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Lawfare: retórica vazia ou prática perversa?

O lawfare é uma prática perversa, capaz de fulminar as bases de um Estado Democrático de Direito, na medida em que potencializa, indevidamente, isto é, em desrespeito aos direitos fundamentais, o poder punitivo estatal.

20/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

É facilmente perceptível que, durante as últimas décadas, o direito e o processo penais passaram por significativas mudanças.

Tal panorama se deve, em grande escala, à alta complexidade de alguns crimes atualmente apurados, cujo alcance é global (lavagem de dinheiro, evasão de divisas, organização criminosa, entre outros).

Ademais, não se pode desconsiderar que, nos últimos anos, personagens políticos brasileiros foram, em maior número, implicados em persecuções penais, o que atraiu em demasia a atenção da mídia.

Realmente, jornais, impressos e/ou televisivos, bem como redes sociais, reproduzem cada passo de operações policiais e de processos criminais, sendo certo que uma considerável parcela da sociedade acompanha esse desenrolar como uma verdadeira novela da vida real.

Aliado a isso, vivenciamos um momento turbulento no que toca ao equilíbrio entre os três Poderes da República. Com efeito, além de diversas notícias (procedentes ou não) envolvendo desvios funcionais, há, constantemente, ataques a membros do Poder Judiciário e ameaças de descumprimento de decisões judiciais, o que é extremamente pernicioso para a higidez democrática.

Por outro lado, ao Ministério Público, instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, assim estabelecido pela nossa Constituição Federal, em algumas hipóteses, é atribuída uma performance tendenciosa, facciosa, mormente no que concerne à promoção de ações penais públicas, embora lhe caiba a relevante função de fiscal da ordem jurídica.

Nessa toada, uma crítica, ainda que muitas vezes infundada, é recorrente a autoridades responsáveis pela detecção de ilícitos: a busca incessante por um protagonismo político, ainda que, para isso, seja necessário manipular estrategicamente o ordenamento jurídico vigente.1

Diante desse cenário, avulta em importância a análise da teoria do lawfare (combinação das palavras law (lei) e warfare (guerra)), bem como sua relação com os ideais de um Estado Democrático de Direito.

Em sua origem, a referida teoria era comumente utilizada para tratar de questões militares. Assim, segundo a doutrina norte americana, lawfare seria a utilização estratégica do sistema jurídico, para fins de obtenção de algum objetivo operacional/militar.2

Todavia, no decorrer dos anos, lawfare assumiu novos significados. Conforme estudos mais recentes, o eventual abuso da legislação vigente pode ter por finalidade interesses políticos3 e, até mesmo, comerciais (empresariais).4 Dessa maneira, os meios legais disponíveis são taticamente manejados com o escopo de afetar publicamente um determinado rival.

Nessa linha de raciocínio, muitos acusados, geralmente pessoas públicas em geral, alegam, em solo brasileiro, a ocorrência de lawfare como matéria de defesa. Destarte, sustentam que persecuções penais são envidadas de forma temerária, por intermédio da utilização abusiva/estratégica do ordenamento jurídico pátrio, com vistas exclusivamente a impactar negativamente o acusado nos cenários político, comercial e/ou social.

Para tanto, o papel da mídia, seja promovendo uma verdadeira desilusão popular em relação ao sistema, seja avalizando as providências jurídicas encetadas, assume destaque na conjuntura ora traçada, tendo em vista seu incomensurável poder de dissuasão.

De fato, quando medidas cautelares, condenações e vazamentos de materiais sigilosos recaem sobre personagens políticos ou figuras públicas, a referida teoria é frequentemente invocada. Isto é, defende-se que, em verdade, a persecução penal possui uma finalidade política, e não jurídica.

É bem verdade que, em muitas oportunidades, a discussão é colocada de maneira enviesada e condicionada por questões político-partidárias, o que compromete sua análise científica.

Todavia, em várias ocasiões, não estamos diante de uma retórica vazia. Além das diversas (e sólidas) contribuições doutrinárias já existentes,5 inclusive no Brasil,6 não é possível fechar os olhos para casos em que há, claramente, o uso estratégico dos meios legais disponíveis.

À guisa de ilustração, temos, com frequência, mormente em maxiprocessos criminais, decretação de medidas cautelares reais e pessoais ao arrepio da legislação e da jurisprudência pátrias, abuso do poder de denunciar, fragmentação estratégica de ações penais, de sorte a dificultar o direito de defesa, publicidade opressiva, vazamento seletivo de informações sigilosas, perseguição de parentes, uso ilegal da colaboração premiada, entre outros estratagemas perniciosos.

Ressalte-se que, em outros casos, em tese mais simplórios, é possível haver, igualmente, a prática de lawfare. Com efeito, em cidades de menor porte populacional, a manipulação abusiva dos meios legais, como forma de perseguir um determinado “alvo”,7 é, por vezes, ainda mais acintosa, porquanto as inclinações de autoridades responsáveis pela persecução penal, de ordem pessoal e/ou política, são geralmente mais evidentes e de conhecimento da comunidade em questão.

De qualquer forma, o lawfare é uma prática perversa, capaz de fulminar as bases de um Estado Democrático de Direito, na medida em que potencializa, indevidamente, isto é, em desrespeito aos direitos fundamentais, o poder punitivo estatal.

Nos dias de hoje, é sempre válido lembrar que o Ministério Público e a autoridade policial devem agir de forma impessoal, ou seja, independentemente da qualidade do acusado e do caso, e não de maneira facciosa. A rigor, por determinação constitucional, a administração pública em geral deve obediência ao princípio da impessoalidade, consubstanciado no artigo 37 da Constituição Federal. Consequentemente, sua atuação, além de seguir o arcabouço legal (e principiológico), prescinde de qualquer tendência ou inclinação.8

Ao ensejo, cabe assinalar que, caso não haja a devida identificação e responsabilização de situações envolvendo lawfare, a manipulação abusiva do ordenamento jurídico tornar-se-á uma possibilidade contra todos os cidadãos, incluindo, a depender do contexto, os que defendem, em prol de finalidades nobres, como, por exemplo, o combate à corrupção, a flexibilização das regras do jogo processual.9 Em outras palavras, a aplicação segura da legislação, sem distinções e abusos, é uma garantia para todos os cidadãos em face do Estado.10

________

1 Ives Gandra apresenta o seguinte relato: “Quando comecei a advogar, em 1957, como mero solicitador acadêmico, o Poder Judiciário e o Ministério Público exerciam com competência e discrição suas funções, não buscando as luzes da ribalta e da admiração popular, com o que sempre foram extremamente respeitados.” (MARTINS, Ives Gandra da Silva. A advocacia e o Ministério Público. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, 67, 2018. p. 227)

2 Sobre o tema, ver: DUNLAP JR., Charles J. Lawfare Today: A Perspective. InYale Journal of International Affairs, New Haven, v. 03, n. 01, pp. 146-154, 2008.

3 “The definition has been further expanded to include the wrongful manipulation of the legal system to achieve strategic political or military goals”. (TIEFENBRUN, Susan W. Semiotic definition of lawfare, In: Case Western Reserve Journal of International Law, v. 43, n. 01, pp. 28-60, 2010).

4 ZANIN MARTINS, Cristiano; ZANIN MARTINS, Valeska Teixeira; VALIM Rafael. Lawfare: uma introdução. São Paulo: Editora Contracorrente, 2019.

5 KITTRIE, Orde F. Lawfare: Law as weapon of war. New York: Oxford University Press, 2016.

6 SANTORO, Antonio Eduardo Ramires; TAVARES, Natália Lucero Frias. Lawfare Brasileiro. 2ª edição. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.

7 Cuida-se de jargão comumente utilizado em investigações penais e que revela, em nossa opinião, o real tratamento dado a alguns investigados.

8 Ao comentar o princípio da impessoalidade, André Tavares observa que “de todas as atividades desempenhadas pelo Estado talvez seja a administrativa aquela que mais está sujeita aos desvios. O administrador enfrenta o desafio de não transformar sua função pública em uma conquista profissional da qual possa se beneficiar pessoalmente. De outra parte, a imposição de que o administrador trabalhe com soluções concretas que afetam um grande número de indivíduos faz com que sua pessoa acabe aparecendo muito mais do que a pessoa do legislador ou mesmo dos magistrados.” (TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 1103)

9 “A Constituição, pelo menos pelo que nela está escrito, e é natural num regime democrático, protege o indivíduo contra as arbitrariedades dos agentes públicos. Se o Estado tem o monopólio da força, ela há que ser exercida com estrita legalidade. É mais perniciosa a ilegalidade quando “virtuosa”, supostamente vestida de bons propósitos, dificultando o controle por parte dos investigados ou acusados.” (MENEZES, Olindo. Prisões cautelares: direitos e garantias no processo penal. In: PACELLI, Eugênio; CORDEIRO, Néfi e REIS JUNIOR, Sebastião dos. (Coord.). Direito penal e processual penal contemporâneos. São Paulo: Atlas, 2019. p. 190)

10 “Um Estado Democrático de Direito apenas sobrevive, em todo seu esplendor, na medida em que as garantias processuais penais consagradas no texto das Constituições e das leis processuais têm sua concretização devidamente realizada pelos Tribunais. Nesse sentido, assume importância fundamental o reconhecimento de uma tarefa para a hermenêutica contemporânea: o desenvolvimento de anteparos para a atividade jurisdicional, sob pena de que os direitos e garantias inscritos na Constituição, ao invés de serem concretizados pela realização judicial do direito, sejam desvirtuados em uma não concretização.” (STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. O que é isto – as garantias processuais penais? 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019. p. 130)

Flávio Mirza
Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Doutor e Mestre em Direito pela UGF. Professor da UERJ e da UCP. Sócio de Mirza & Malan Advogados.

Diogo Malan
Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Doutor em Direito Processual Penal pela USP. Mestre em Direito pela UCAM. Professor da UERJ e da UFRJ. Sócio de Mirza & Malan Advogados.

André Mirza
Mestre em Direito Constitucional (IDP/DF). Pós-Graduado em Direito Penal Econômico e Europeu (Univ. de Coimbra). Autor de "Acesso aos autos na colaboração premiada". Sócio de Mirza & Malan Advogados.

Amanda Estefan
Mestranda em Direito Processual pela UERJ. Sócia de Mirza & Malan Advogados.

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