Migalhas de Peso

A possibilidade de penhora parcial do salário executado

O próprio artigo 789 do Código de Processo Civil deixa claro haver exceções à responsabilidade patrimonial. Dentre tais exceções, encontram-se bens do devedor que não respondem por suas obrigações, em decorrência de razões de ordem política, social ou humanitária.

13/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Sabe-se que a execução civil prevê uma ordem preferencial de bens, sujeitos a atos expropriatórios, para a concreção de sua finalidade, isto é, a satisfação do crédito exequendo.1 A diretriz geral da responsabilidade patrimonial encontra-se enunciada no artigo 789 do Código de Processo Civil, que dispõe que “o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei”. Semelhante disposição está presente no artigo 391 do Código Civil, segundo o qual “pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor”.

Com efeito, em uma execução civil, o responsável pela satisfação da obrigação deverá responder com tantos bens quantos forem necessários. Inclusive, para o efeito da responsabilidade patrimonial, “pouco interessa [...] que o bem do executado esteja ou não em seu poder no momento em que iniciada a execução (art. 790, III, CPC)”2.

Todavia, o próprio artigo 789 do Código de Processo Civil deixa claro haver exceções à responsabilidade patrimonial. Dentre tais exceções, encontram-se bens do devedor que não respondem por suas obrigações, em decorrência de razões de ordem política, social ou humanitária. Tais bens gozam, pois, de uma impenhorabilidade, que pode ser relativa, quando há bens que apenas podem ser penhorados e expropriados na falta de outros – sendo, precisamente, o caso dos frutos e dos rendimentos de bens inalienáveis (artigo 834 do Código de Processo Civil) –, ou absoluta, a qual alberga bens que, em hipótese alguma, podem vir a ser objeto de penhora e alienação na execução por quantia certa. Alguns dos bens absolutamente impenhoráveis estão elencados no artigo 833 do Código de Processo Civil.3

O dispositivo em comento abrange, em seu inciso IV, distintas modalidades de ganhos de natureza alimentar, os quais, nesse sentido, são, a princípio, aptos a manter a subsistência do executado e de seus dependentes. E, dentre tais ganhos absolutamente impenhoráveis, encontra-se o salário, entendido em sentido estrito como “o conjunto de parcelas contraprestativas pagas pelo empregador ao empregado em função do contrato de trabalho”4, e que, quando pago em dinheiro, é integrado pela importância fixa estipulada, pelas gratificações legais e pelas comissões pagas pelo empregador (artigo 457, § 1º, da Consolidação das leis do Trabalho).

A princípio, o salário, assim como os demais ganhos elencados no inciso IV do artigo 833 do Código de Processo Civil, apenas escapará à regra da impenhorabilidade absoluta e poderá ser penhorado nos casos previstos no § 2º do mesmo artigo, que prevê que o disposto no inciso em comento “não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais”.

Isto é, pela disciplina legal, o salário somente poderá ser penhorado para o pagamento de outra verba de natureza alimentar – a qual abrange, inclusive, os honorários advocatícios, por força tanto do artigo 85, § 14, do Código de Processo Civil, quanto da Súmula Vinculante 47 – ou de um crédito de qualquer natureza, desde que o salário recebido pelo executado seja superior a cinquenta salários-mínimos.

Todavia, para além das ressalvas estritamente previstas no § 2º do artigo 833 do Código de Processo Civil, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que a regra geral de impenhorabilidade dos salários – e dos demais ganhos previstos no inciso IV do artigo em comento – “pode ser excepcionada quando for preservado percentual de tais verbas capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família”5.

Tal excepcionalidade é fundamentada no direito do exequente em receber uma tutela jurisdicional eficiente à satisfação de seu crédito – o que é corolário dos princípios da inafastabilidade da tutela jurisdicional e da efetividade do processo –, de acordo com princípios como os da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade e da lealdade processual, e de modo que seja simultaneamente preservado o direito do executado em resguardar um patrimônio suficiente a um padrão de vida digno.

Essa possibilidade é, ainda, reforçada a partir de uma ponderação entre o princípio da máxima utilidade da execução e o princípio do menor sacrifício do executado. Com efeito, é possível que o exequente se valha dos meios mais eficazes ao seu alcance para a satisfação de seu crédito, desde que tais meios não sejam gravosos de tal maneira que impliquem em um prejuízo significativo ao executado. Logo, é possível uma penhora parcial sobre o salário recebido pelo devedor, desde que, à luz do caso concreto, não lese o seu padrão de vida digno e o de seus dependentes.

Não se pode perder de vista que tanto a restrição da penhorabilidade de toda a verba salarial quanto a sua permissão tão somente no que exceder a cinquenta salários-mínimos, mesmo quando a penhora de uma parcela do montante salarial não comprometa a manutenção do devedor, podem caracterizar-se como aplicações inconstitucionais da regra sobre impenhorabilidade de ganhos, pois, nesse caso, estar-se-ia a privilegiar apenas a esfera de direitos fundamentais do executado, em detrimento dos direitos fundamentais do exequente.6

Esse entendimento não se presta a fragilizar a proteção do salário, garantida constitucionalmente (artigo 7º, inciso X, da Constituição Federal) e constituída como um dos instrumentos concretos para a consecução da dimensão material da dignidade do executado e de seus dependentes.

O que se pretende evidenciar, em verdade, é tão somente que a impenhorabilidade absoluta do salário, diante de situações nas quais um percentual de constrição não afete a sobrevivência digna do devedor, é uma medida injusta e derivada de uma interpretação equivocada do princípio do patrimônio mínimo.7

Inclusive, a própria tratativa doutrinária de atribuir a certos bens uma impenhorabilidade “absoluta” não é imune a críticas. Ora, se nem mesmo os princípios e direitos mais fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro são absolutos e admitem ressalvas muito excepcionais, por que uma regra sem a mesma densidade axiológica e normativa seria absoluta? Tal regra, como qualquer outra, obviamente comporta exceção, sendo viável a compreensão de que verbas salariais são passíveis de penhora, sobretudo quando essa possibilidade não se mostra objetivamente hábil a violar concretamente a dimensão material da dignidade do devedor e de seus dependentes.

Sem descuidar de todas essas observações, os Tribunais pátrios vêm mitigando o rigor da impenhorabilidade absoluta do salário do executado.

A título exemplificativo, vale citar o Agravo de Instrumento 0059769-20.2020.8.16.0000, julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná em 08 de março de 2021.8

No precedente em comento, a parte executada recebia, a título de salário, o valor líquido aproximado de R$ 1.554,39, além de perceber uma pensão por morte calculada em R$ 2.267,33, o que resultava em uma renda mensal de R$ 3.821,72, a qual fazia frente a custos cujo valor comprovado nos autos foi de aproximadamente R$ 1.015,00, sobrando, portanto, um saldo remanescente de R$ 2.809,03 para arcar com as demais despesas. Noutro vértice, a parte exequente era beneficiária da assistência judiciária gratuita e pleiteava o recebimento de um crédito não alimentar, decorrente de uma prestação de serviços para a construção de uma residência em alvenaria. Ao apreciar o caso, a Corte Paranaense concluiu pela razoabilidade da constrição de 15% sobre o valor líquido do salário da parte executada.

Vale destacar, por fim, que a penhora ainda que parcial do salário é medida excepcional, sendo obrigação do exequente demonstrar que diligenciou o prévio esgotamento de outras modalidades menos gravosas ao executado, consoante a ordem preferencial prevista no art. 835 do Código de Processo Civil.

Assim, ante o exposto, tem-se como plenamente possível e legítima a penhora parcial sobre o salário recebido pelo devedor no bojo de uma execução civil, desde que, à luz do caso concreto, o credor possa buscar efetivamente a satisfação de seu crédito sem que isso implique em lesão ao padrão de vida digno do executado e de seus dependentes.

_________

1 CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015. p. 337.

2 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo código de processo civil comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 751.

WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil, volume 3: execução. 17. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 150-153.

4 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprudenciais posteriores. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019. p. 841.

EREsp 1582475/MG, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, CORTE ESPECIAL, julgado em 03/10/2018, REPDJe 19/03/2019, DJe 16/10/2018.

6 DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil: execução. v. 5. 7. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017. p. 829-830.

7 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil: volume único. 10. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora JusPODIVM, 2018. p. 1141.

8 TJPR - 14ª C. Cível - 0059769-20.2020.8.16.0000 - Fazenda Rio Grande - Rel.: DESEMBARGADOR JOSE HIPOLITO XAVIER DA SILVA - J. 08.03.2021.

Gabriel Alves Fonseca
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Colaborador do escritório Reis & Alberge Advogados.

Guilherme Alberge Reis
Advogado mestrando em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Bacharel em Direito e Relações Internacionais. Especialista em Direito Processual Civil e em Direito Empresarial. Secretário da Comissão de Juizados Especiais da OAB/PR. Sócio do escritório Reis & Alberge Advogados.

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