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Cobertura dos planos de saúde e rol da ANS: impactos de eventual “overruling” do STJ

As consequências de eventual mudança de entendimento do STJ sobre a natureza jurídica do rol de cobertura da ANS.

22/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

1. INTRODUÇÃO

O tema da judicialização da saúde no Brasil pode ganhar um novo componente. É que a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) iniciou em 16/09/2021 a revisitação1 do tema da natureza jurídica do rol de procedimentos e eventos em saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que estabelece o que deve ser coberto pelas operadoras de plano de saúde.

O julgamento foi iniciado em 16/09, mas suspenso após a prolação do voto do Ministro Luis Felipe Salomão, relator do EREsp 1886929/SP, presente pedido de vista da Ministra Nancy Andrighi. Assim, o julgamento poderá ser retomado na próxima sessão, que segundo o calendário oficial do STJ, seria em 22/09 (as próximas datas são: 13 e 27 de outubro; 10 e 24 de novembro; não consta data em dezembro). Mas ainda não há data certa para a continuidade.

A questão pode ser resumida na seguinte equação jurídica: o rol de cobertura estabelecido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é taxativo ou é exemplificativo? Pode uma cláusula contratual limitar a cobertura de procedimentos ou tratamentos invocando a taxatividade desse rol? Essa é a questão que o STJ começou a reexaminar no dia 16/09.

Mas qual a novidade? Não é pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que esse rol da ANS é meramente exemplificativo? Era. É que em 10/12/2019 a Quarta Turma do STJ mudou seu entendimento e passou a interpretar que o rol da ANS é taxativo. A partir de então instaurou-se cenário de insegurança jurídica: nos recursos julgados pela Terceira Turma do STJ prevalece o entendimento de que o rol é exemplificativo, mas na Quarta Turma se julga recursos com base na premissa de que o rol é taxativo.

Diante de julgamentos com sentidos opostos e da necessidade de preservar a coerência, estabilidade e integridade na jurisprudência (art. 926 do NCPC), é mais do que urgente que a Segunda Seção do STJ defina a hermenêutica que deve prevalecer, ainda que não se esteja em sede de processo sob o rito dos recursos repetitivos. Afinal de contas, o que está em jogo é o direito à saúde e à vida dos pacientes.

2. OS INDÍCIOS DE QUE O OVERRULING DO STJ É INEVITÁVEL

Em 12 de agosto do corrente ano o STJ participou como apoiador do “Seminário sobre novas regras da ANS busca soluções para conciliar interesses de usuários e planos de saúde2 com painéis relevantíssimos sobre a nova sistemática de atualização do rol de coberturas pela ANS, segundo definido na nova Resolução Normativa ANS 470, de 09/07/20213. O ponto que se diz mais importante da citada norma é a redução para o máximo de até 18 meses do prazo de conclusão do processo de atualização do rolver-se-á que essa tímida e rasa previsão da ANS foi drasticamente reduzida para o prazo de até seis meses pela MP 1.067, de 02/09/2021.   

O Evento contou com a presença de Ministros do STJ, como Luis Felipe Salomão (relator dos processos no STJ), Paulo de Tarso Sanseverino, Villas Bôas Cueva e Marco Aurélio Bellizze (estes dois últimos, integrantes da 3ª Turma do STJ, e, portanto, membros da Segunda Seção). No evento e nas decisões da Quarta Turma do STJ, patenteou-se a possibilidade de um entendimento intermediário, uma espécie de “taxatividade mitigada”, ou seja, o STJ definiria que o rol é taxativo, mas comporta exceções. A presença de 03 Ministros da Terceira Turma do STJ nesse evento e as abordagens realizadas permitiram colher a sinalização de que eles podem aderir à tese do Min. Salomão, com o que o placar estimado na Segunda Seção seria em tese de 8 a 2 em prol de uma taxatividade “temperada” do rol da ANS. A divergência e oposição ao voto do Ministro Luis Felipe Salomão partirá da Ministra Nancy Andrighi.

Seja como for, ao realizar o julgamento, é de rigor que a Segunda Seção do STJ reflita e enfrente expressa e detalhadamente as consequências imediatas aos pacientes de eventual confirmação do overruling sobre o tema, e isso por imperativa disposição do art. 20 da LINDB, que determina sejam consideradas “as consequências práticas da decisão”.

E, nesse ponto, com todas as vênias, não se viu no acórdão da eg. Quarta Turma sinalizador do possível overruling4 e nem nos acórdãos posteriores do mesmo órgão judicante fundamentação equacionadora das consequências que a guinada jurisprudencial pode causar aos consumidores.

Os fundamentos expostos em 16/09 no voto oral do Exmo. Ministro Salomão no EREsp 1886929/SP, bem como nos acórdãos da Quarta Turma (acórdão do REsp 1.733.013/PR, julgado em 10/12/2019 e seguintes) e nos painéis do evento “Seminário Análise Econômica dos Atos Regulatórios na Saúde Suplementar” apoiado pelo STJ em agosto/2021, tangenciam essencialmente: (i) a necessidade de observar-se o equilíbrio econômico-financeiro e atuarial e a segurança jurídica no contrato de assistência à saúde; (ii) a elaboração da lista pela ANS já levaria em conta os princípios da Avaliação de Tecnologias em Saúde – ATS, a observância aos preceitos da Saúde Baseada em Evidências – SBE e o resguardo da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do setor; (iii) o rol mínimo e obrigatório de procedimentos e eventos em saúde constituiria relevante garantia do consumidor para propiciar direito à saúde, com preços acessíveis, contemplando a camada mais ampla e vulnerável da população; (iv) se exemplificativo for, os planos de saúde estariam obrigados, tacitamente, a fornecer qualquer tratamento prescrito, restringindo a livre concorrência e negando vigência aos dispositivos legais que estabelecem o plano-referência de assistência à saúde (plano básico) e a possibilidade de definição contratual de outras coberturas; (v) há obrigatoriedade de a ANS realizar periodicamente e com prazo certo a atualização do rol; (vi) sob pena de se inviabilizar a saúde suplementar, a aplicação do CDC deve ser teleológica e visar a harmonia e o equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores, pois o rol da ANS é elaborado de acordo com aferição de segurança, efetividade e impacto econômico nos planos de saúde; (vii) deve-se reconhecer que o rol é taxativo e comporta exceções, como, por exemplo, o revelado no caso concreto em julgamento no dia 16/09/2021, qual seja, o quadro depressivo grave de paciente e a indicação do tratamento via estimulação magnética transcraniana (EMT) prescrita por médico psiquiatra, destacando-se ser procedimento já reconhecido como eficaz pelo Conselho Federal de Medicina, ainda, com nota técnica favorável pelo NatJus e endosso do FDA norte-americano; (viii) para avaliação dos casos excepcionais, é recomendável que os magistrados se valham das notas técnicas e pareceres do Natjus como suporte técnico.

Bem de ver, ainda, que em notícia5 sobre o “Seminário Análise Econômica dos Atos Regulatórios na Saúde Suplementar”, destacou-se a exposição realizada pelos Ministros Marco Aurélio Bellizze e Ricardo Villas Bôas Cueva (integrantes da Terceira Turma):

O ministro Marco Aurélio Bellizze, do STJ, abriu o Painel I sobre “A resolução 470 da ANS”, destacando que o debate tinha como foco principal o rol da ANS. “O rol taxativo é um dos principais fundamentos do equilíbrio econômico”, avaliou. “A 2ª Seção do STJ está em vias de decidir se o rol é taxativo ou exemplificativo. A jurisprudência era pacífica pela natureza meramente exemplificativa, mas em 2019, a 4ª Turma do STJ reconheceu a natureza taxativa do rol de procedimentos”, explicou. O magistrado ressaltou que o tempo de atualização do rol alterado pela Resolução 470 da ANS deve ser levado em conta na análise da questão.

[...]

Na abertura do segundo painel, Análise Econômica dos Atos Regulatórios, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva reconheceu que as decisões judiciais, em sua maioria, não levam em contas as consequências econômicas no setor de Saúde, mas a dimensão custo é fundamental para que o sistema seja minimamente viável.

“Isso começa a mudar com a lógica consequencialista, na qual o juiz, o administrador e o aplicador do Direito são obrigados a levar em conta as consequências que as suas decisões terão no mundo real”, avaliou. O ministro afirmou que “a chamada lei de Liberdade Econômica também introduziu a Análise de Impacto Regulatório, ferramenta que já é vastamente usada no mundo inteiro e que é fundamental para que se possa aquilatar o custo e o benefício de uma determinada regulação”. (grifei)

Parece, assim, que os ministros da Terceira Turma do STJ que participaram do citado evento tendem mesmo a acompanhar o Ministro Luis Felipe Salomão para reconhecer a taxatividade “mitigada” do rol.

________

1 EREsp 1886929/SP e EREsp 1889704/SP.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 REsp 1.733.013/PR, Relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 10/12/2019, DJe 20/2/2020.

5 Disponível aqui.

Wilson Knoner Campos
Professor do IBDCNI - Instituto Brasileiro de Direito, Conformidade e Normas Internacionais. Sócio do escritório Bertol Sociedade Advogados.

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