Migalhas de Peso

O Estado e o dever de respeito à vedação de retrocesso social

Os direitos sociais denominados direitos fundamentais, uma vez positivados no sistema jurídico integram o rol de direitos humanos.

20/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Introdução

Nos termos do preâmbulo da Constituição Cidadã de 1988, por ter a ampla participação popular durante sua elaboração e a constante busca de efetivação da cidadania, foi instituído um Estado Democrático destinado a assegurar os seguintes valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias: a) o exercício dos direitos sociais e individuais; b) a liberdade; c) a segurança; d) o bem-estar; e) o desenvolvimento; e) a igualdade; e f) a justiça.

Sendo democrática a declaração de princípios e defesa dos direitos individuais é possível distinguir entre normas declaratórias, que estabelecem direitos que são bens e vantagens constitucionalmente previstos, e normas assecuratórias, que fixam garantias, isto é, meios ou recursos destinados a assegurar o pleno exercício de direitos fundamentais ameaçados ou a promover sua justa reparação caso já violados.

Os direitos fundamentais nascem com a pessoa humana e o acompanham até o fim de sua existência, a ninguém, nem mesmo o seu titular é facultado despojar-se de tais direitos considerados personalíssimos e indisponíveis, o que daí denota-se que estão associados à dignidade da pessoa humana, e considerá-los em caráter relativo, coloca em risco e na berlinda o principal princípio de um Estado Social e de Direito e o verdadeiro alcance do princípio do não retrocesso trata-se de verdadeira blindagem e proteção a esses direitos, inteligência do próprio artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV, da Constituição estabeleceu que não fosse objeto de deliberação proposta de emenda constitucional tendente a abolir direitos e garantias fundamentais.

Importante esclarecer que só um método interpretativo constitucional dos direitos fundamentais em harmonia com os postulados do Estado Social e Democrático de Direito pode iluminar e guiar a reflexão do jurista para a resposta alternativa acima esboçada tem por si a base de legitimidade haurida na tábua dos princípios gravados na própria Constituição arts. 1º (fundamentos), 3º (objetivos fundamentais) e 170 (ditames da justiça social), e tornam irrecusavelmente inconstitucional toda inteligência restritiva da locução jurídica, "direitos e garantias individuais" das cláusulas pétreas, as quais não podem servir de argumento nem de esteio à exclusão dos direitos sociais.

Devemos destacar que a tese de existência e valoração vinculada à dignidade da pessoa humana do princípio do não retrocesso social tem sentido contrário o preconizado princípio da reserva do possível de nuança desconectada da relevância e fundamentalidade dos direitos sociais, e justificador da omissão estatal no que se refere à efetivação de políticas públicas falsamente justificadas por fatores de ordem econômica.

A emprego do princípio da reserva do possível especialmente em países periféricos ou em desenvolvimento acaba por justificar discursos de cunho neoliberal autorizador da ação política que visa o cumprimento de medidas retrocessivas que afrontam o Estado Social Democrático de Direito muitas vezes sob alegações e falsas premissas de ausência de aportes financeiros, que se revelam de fato por alocação de recursos equivocadas dissociada de políticas públicas destinadas à consecução do princípio da dignidade da pessoa humana e distantes das reais necessidades dos cidadãos.

O Estado de Direito contempla em sua essência o princípio do não retrocesso social, por tornar possível a concretização da segurança jurídica, e a materialização de todas as atividades estatais, quer seja de natureza legislativa, onde a atuação do legislador deve se pautar nos fundamentos e estruturas definidas pela constituinte originário e nos valores da sociedade; seja nas de natureza administrativa na concepção e efetivação de políticas públicas de inclusão e erradicação das mazelas que permeiam a sociedade, e por fim, nas funções dos judiciários, de verdadeiro guardião do Estado de Direito através de medidas corretivas às ações que visem macular o princípio da dignidade da pessoa humana.

Diante dessa interpretação constitucional, o artigo abordará o Estado e seu dever de respeito ao princípio de vedação e retrocesso, preservando a margem de conformação das leis, o que lhe permite, em casos específicos e sensíveis, restringir ou condicionar determinado padrão normativo já consolidado, desde que não se retroceda a um patamar inferior ao do "nível mínimo" de proteção constitucionalmente requerida e não se ofenda o princípio da proibição da proteção insuficiente.

Tatiana Conceição Fiore de Almeida
Advogada atua com consultoria e mentoria prev./trab e planejamento de aposentadoria de atletas; advogada da T.U.P.; C.E.O no ITC.TFA, doutoranda em Direito pela UBA, professora, autora, articulista.

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