Antes da vigência do Código de Processo de 2015, o instituto da Reclamação e as respectivas questões complementares (tais como: legitimidade, prova, tutela antecipada, conteúdo da decisão e procedimento) eram normatizados pela lei 8.038/90, especificamente, nos artigos 13 a 18.
Após a publicação da citada lei, surgiram importantes debates, nos Tribunais Superiores, que concederem relevantes contornos jurídicos à Reclamação. Dentre os temas discutidos, foram firmadas algumas orientações restritivas quanto ao cabimento da Reclamação, como, por exemplo, a interposição da Reclamação apenas pelas partes sujeitas aos efeitos da decisão do Tribunal a quo.
Com o advento do Código de Processo de 2015, a lei 8.038/90 foi revogada parcialmente e a Reclamação e demais assuntos relativos foram tratados, extensivamente, nos artigos 988 a 993 do Novo Código de Processo Civil.
O legislador, no caput e incisos do artigo 988 do Código de Processo de Civil de 2015, estabeleceu quem pode apresentar a Reclamação e em quais hipóteses é admissível o cabimento, sendo elas: I) preservação da competência do tribunal; II) garantia da autoridade das decisões do tribunal; III) garantia da observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade: IV) garantia da observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência.
A redação original do artigo 988, inciso IV do Código de Processo Civil de 2015 previa o cabimento de Reclamação para assegurar a observância de precedente proferido em julgamento de casos repetitivos, os quais, nos termos do artigo 928 do Código de Processo Civil, abrangem o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e os recursos extremos repetitivos.
No entanto, durante o período da vacatio legis do Código de Processo Civil de 2015, o texto do inciso IV do artigo 988 foi alterado pela lei 13.256 de 2016, suprimindo a previsão de Reclamação como recurso cabível para garantir a observância de entendimento firmado em de sede repetitivos dos Tribunais Superiores.
O §5º do artigo 988 também foi modificado. Antes da lei 13.256, o citado parágrafo mencionava apenas e tão-somente a impossibilidade de propositura de Reclamação após o trânsito em julgado da decisão recorrida. Todavia, com a lei de 2016, o legislador, além de manter o texto original no inciso I, acrescentou o inciso II, no qual declarou a inadmissível de Reclamação que objetive assegurar a observância de acórdão de recurso extraordinário em repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quando não esgotadas as instâncias ordinárias.
Assim sendo, verifica-se clara contradição no texto legal. Isto porque, enquanto o inciso IV do artigo 988 indica que não é possível a propositura de Reclamação para preservar entendimento firmado em sede de repetitivos dos Tribunais Superiores, o inciso II do §5º do artigo 988, por outro lado, determina, implicitamente, que é admissível a propositura da Reclamação para essa hipótese, desde que as vias ordinárias tenham sido esgotadas.
Ao analisar o inciso II do §5º do artigo 988, Zulmar Duarte de Oliveira Jr1 interpreta o parágrafo como está disposto no Código de Processo Civil, ou seja, com a possibilidade de apresentação de Reclamação para garantir a observância de entendimento firmado em sede de repetitivos extremos.
Consonantemente, este também é o entendimento do Supremo Tribunal Federal.
Do julgamento do Ag. Reg. na Reclamação 37.8532 e do Emb. Decl. na Reclamação 40.5483, os ministros Relatores Ricardo Lewandowski e Alexandre de Moraes, respectivamente, apontaram a possibilidade da propositura da Reclamação para a hipótese mencionada acima, desde que esgotadas as vias ordinárias.
Contudo, o Superior Tribunal de Justiça possui posicionamento diverso.
A Ministra Nancy Andrighi, no julgamento da Rcl 36.476-SP, assentou que:
“(...) antes mesma de entrar em vigor o CPC/2015, foi editada e publicada a lei 13.256/2016, que operou mudanças significativas em diversos institutos e regras processuais, especialmente em relação aos Tribunais Superiores.
Especificamente quanto à reclamação, houve alteração da redação do art. 988 do CPC, que passou a complementar o cabimento de reclamação para: (...)
Ou seja, a anterior previsão de reclamação para garantir a observância de precedente oriundo de casos repetitivos foi excluída, passando a constar, nas hipóteses de cabimento, apenas o precedente oriundo de IRDR, que é espécie daquele. Houve, portanto, a supressão do cabimento para a observância de acórdão proferido em recursos especial e extraordinário repetitivos.
Contudo, paradoxalmente, a mesma lei 13.256/16 promoveu outra mudança no art. 988 do CPC, agora em seu parágrafo 5º. Foi acrescentado a este parágrafo, que inicialmente apenas asseverava a inadmissibilidade da reclamação proposta após o trânsito em julgado da decisão reclamada, um segundo inciso, tratando da inadmissibilidade da reclamação ‘proposta para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quando não esgotadas as instâncias ordinárias’.
Quer dizer, no mesmo ato normativo, o legislador visivelmente excluiu uma hipótese de cabimento da reclamação e, passo seguinte, regulamentou essa hipótese que acabara de excluir, agregando-lhe um pressuposto de admissibilidade.
Ora, sob um ponto de vista lógico, essas duas modificações são inconciliáveis entre si.
Consequentemente, apenas da conjugação da redação atual dos incisos do art. 988 e do inciso II do parágrafo 5º, não é possível extrair, com segurança, conclusão quanto ao cabimento, ou não, da reclamação que visa à observância de tese proferida em recursos especial ou extraordinário repetitivos.
Por isso, mostra-se impositiva a investigação de outros elementos interpretativos que conduzam à solução da questão.”
Além disso, a Ministra também apresentou argumentos de que, na exposição de motivos da PL 2.468/15, a intenção do legislador, com a lei 13.256/16, era de “não inviabilizar a prestação jurisdicional no STJ e no STF”, mas de dispensar os Tribunais Superiores “do julgamento de reclamações e agravos que tenham por objeto temas decididos em recursos repetitivos e em repercussão geral”.
RECLAMAÇÃO E OBSERVÂNCIA DE ACÓRDÃO PROFERIDO EM RECURSOS EXTREMOS REPETITIVOS NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Na prática empírica, quando o Tribunal a quo aplica incorretamente tese fixada pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de recurso especial repetitivo, o recurso cabível, de acordo com o artigo 105, inciso III, alínea “a”, da Constituição Federal de 1988, é o recurso especial.
Todavia, normalmente, o seguimento do recurso especial é negado pela presidência do Tribunal recorrido, sob a justificativa de conformidade entre o acórdão recorrido e o entendimento firmando pelo Superior Tribunal de Justiça em recurso especial repetitivo, nos termos do artigo 1.030, inciso I, alínea “b”, do Código de Processo Civil. Sendo que, porém, a tese firmada não foi aplicada corretamente, na realidade fática.
O único recurso cabível, diante deste cenário, é o agravo interno, nos termos do artigo 1.030, §2º, do Código de Processo Civil, e ele é analisado e julgamento pela Câmara Especial de Presidentes do Tribunal de origem, a qual, quase sempre, nega provimento aos recursos.
Assim sendo, é praticamente impossível a matéria debatida alçar o Superior Tribunal de Justiça para reverter a ilegalidade aplicada, especialmente no que tange à interposição de Reclamação.
Contudo, em maio de 2021, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do AgInt no Recurso em Mandado de Segurança 53790-RJ, de relatoria do Ministro Gurgel de Faria, entendeu que, ao invés de Reclamação, o recurso cabível seria o Mandado de Segurança, para essa hipótese:
“PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. IMPETRAÇÃO CONTRA DECISÃO JUDICIAL. IRRECORRIBILIDADE E TERATOLOGIA. EXISTÊNCIA. WRIT. CABIMENTO.
1. Segundo pacífica orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, ‘o mandado de segurança contra ato judicial é medida excepcional, cabível somente em situações nas quais se pode verificar, de plano, ato judicial eivado de ilegalidade, teratologia ou abuso de poder, que importem ao paciente irreparável lesão ao seu direito líquido e certo’ (AgInt no MS 24.788/DF, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, Corte Especial, julgado em 05/06/2019, DJe 12/06/2019).
2. Hipótese em que foi impetrado mandado de segurança contra acórdão da Corte Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que desproveu agravo regimental e manteve a negativa de seguimento do apelo raro, nos termos do art. 534-C, §7º, I, do CPC/1973, por entender que o aresto recorrido espelhava tese firmada no STJ em recurso repetitivo.
3. A Corte de origem extinguiu o writ sem resolução do mérito, sob o fundamento de que o impetrante deveria provocar ‘o Superior Tribunal de Justiça pela via do agravo previsto no então vigente art. 544 do Código de Processo Civil de 1973.’
4. Na linha da jurisprudência desta Corte, o único recurso possível para suscitar eventuais equívocos na aplicação do art. 543-B ou 543-C do CPC/1973 é o agravo interno, a ser julgado pelo Tribunal de origem, com exclusividade e em caráter definitivo.
5. A parte recorrente, ora agravada, diante da negativa de seguimento do seu apelo especial com fulcro no art. 543-C, § 7º, I, do CPC/1973, agitou o recurso cabível, qual seja, o agravo interno/regimental questionando a conformidade do acórdão recorrido com a tese recursal julgada sob o rito dos recursos repetitivos, mas não teve êxito na pretensão.
6. A decisão de admissibilidade nada mais tratou senão a conformidade do acórdão recorrido com a tese repetitiva; descabe, assim, falar em dupla impugnação mediante a interposição conjunta de agravo em recurso especial ou mesmo em preclusão pela falta de manejo do agravo do art. 544 do CPC/1973.
7. A irrecorribilidade do acórdão objeto da impetração, que nem sequer admite reclamação, como decidido pela Corte Especial (Rcl 36.476/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, julgado em 05/02/2020, DJe 06/03/2020), evidencia, no caso concreto, situação de exceção a admitir a via do mandamus.
(...)
10. Caracterizadas a irrecorribilidade e a teratologia do decisum atacado, exsurge cabível o uso excepcional da via mandamental.
(...)”
CONCLUSÃO
O artigo 988 do Código de Processo de Civil de 2015 estabeleceu, de forma detalhada, quais são as hipóteses de cabimento da Reclamação.
Todavia, com a lei 13.256 de 2016, parte da redação original do artigo 988 foi alterada.
O inciso IV do artigo 988 foi modificado, suprimindo-se a hipótese de cabimento da Reclamação para garantir a observância de entendimento firmado em de sede de repetitivos dos Tribunais Superiores, e o §5º do artigo 988 também foi alterado, criando-se um inciso II, que determinou, implicitamente, a admissibilidade da Reclamação para preservação de entendimento firmado em sede de repetitivos dos Tribunais Superiores, desde que esgotadas as vias ordinárias.
Apesar dessa clara contradição, de acordo com Zulmar Duarte de Oliveira, a interposição de Reclamação para assegurar a observância de entendimento firmado em sede de repetitivos extremos ainda permanecia, por causa do §5º do artigo 988 do Código de Processo Civil.
Em consonância, o Supremo Tribunal Federal firmou igual entendimento.
Contudo, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento da Rcl 36.476-SP, assentou que a Reclamação, para essa hipótese, não seria o recurso cabível.
Em maio de 2021, por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do AgInt no Recurso em Mandado de Segurança 53790-RJ, decidiu que, para preservar o entendimento firmado em sede de repetitivos, o correto recurso é o Mandado de Segurança.
Embora o Código de Processo Civil, a doutrina e, inclusive, o Supremo Tribunal Federal entendam que a interposição de Reclamação, para essa hipótese, é admissível, o Superior Tribunal de Justiça, em sentido contrário, não a admite.
Diante desse cenário, conclui-se que, para assegurar o entendimento firmado em repetitivos do Superior Tribunal de Justiça, o Mandado de Segurança é a única opção, apesar da existência de um grande respaldo na lei, doutrina e jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
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AZEVEDO, Gustavo. Reclamação constitucional no direito processual civil. 1. Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2018.
DELLORE, Luiz; GAJARDONI, Fernando da Fonseca; JUNIOR; Zulmar Duarte de Oliveira. Execução e Recursos: comentários ao CPC de 2015: volume 3. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método. 2ª Ed, 2018.
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 5ª Ed. revisada, atualizada e ampliada, RT – Revista dos Tribunais, 2016.
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1 DELLORE, Luiz; GAJARDONI, Fernando da Fonseca; JUNIOR; Zulmar Duarte de Oliveira. Execução e Recursos: comentários ao CPC de 2015: volume 3. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método. 2ª Ed, 2018, p. 877.
2 Ementa: AGRAVO REGIMENTA NA RECLAMAÇÃO. CAUSA JÁ APRECIADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ART. 988, §5º, II, DO CPC. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
I – A reclamação não é cabível quando implicar no reexame de causa que já foi apreciada por esta Corte em recurso extraordinário com agravo.
II – O esgotamento das instâncias ordinárias, nos termos do art. 988, § 5º, II, do CPC, é requisito de admissibilidade da reclamação que indique como paradigma um acórdão proferido no julgamento de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida.
III – Agravo regimental a que se nega provimento.
3 Ementa: CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO INTERNO. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE RECURSAL. NÃO EXAURIMENTO DAS INSTÂNCIAS RECURSAIS ORDINÁRIAS. RECURSO DE AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
1. Não houve, no caso sob exame, o pleno exaurimento das instâncias recursais ordinárias, o que inviabiliza o ajuizamento desta ação.
2. Conforme prescreve o art. 988, §5º, inciso II, do CPC, o esgotamento dos meios recursais a quo é pressuposto para o cabimento da Reclamação, quanto tem por fundamento a exigência de respeito a precedente julgado por esta SUPREMA CORTE, em regime de Repercussão Geral. Precedentes.
3. Embargos de Declaração recebidos como Agravo Interno, ao qual se nega provimento.