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Autonomia do Banco Central no STF

A autonomia do Banco Central é uma discussão recorrente nas democracias modernas, além de ser um elemento nuclear das economias liberais.

14/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O Supremo Tribunal Federal, em julgamento recente sobre a ação direta de inconstitucionalidade 6696, de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT), reafirmou a constitucionalidade da lei Complementar 179/2021, que concedeu autonomia ao Banco Central (Bacen). Ficaram vencidos o douto relator, ministro Ricardo Lewandowski, e a ministra Rosa Weber. O ministro Luís Roberto Barroso, líder da divergência, foi designado redator do acórdão.

Para a maioria da Suprema Corte, o trâmite do projeto de lei de iniciativa parlamentar que originou a norma foi convalidado pelo projeto de lei de origem presidencial de idêntico teor (PLP 19/2019). Outro fundamento da decisão foi o fato do art. 48 da Constituição Federal trazer, entre as competências do Congresso Nacional, a de normatizar acerca da moeda, do câmbio e do sistema financeiro, objeto da lei questionada.

O ministro Luís Roberto Barroso reputou não ser exigível a iniciativa do presidente da República para dar autonomia ao Banco Central, uma vez que essa não é uma lei que trate de regime jurídico de servidor público, nem de criação de ministério ou órgão público. Todavia, salientou que ainda que tal iniciativa fosse exigível, ela foi atendida pelo envio do projeto de lei pelo presidente. No mais, ressaltou que é competência do Congresso Nacional tratar das matérias referentes à política monetária cambial, que são as atribuições principais do Banco Central. Por fim, o ministro Luís Roberto Barroso afirmou que a “responsabilidade fiscal não tem ideologia. Não é de esquerda, nem de direita. Não é monetarista, nem é estruturalista. É apenas um preço posto das economias saudáveis”.

O ministro Ricardo Lewandowski e a ministra Rosa Weber, que ficaram vencidos, entenderam que, nessa matéria, a competência é privativa do presidente da República, sob pena de instalar-se indesejável “balbúrdia na gestão da Administração Pública Federal”.

O precedente, portanto, cinge-se ao processo legislativo que deu ensejo à lei Complementar 179/2021, que conferiu a autonomia ao Banco Central do Brasil.  

Muito antes, no julgamento da ADIn 449, o ministro Carlos Velloso, relator, havia anotado que “o Banco Central do Brasil é uma autarquia que exerce, substancialmente, atividades públicas, assim prestadora de serviços públicos, pelo que é uma autêntica autarquia de personalidade jurídica de direito público”.

Não é possível afirmar, contudo, que o Bacen seja “uma autarquia como todas as outras”, uma vez que a Constituição estabeleceu um sistema voltado a ele. Basta ver que atribuições quanto a crédito, câmbio e capitalização constituem reflexos da soberania da República (art. 1º, I) e auxiliam na consecução de um dos seus objetivos, o desenvolvimento nacional (art. 3º, II). Compete à União, por meio do Bacen, administrar as reservas cambiais do país e fiscalizar as operações de natureza financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguros e de previdência privada (art. 21, VIII). O art. 164 cuida das suas atribuições e o sistema financeiro nacional é tratado no art. 192, tendo o compromisso de “promover o desenvolvimento equilibrado do País”.

Por fim, cabe ao Senado Federal aprovar previamente, por voto secreto, após arguição pública, a escolha do presidente e diretores do Bacen. A federação exerce o controle político preventivo sobre os indicados. Nenhuma autarquia goza de tamanho destaque constitucional.

Questões relativas aos Bancos Centrais constam não apenas do direito positivo brasileiro, pois ilustram, também, a historiografia constitucional estrangeira, a exemplo dos Estados Unidos da América.

Em 1819, o chief justice da Suprema Corte, John Marshall, estabeleceu a teoria dos poderes implícitos, reafirmada em 1926 no caso Myers pela frase de outro chief justice, William Howard Taft: “O poder de destituir é implícito ao de nomear”.

Em 1935 e em 1958, a Suprema Corte estadunidense rejeitou a aplicação desse precedente às nomeações de prazo certo para órgãos dotados de autonomia administrativa. Tanto no caso Humphrey's Executor v. United States, como em Myron Wiener v. United States, garantiu-se o exercício das funções e atribuições dos órgãos autônomos com a necessária independência, em face do Poder Executivo, para que pudessem cumprir, a salvo de ingerências, a política ou orientação fixada pelo Poder Legislativo ao instituir tais entidades autônomas.

Apreciando o caso Wiener, de sua relatoria, o justice Felix Frankfurter esclareceu que quem exerce o cargo somente enquanto agrada a outro, não pode, por isso mesmo, manter uma atitude de independência ante a vontade desse outro.

Voltando-se para a realidade brasileira, vale lembrar o julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal em 2006, quanto à medida provisória que conferiu status de ministro de Estado ao presidente do Bacen, questionada no âmbito da ADI 3289, de relatoria do ministro Gilmar Mendes.

No caso, o STF definiu que não ofende à Constituição Federal conferir ao presidente daquela autarquia prerrogativa de foro de ministro de Estado. Na oportunidade, o ministro Gilmar Mendes deixou registrado na ementa do julgado: “Sistemas singulares criados com o objetivo de garantir independência para cargos importantes da República: Advogado-Geral da União; Comandantes das Forças Armadas; Chefes de Missões Diplomáticas”.

Noutra oportunidade, o STF se manifestou, mesmo tendo sido apenas por meio de comentários de passagem, acerca da autonomia. Na ADI 3289, o ministro Carlos Velloso registrou: “(...) o que é relevante e deve ser discutido é se ao Banco Central deve ser concedida autonomia relativamente ao governo; não é simplesmente fazer do Presidente do Banco Central Ministro de Estado, que continuará subordinado ao Presidente da República. O que é relevante é mesmo isto: deve-se conceder ao Banco Central autonomia relativamente ao governo?”. O Ministro, citando a experiência norte-americana, arrematou: “Muitos economistas respondem afirmativamente, o que, aliás, ocorre nos Estados Unidos da América”.

Na ADI nº 1949, o ministro Nelson Jobim fez o seguinte questionamento: “Desde 1988, há uma discussão posta: definir a autonomia da autoridade monetária. Deve-se, ou não, caminhar para o modelo do Federal Reserve americano ou do Bundesbank alemão, em que os seus diretores têm investidura por prazo certo?”.

O próprio ministro Jobim respondeu: “Não vejo impedimento constitucional a uma decisão dessa natureza. É problema de conveniência ter, ou não, a autoridade monetária independência da autoridade fiscal. Em momento algum, o presidencialismo impediu esse tipo de solução”.  

Os trechos desse debate trazem à lembrança episódio ocorrido em 2009, quando Barack Obama, então presidente dos Estados Unidos, estava diante do púlpito no Parlamento de Gana, em Acra, e fez, para o público, a seguinte exortação: “A África não precisa de homens fortes. Ela precisa de instituições fortes”.1

Três anos depois desse célebre discurso, Daron Acemoglu e James A. Robins publicaram o livro Why Nations Fail (Por que as nações fracassam),2 no qual, superando o senso comum, apontam que o destino de um país depende, basicamente, das instituições pelas quais ele é governado. O que tornará um povo mais ou menos próspero no século XXI é a capacidade de erguer e se guiar a partir das instituições democráticas já estabelecidas.

A Constituição brasileira de 1988 anteviu esse horizonte e deixou aberto o caminho para o estabelecimento de armaduras institucionais de defesa da autonomia de entes como o Banco Central. A liberdade das instituições jamais se prestou a enfraquecer a democracia. Em regra, é o autoritarismo quem a teme.   

Não ofende a democracia conferir a órgãos especializados um limitado poder de decisão quanto a matérias afetas à sua finalidade institucional. Algumas instituições só alcançam seus objetivos se de fato estiverem imunes a ingerências político-partidárias. Isso não quer dizer que sejam soberanas, uma vez que elas são submetidas a controle jurídico, político e social.

Portanto, a autonomia do Banco Central é uma discussão recorrente nas democracias modernas, além de ser um elemento nuclear das economias liberais. Não existe um padrão obrigatório a ser seguido pelos países democráticos, mas existem modelos mais influentes, claro, e eles abraçam essa referida autonomia.

No caso brasileiro, os debates constitucionais travados no âmbito do Supremo Tribunal Federal têm reafirmado a necessidade de assegurar autonomia do Banco Central frente aos governos, mantendo a ideia de que se trata de uma instituição de Estado e, em razão dessa natureza, precisa ser preservadas da permanente mudança de humor da política partidária e seus interesses mais imediatos.

_________

1 A íntegra do discurso. Disponível aqui.

2 No Brasil, a editora Campus publicou a tradução da obra, feita por Cristiana Serra: “Por que as nações fracassam: as origens do poder, da prosperidade e da pobreza”.

Saul Tourinho Leal
Saul Tourinho Leal, é doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP, tendo ganhado, em 2015, a bolsa de pós-doutorado Vice-Chancellor Fellowship, da Universidade de Pretória, na África do Sul. Foi assessor estrangeiro da Corte Constitucional sul-africana, em 2016, e também da vice-presidência da Suprema Corte de Israel, em 2019. Sua tese de doutorado, "Direito à felicidade", tem sido utilizada pelo STF em casos que reafirmam direitos fundamentais. É advogado em Brasília.

Pietra Cardoso
Colaboradora no escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia.

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