Causou-me estranheza a promulgação da lei 14.195, de 26 de agosto de 2021, que resultou da conversão da MP 1.040, de 29 de março de 2021, a começar pela extensão das ementas de uma e outra, sendo que a primeira:
“Dispõe sobre a facilitação para abertura de empresas, a proteção de acionistas minoritários, a facilitação do comércio exterior, o Sistema Integrado de Recuperação de Ativos, as cobranças realizadas pelos conselhos profissionais, a profissão de tradutor e intérprete público, a obtenção de eletricidade e a prescrição intercorrente na Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil.”
Enquanto a segunda, por seu turno:
“Dispõe sobre a facilitação para abertura de empresas, sobre a proteção de acionistas minoritários, sobre a facilitação do comércio exterior, sobre o Sistema Integrado de Recuperação de Ativos (Sira), sobre as cobranças realizadas pelos conselhos profissionais, sobre a profissão de tradutor e intérprete público, sobre a obtenção de eletricidade, sobre a desburocratização societária e de atos processuais e a prescrição intercorrente na Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil); altera as Leis nos 11.598, de 3 de dezembro de 2007, 8.934, de 18 de novembro de 1994, 6.404, de 15 de dezembro de 1976, 7.913, de 7 de dezembro de 1989, 12.546, de 14 de dezembro 2011, 9.430, de 27 de dezembro de 1996, 10.522, de 19 de julho de 2002, 12.514, de 28 de outubro de 2011, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), 4.886, de 9 de dezembro de 1965, 5.764, de 16 de dezembro de 1971, 6.385, de 7 de dezembro de 1976, e 13.874, de 20 de setembro de 2019, e o Decreto-Lei nº 341, de 17 de março de 1938; e revoga as Leis nos 2.145, de 29 de dezembro de 1953, 2.807, de 28 de junho de 1956, 2.815, de 6 de julho de 1956, 3.187, de 28 de junho de 1957, 3.227, de 27 de julho de 1957, 4.557, de 10 de dezembro de 1964, 7.409, de 25 de novembro de 1985, e 7.690, de 15 de dezembro de 1988, os Decretos nos 13.609, de 21 de outubro de 1943, 20.256, de 20 de dezembro de 1945, e 84.248, de 28 de novembro de 1979, e os Decretos-Lei nos 1.416, de 25 de agosto de 1975, e 1.427, de 2 de dezembro de 1975, e dispositivos das Leis nos 2.410, de 29 de janeiro de 1955, 2.698, de 27 de dezembro de 1955, 3.053, de 22 de dezembro de 1956, 5.025, de 10 de junho de 1966, 6.137, de 7 de novembro de 1974, 8.387, de 30 de dezembro de 1991, 9.279, de 14 de maio de 1996, e 9.472, de 16 de julho de 1997, e dos Decretos-Lei nos 491, de 5 de março de 1969, 666, de 2 de julho de 1969, e 687, de 18 de julho de 1969; e dá outras providências.”
Numa simples visão dessas duas ementas, vislumbrei tantos jabutis, que resolvi tecer algumas considerações especificamente sobre aqueles que foram, com evidente afronta à Constituição, colocados no Código de Processo Civil.
2. NATUREZA JURÍDICA DA MEDIDA PROVISÓRIA
Apesar de dispor o art. 59, V da Constituição que o processo legislativo compreende a elaboração, dentre outras matérias, de “medidas provisórias”, sugerindo terem a mesma natureza jurídica de “lei”, não existe, na doutrina, consenso a respeito, entendendo Friedrich Müller que as medidas provisórias não são leis, mas apenas medidas administrativas de natureza normativa; Marco Aurélio Greco, sustentando que a medida provisória é ato administrativo, com força de lei; Saulo Ramos, entendendo que a medida provisória seria um projeto de lei com força cautelar de lei; Eros Grau, sustentando que as medidas provisórias são leis especiais, dotadas de vigência provisória imediata.
Tenho sustentado, na doutrina (Medida Provisória como mecanismo de veiculação da lei temporária) , que a medida provisória, modus in rebus, nada mais é do que “um projeto de lei do Executivo de curso invertido”. Em se tratando de projeto de lei, o preceito só tem força (ou eficácia) legal depois da sanção e promulgação, enquanto, na medida provisória, esta força (ou eficácia) é imediata, contemporânea da sua edição, embora temporária e condicionada à sua conversão em lei pelo Congresso.
Disse, também, quando teci essas considerações (1988), que o que a ordem constitucional não tolera é que a lentidão do legislador ordinário sirva de pretexto à edição de medida provisória, porquanto a “relevância e urgência”, ambas conjuntamente, a que se refere o art. 62, caput da Constituição, não tem a conotação que se lhe tem amiúde reconhecido. Aliás, a experiência tem revelado que, sempre que o Presidente da República reclama da morosidade do Poder Legislativo, emite sinal de que baixará alguma medida provisória, e o faz quase sempre contra a Constituição.
3. DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA LEGISLATIVA NA CONSTITIÇÃO
No Brasil, a Constituição consagra a competência privativa da União (art. 22) , a do Congresso Nacional, com sanção presidencial (art. 48) , a competência exclusiva do Congresso Nacional (art. 49) , a privativa da Câmara dos Deputados (art. 51) e do Senado Federal (art. 52) e a privativa do Presidente da República (art. 84) , sobressaindo, no campo da competência presidencial, a “de iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Constituição (art. 84, III) e a de editar medidas provisórias, com força de lei (art. 62) .
A competência legislativa é atribuída a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente de República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos na Constituição (CF: art. 61).
4. INDEPENDÊNCIA E HARMONIA DOS PODERES
Num sistema constitucional como o brasileiro, em que vige a rígida distribuição de competência, não é permitido ao Presidente da República editar, a seu bel prazer, medida provisória sobre qualquer matéria, pois para tanto não está autorizado pela Constituição.
Destarte, não se inclui no âmbito dos poderes legiferantes do Presidente da República, de alterar normas processuais, pois a competência para legislar sobre direito processual é da União (art. 22, I), exercida pelo Congresso Nacional com sanção presidencial (art. 48), não estando compreendida no elenco das medidas sobre as quais detém o chefe do Executivo a iniciativa das leis (art. 61, § 1º).
Na medida em que essa matéria não pode ser objeto de delegação legislativa (lei delegada), em face da restrição imposta pelo § 1º do art. 61 da Constituição, é vedado, da mesma forma, ao Presidente da República, dispor sobre ela, por medida provisória, por importar em invasão de competência da União (art. 22, I).
Seria incompreensível que, não podendo a matéria ser veiculada por meio de lei delegada, pudesse sê-lo por medida provisória, pois, ainda que houvesse vontade política de fazê-lo, não poderia o Congresso Nacional delegar ao Presidente da República poder para legislar sobre direito processual (art. 22, I). Ademais, seria um contrassenso maior admitir-se que pudesse fazê-lo o chefe da Nação, sponte sua, afrontando a Constituição.
5. LIMITAÇÕES À EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS NA CONSTITUIÇÃO
A possibilidade da adoção de medidas provisórias, com força de lei, pelo Presidente da República vem contemplada no art. 62, caput da Constituição, dispondo que poderá ele, em caso de relevância e urgência, (ambas conjuntamente) adotá-las, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
Ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 do art. 62 , as medidas provisórias perdem sua eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes (CF: art. 62, § 3º).
Para evitar a invasão de competência legislativa de outros Poderes, como vinha ocorrendo, desde a promulgação da Constituição em vigor, a Emenda Constitucional 32/2001 vedou de forma expressa a edição de medidas provisórias sobre diversas matérias (art. 62, § 1º, I a IV), dentre as quais sobre direito processual civil (CF: art. 62, § 1º, I, “b”).
6. AINDA AS LIMITAÇÕES À EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS
A competência excepcional outorgada pelo art. 62, caput, ao Presidente da República, para edição de leis temporárias ou medidas provisórias não vai, em princípio, além da matéria elencada no art. 61, § 1º da Constituição, verbis:
“Art. 61. Omissis.
§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;
II - disponham sobre:
a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;
b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;
c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;
d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI;
f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.
§ 2º A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.”
7. PROBLEMÁTICA DA EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS
A Constituição é coerente com o processo legislativo e com o sistema de distribuição de competência legislativa, porquanto o que ela dispõe é que, tendo o Presidente da República o poder de deflagrar o processo legislativo – como nas hipóteses versadas no § 1º do art. 61 da CF --, tem-no, igualmente, para editar medida provisória (lei temporária), com força de lei, remetendo de imediato o texto ao Congresso para aprovação, pelo que, onde esse poder de iniciativa inexiste, como, por exemplo, nas hipóteses elencadas no art. 22, I, em que compete privativamente à União legislar sobre “direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho”, a edição a respeito de medida provisória (lei temporária) não tem amparo constitucional.
É preciso, ainda, que, além de estar a hipótese prevista no § 1º do art. 61 da Constituição, não se trate de matéria incluída no âmbito da lei complementar, nem daquelas referidas nos incisos I a III do § 1º do art. 68 (I - organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; II - nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais; III - planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos), pela elementar razão de que, não podendo ser objeto de delegação legislativa –, como não podem as deferidas exclusiva e privativamente a outros órgãos –, não poderia ser edita pelo Presidente da República por via de medida provisória.
Não fosse assim, a competência da iniciativa das leis, reservada ao Presidente da República, poderia ser também invadida pelo Congresso Nacional ou quaisquer de seus órgãos ou membros, com o poder de deflagração do processo legislativo.
Divirjo dos que sustentam que as medidas provisórias possam dispor sobre qualquer assunto que se contenha na iniciativa legislativa do Poder Executivo, seja regulado por lei ordinária ou complementar, porquanto tal exegese afronta a letra e o espírito da Constituição; porquanto a expressão “com força de lei”, no art. 62 é, sem dúvida, referida à “lei ordinária”.
Discordo, igualmente, dos que sustentam que a medida provisória possa atingir direitos constitucionais, como os referentes à liberdade ou à propriedade, em caráter instantâneo, porque não pode, o que vem demonstrado não só pelas fontes em que se inspirou o legislador constituinte, como pelos princípios agasalhados pela própria Constituição, sobrelevando o da “independência e harmonia dos Poderes”. Tais direitos só podem ser atingidos por medida provisória se compreendidos no elenco daqueles assuntos, a respeito dos quais detenha o Presidente da República o poder de iniciativa das leis (como acontecia, aliás, com o extingo decreto-lei da Carta Constitucional de 1967/ EC n. 1/1969).
Como a lógica jurídica não deve apartar-se da lógica do razoável (Recaséns Siches), a exegese deve ser esta: a) se a matéria for tributária (art. 61, § 1º, II) e a Constituição não a reserva à lei complementar (art. 68, § 1º), pode ser veiculada por medida provisória (art. 62, caput); b) do contrário, incide a proibição constitucional e qualquer iniciativa neste sentido configura invasão de competência, reprimível pelas vias judiciais.
A medida provisória não é, como se supõe, a vala comum por onde possa o Presidente da República, em caráter precário, invadir a competência de outros órgãos ou poderes do Estado, sob pena de afronta ao art. 2º da Constituição – “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” --, pedra de toque do regime democrático, mormente no sistema presidencialista de governo.
8. PROCESSO LEGISLATIVO E EMENDA DE REDAÇÃO
As leis processuais são veiculadas através de lei ordinária (CF: art. 59, III) , nos moldes estabelecidos em Lei Complementar (CF: art. 59, parágrafo único) , sendo essa competência privativa da União (CF: arts. 22, I) , cabendo ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República dispor sobre todas as matérias de competência da União (CF: art. 48, caput) , e a qualquer membro da Câmara dos Deputados e do Senado Federal a iniciativa das leis ordinárias, na forma e nos casos previstos na Constituição (CF: art. 61, caput) .
Em cumprimento do texto constitucional (art. 59, parágrafo único), foi promulgada a Lei Complementar 95/1998 dispondo: a) o art. 1º que a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis obedecerão ao disposto nesta Lei Complementar; e b) o art. 7º que o primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios: I – excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto; e II – a lei não conterá matéria estranha ao seu objeto ou a este não vinculada por afinidade ou conexão.
Essa técnica teve o objetivo de eliminar o “jeitinho brasileiro”, muito em voga na vigência das Constituições anteriores, de se aproveitar o legislador da expressão “e dá outras providências”, para incluir matéria completamente estranha ao seu objeto, e sem nenhuma afinidade, pertinência ou conexão com ele.
A expressão “e dá outras providências” tem o objetivo específico de abrigar preceitos indispensáveis em qualquer texto legal, como a data de vigência da lei – “Esta lei entra em vigor na data de sua publicação” – e a revogação das disposições incompatíveis com o novo texto – “Revogam-se as disposições em contrário” --, embora agasalhe, também, inconstitucionalmente, preceitos normativos que nada têm a ver com a lei.
No particular, o Congresso Nacional usa de um subterfúgio para legislar, através da chamada “emenda de redação” (CF: art. 118, § 8º do Regimento Interno da Câmara dos Deputados) , que deveria ter o propósito regimental de sanar o vício de linguagem, incorreção de técnica legislativa ou lapso manifesto, mas acaba por modificar o próprio texto original e até mesmo fazer acréscimos, que não encontram apoio no preceito regimental. Como ninguém neste País, nem as instituições, fiscalizam nada, o sistema legislativo acaba por consentir, patologicamente, leis como a recente lei 14.195/21, que introduziu no seu art. 44, diversas disposições no Código de Processo Civil.
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