Migalhas de Peso

Conservação não é utilização do imóvel urbano

Conservação não é utilização assim como, no aspecto negativo, abandono e ociosidade não se identificam. Em nosso ordenamento, existe um dever de conservar e uma obrigação de utilizar, imposta pela Constituição Federal, para que a propriedade urbana seja protegida.

24/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A propriedade não é um direito, é uma função social. O proprietário, isto é, o possuidor de uma riqueza tem, pelo fato de possuir esta riqueza, uma função social a cumprir; enquanto cumpre esta missão seus atos de proprietário estão protegidos. Se não a cumpre ou a cumpre mal, se, por exemplo, não cultiva a terra ou deixa arruinar-se sua casa, a intervenção dos governantes é legítima para obrigá-lo a cumprir sua função social de proprietário, que consiste em assegurar o emprego das riquezas que possui conforme seu destino.

Léon Duguit,

As transformações gerais do Direito Privado (1912), cap. 1

Recentemente, em audiência pública que discutia projeto de revisão do plano urbanístico diretor de certa cidade – da qual participei de forma remota -, um cidadão fez a seguinte observação: herdara a casa de seus pais e, como mora em outra cidade e a casa encontra-se desabitada, estava ele inconformado por ter de pagar IPTU progressivo no tempo. Alegava que a casa, devidamente conservada, servia de depósito para o mobiliário dos pais. Fez então a seguinte pergunta que deve ser considerada e respondida: “afinal, conservar não é utilizar?”

Bem, a resposta é desenganadamente negativa. Conservar não é utilizar. São coisas distintas. Sendo o oposto do abandono, conservar significa manter o imóvel nas condições que a lei exige. E quais são elas? Se se tratar de imóvel vazio, a conservação implica em limpeza, construção de muro na divisa frontal e de calçada, que deve ser mantida em boa situação para o trânsito de pedestres. Caso qualquer uma dessas condições não se verifique, o proprietário ou possuidor deve ser autuado pela Prefeitura, multado e a multa pode ser dobrada e depois cobrada na Justiça, havendo descumprimento da obrigação.

Se o imóvel estiver ocupado, ou seja, se houve edificação nele, o proprietário ou possuidor deve mantê-lo em perfeitas condições estruturais e, por suposto, igualmente limpo. Assim, um imóvel edificado transformado em depósito de lixo descumpre a função social da propriedade da mesma forma que um imóvel ocupado mas cuja edificação esteja em ruína, ou seja, em processo de deterioração arquitetônica. Neste último caso, no dever de resguardar a incolumidade pública, o Município poderá interditar a edificação ruinosa, aplicar multa e ainda exigir os reparos necessários ou até a demolição dela, inclusive na Justiça. Para caracterizar o ilícito, deve-se acrescentar ainda que a lei das contravenções penais pune quem se omitir na “providência reclamada pelo estado ruinoso de construção que lhe pertence ou cuja conservação lhe incumbe” (art. 30).

Isto tudo é conservação, não é utilização. Utilização é outra coisa: utilizar é dar ao bem o seu destino urbanístico adequado de acordo com suas características. Assim, se se tratar de uma residência, a utilização adequada é torná-la moradia de uma família. Se se tratar de imóvel comercial, a instalação de um comércio, etc, sempre respeitando o uso previsto no plano diretor ou na lei de zoneamento. Portanto, é perfeitamente possível haver um imóvel bem conservado mas não utilizado, como no caso apontado pelo cidadão. O oposto também será possível, ou seja, poderá haver um imóvel malconservado mas bem utilizado. Imagine-se, por exemplo, algo que não é incomum: um condomínio edilício cuja marquise contenha infiltração ou sobrepeso. Em 2019, num caso rumoroso, um jovem morreu em São Paulo porque a marquise do prédio onde morava seu amigo desabou em cima de ambos, que conversavam sob ela. Casos semelhantes são freqüentes, o que gera responsabilidade civil e criminal (crime de desabamento).

Quanto à utilização, o conceito é distinto e está relacionado ao ordenamento urbanístico local. O imóvel sem utilização é chamado de imóvel ocioso. A ociosidade pode se verificar em três situações: a) quando o imóvel não tem edificação alguma (imóvel não edificado ou vazio); b) quando o imóvel contiver uma pequena edificação em face de suas dimensões (digamos, uma edícula num imóvel de 500 m2, o que caracteriza o imóvel subutilizado); ou c) quando se tratar de imóvel não utilizado, isto é, aquele que foi devidamente edificado mas a edificação encontra-se vazia por um largo período de tempo, o que se pode verificar consultando-se, por exemplo, as concessionárias de água e de energia. Tudo isso precisa estar definido pelo plano local.

O fato é que, juridicamente, tanto o imóvel ocioso (sem utilização) quanto o imóvel malconservado (abandonado ou, pior, em ruína) descumprem a função social da propriedade. A Constituição Federal só garante o direito de propriedade se ela estiver sendo utilizada de maneira socialmente adequada, ou seja, de acordo com as normas urbanísticas locais. O imóvel urbano ocioso ou ruinoso causam evidentes malefícios sociais: no primeiro caso, a cidade poderá ter de se expandir horizontalmente porque os proprietários utilizam o bem como reserva de valor, praticam a especulação imobiliária, provocando a expansão artificial da mancha urbana; no segundo caso porque a incolumidade pública pode ser vulnerada ou mesmo a vizinhança será prejudicada pela existência de um imóvel vazio, com mato alto, por exemplo, tornando-se ele um criadouro de insetos e de outras pragas urbanas (escorpiões, ratos).

No caso de imóvel ocioso, tanto aquilo é verdade que o Estatuto da Cidade, lei de 2001, tornou obrigatória a disciplina das sanções sucessivas para quem exerce de modo antissocial o seu direito de propriedade (art. 42/I). Estas sanções, aplicadas sucessivamente ou progressivamente, são (a) o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórios (porque, em regra, os aproveitamentos do solo são voluntários), (b) o IPTU progressivo no tempo (porque, em regra, a alíquota é fixa, apenas majorada no caso de lote vazio) e, por fim, (c) a desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública. As sanções serão aplicadas aos proprietários de lotes ociosos e onde exista oferta plena de infraestrutura, em áreas identificadas e definidas no plano diretor, como determina a Constituição (art. 182/§ 4º). Trata-se de apenas um aspecto a demonstrar a importância da representação cartográfica que integra o plano diretor para todos os efeitos, não sendo possível cogitar-se de plano urbanístico sem parte normativa e parte cartográfica, juntas, complementares entre si. Em outras palavras, respeitando-se o plano, os proprietários de lotes ociosos não têm o direito subjetivo de mantê-los nessa condição porque a função social da propriedade exige a adequada utilização deles, com o cumprimento de seu destino urbanístico.

De modo que fica claro que a mera conservação do lote urbano, edificado ou vazio, não significa, por si só, o cumprimento da função social da propriedade. É preciso desigualar, distinguir, afastar as situações concretas e, logo, os conceitos delas derivados. A conservação será, certamente, uma condição necessária mas não suficiente para caracterizar a utilização socialmente adequada do imóvel urbano. O lote integra a cidade, dialoga com ela como a parte e o todo e, assim, o proprietário ou possuidor terá obrigações derivadas dessa necessária interação. A Constituição brasileira de 1946 dizia isto, claramente, no art. 147: “O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social”. Portanto, conservação não é utilização assim como, no aspecto negativo, abandono e ociosidade não se identificam. Em nosso ordenamento, existe um dever de conservar e uma obrigação de utilizar, imposta pela Constituição Federal, para que a propriedade urbana seja protegida.

Num quadro-resumo, as coisas ficam mais claras:

Quadro 1. Função social da propriedade urbana: distintas situações/qualificações

 

Quanto à manutenção do bem

Quanto ao destino do bem

Aspecto positivo

Conservação (limpeza, muro, calçada e segurança estrutural)

Utilização na forma do plano diretor ou da lei de zoneamento

Aspecto negativo

Abandono (cujo limite é a ruína estrutural, estado-limite último)

Ociosidade (imóvel não edificado, subutilizado ou não utilizado)

 

José Roberto Fernandes Castilho
Professor de Direito Urbanístico e de Direito da Arquitetura da FCT/Unesp.

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