nesse ponto, teria optado por não reconhecer esse direito ou instituto. Reconhecer, ademais, o direito ao esquecimento de maneira autônoma seria reconhecer a possibilidade da criação de uma indústria de ações a respeito desse direito. A Dr. Adriele Ayres Britto, que falou pelo Instituto Vladimir Herzog, fez praticamente uma reconvenção. Ela disse: não há o direito ao esquecimento e nós temos que reconhecer, sim, o direito à memória, à história factual, dada a realidade. Por fim, o Vice-Procurador-Geral da República, que domina com habilidade as palavras, perguntou - destaco, em síntese, da fala de Sua Excelência -: qual a capacidade do Direito de mudar a história e a realidade? Aquilo que foi dito licitamente pode ser redito licitamente no futuro; aquilo que não podia ser dito no passado, no futuro, continua não podendo ser dito. Com esse breve resumo daquilo que apreendi de cada uma das falas, homenageio a todas as senhoras e os senhores advogados que usaram da tribuna e homenageio o Vice-Procurador-Geral da República”.

9 Também em sua obra Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro: um terceiro enigmático, Cassio Scarpinella Bueno entende que “a decisão que analisar a intervenção do amicus curiae deverá tecer considerações objetivas com as razões pelas quais defere ou indefere sua intervenção e será recorrível para que o colegiado, como um todo, possa manifestar-se acerca de seu acerto ou desacerto”. (p. 208). (g.n.).

10 Assim como admitiu-se no RE 759.244/SP bem como na ADIn 5.563/RR.

Teresa Arruda Alvim
Sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados. Livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.

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