Migalhas de Peso

Cessão de contratos de concessões públicas

O Supremo Tribunal Federal analisa a constitucionalidade da transferência de contratos de concessão, prevista no art. 27, da Lei nº 8.987/95.

24/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Introdução

O Supremo Tribunal Federal retomou este ano o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.946, proposta pela Procuradoria-Geral da República em 2003, que contesta a constitucionalidade do art. 27 da lei 8.987/95 – Lei das Concessões. O dispositivo questionado prevê a transferência do contrato de concessão pelo concessionário a terceiro ou do controle acionário da empresa concessionária titular da exploração do serviço público.

O relator, Ministro Dias Toffoli, proferiu voto no sentido de julgar inconstitucional a expressão “da concessão”, contida no caput do dispositivo impugnado, ao mesmo tempo em que se posicionou pela constitucionalidade da transferência do controle societário da empresa concessionária. O relator considerou que o art. 175 da Constituição da República vincula a concessão à licitação prévia e que, em razão do caráter personalíssimo dos contratos administrativos, a cessão do contrato de concessão representa burla ao princípio licitatório, extraído do texto constitucional.

Com o objetivo de supostamente reduzir os prejuízos dos usuários dos serviços que serão afetados pela decisão, o relator propôs a modulação de efeitos para permitir que a Administração realize, dentro do prazo de dois anos, a licitação de todas as concessões que tenham sido transferidas com base no dispositivo impugnado. Após o Ministro Alexandre de Moraes acompanhar o voto do relator, o Ministro Gilmar Mendes pediu vista dos autos, suspendendo o julgamento1.

Diante da interrupção da análise da ação e, principalmente, do sentido dos votos que foram até então proferidos, o debate em torno do tema se intensificou. Enquanto entidades ligadas ao setor de infraestrutura alertam para o impacto negativo que o entendimento potencialmente gera para os usuários dos serviços e para o próprio mercado, parcela relevante de acadêmicos e operadores do direito se posicionam pela constitucionalidade integral do art. 27 da lei 8.987/95.

Diante desse cenário de intensa discussão e de riscos à continuidade da prestação de serviços públicos, deve-se valorizar soluções que prezam pela segurança jurídica, a previsibilidade dos negócios que envolvem o Poder Público e o respeito a finalidade pública dos contratos firmados pela Administração. Nesse sentido, é importante posicionar-se pela constitucionalidade do art. 27 da Lei de Concessões.

2. Análise dos argumentos contrários à cessão de contratos administrativos

Preliminarmente, é substancial o destaque de que as cessões podem ser entendidas como a transferência da execução, total ou parcial do objeto, e das obrigações contratuais. Dito isso, esclarece-se que parcela relevante da doutrina entende os contratos administrativos como personalíssimos, razão pela qual se justificaria a inviabilidade de cessão desses contratos. Para essa corrente, a leitura do art. 175 da Constituição Federal vincula os contratos às condições subjetivas previstas no certame. Nas hipóteses em que esse conteúdo sofra modificações, como é o caso da cessão contratual, se estaria diante de casos de burla à licitação.

Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, os contratos administrativos possuem natureza intuito personae porque “são firmados em razão das condições pessoais do contratado, apuradas no momento da licitação”.2 Desse modo, em razão da deferência ao procedimento que alçou o licitante vencedor à posição de concessionário, o inciso VI, do art. 78, da lei 8.666/93, proíbe a cessão ou transferência, total ou parcial, do contrato, desde que não admitidas no edital e no contrato.

Por esse ângulo, argumenta-se que, em caso de o concessionário não conseguir manter a execução do contrato, é preciso que ocorra um novo procedimento licitatório para que se habilite outro particular, seguindo as condições específicas do novo edital e contrato.3

Entende-se, portanto, tratar-se um de posição extraída a partir de uma leitura restritiva do art. 175 da Constituição, que, ao falar sobre a concessão e permissão da prestação de serviços públicos, utiliza a expressão “sempre por licitação”. Como adotado no voto do relator, Ministro Dias Toffoli, a transferência de concessão mediante somente a anuência da Administração e da verificação do enquadramento do particular nas condições de habilitação originais, burlam o princípio licitatório, razão pela qual defendem a inconstitucionalidade do dispositivo.

3. Contratos administrativos são personalíssimos?

Um dos argumentos levantados contra a previsão de cessão dos contratos de concessão é o suposto caráter intuito personae dos contratos administrativos. Ou seja, entende-se que o concessionário não pode repassar a execução do contrato a terceiro, com ou sem a concordância da Administração, em razão da vinculação ao procedimento licitatório que o habilitou e o consagrou vencedor.

Nesse sentido, a defesa dos que entendem os contratos administrativos como negócios jurídicos personalíssimos se funda na ideia de que a Administração, ao decidir celebrar o contrato com determinado particular, considera, de maneira decisiva, características pessoais e subjetivas do contratado. Em razão disso, a transferência do contrato ou mesmo do controle acionário da sociedade titular do serviço público conflitaria, em tese, com a própria natureza jurídica dos contratos firmados pelo Poder Público.

Retroagindo historicamente, Marçal Justen Filho4 ajuda a esclarecer a origem do entendimento de que os contratos administrativos são personalíssimos e sua inadequação para a atual realidade brasileira. Esse posicionamento surgiu na França, em meados do séc. XX, em um contexto em que a Administração Pública daquele país não estava vinculada ao procedimento licitatório prévio para realizar contratações. Em razão disso, valia-se de meios discricionários para a escolha do contratante, fazendo prevalecer características subjetivas dos particulares no momento da seleção.

_________

1 O julgamento se encontra suspenso até a presente data: 21/9/2021.

2 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33. Ed – Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 590.

3 SCHWIND, Rafael Wallbach. Transferência das concessões e do controle acionário das concessionárias: cabimento, aprovação prévia e requisitos necessários. In: CARVALHO, André Castro; MORAES E CASTRO, Leonardo Freitas de (Orgs.). Manual do Project Finance no Direito Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2016, v. 1, p. 409-437.

4 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 1092.

Thaís Marçal
Mestre em Direito pela UERJ. Advogada e árbitra listada no CBMA, CAMES e CAMESC. Coordenadora acadêmica da ESA OAB/RJ.

Caio Macêdo
Graduando em Direito pela FND-UFRJ. Membro da Liga Acadêmica de Direito Administrativo da FND-UFRJ.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

IAC do autismo: TJ/PE suspende processos sobre custeio de terapias para TEA

25/11/2024

Médicos e o direito à restituição de contribuições excedentes ao INSS: Saiba como recuperar seus valores

25/11/2024

Base de cálculo do ITCMD

26/11/2024

O contrato de trabalho a título de experiência e a estabilidade gestacional

25/11/2024

Breves considerações sobre os crimes da abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado

26/11/2024