Como visto anteriormente, o fracasso das Conferências de Londres motivou o envio de um diplomata britânico às sedes dos governos negociantes para tentar compor as divergências de forma direta. A missão de Sir Charles Stuart era complexa: precisava conciliar os interesses do Reino Unido com o Brasil, fortalecendo o controle mercantil daquele na América, sem indispor o governo britânico com Portugal, seu mais antigo aliado. Por isso, a sua primeira parada foi a capital lusitana, onde ele deveria se encontrar com os representantes de D. João VI. Canning emitiu as instruções de Stuart na etapa portuguesa da expedição em uma carta de 14 de março de 1825, véspera de sua partida:
Resumindo o resultado destas Instruções, Vossa Excelência deve exprimir ao Governo de S. M. Fidelíssima: 1º. Que é opinião e conselho de Sua Majestade que qualquer concessão que S. M. Fidelíssima estiver preparada para fazer ao Brasil deverá ser feita por edito real, e não através de negociação. 2º. Que qualquer concessão a não ser a Independência será totalmente ineficaz. 3º. Que qualquer tentativa de reter o exercício ativo de qualquer dos direitos de soberania sobre o Brasil, declarado independente, também seria ineficaz. (…) Não obstante, se S. M. Fidelíssima preferir uma negociação e um tratado com o Brasil, V. Exa. declarará estar autorizado, se assim o desejar S. M. Fidelíssima, a encarregar-se do dever de Plenipotenciário de S. M. Fidelíssima, desde que os termos com os quais ele concorde estejam dentro da finalidade destas instruções1.
No período em que esteve em Lisboa, Stuart participou de nove conferências com o Ministro de Negócios Estrangeiros, Conde de Porto Santo, entre 5 de abril e 23 de maio de 1825. Nessas reuniões, discutiu-se a separação dos países, a sucessão das coroas, a indenização pelas propriedades e embarcações e a possibilidade de um tratado de comércio. O assunto de maior polêmica, porém, era a concessão do título de Imperador do Brasil a D. João VI, mero capricho do rei português, o qual não teria qualquer consequência prática.
Acertado o pagamento de “indenização” pelo Brasil e a sua assunção de parte da dívida pública portuguesa2, Stuart foi nomeado plenipotenciário do governo português, recebendo três versões de uma Carta Régia que reconhecia, em termos distintos, a independência e a soberania do Brasil. “Uma considerando o Rei portando o título de Imperador do Brasil; outra aplicando o título imperial, coletivamente, aos três reinos, em vez de só ao Brasil; e a terceira reconhecendo D. Pedro como Rei do Brasil”3. Em todas elas, o representante teve o cuidado de garantir o eventual direito de sucessão do Imperador à Coroa portuguesa.
Munido desses documentos, Stuart partiu para o Rio de Janeiro em 24 de maio de 1825, lá chegando em 17 de junho do mesmo ano. Nos primeiros dias, chegou a se encontrar com D. Pedro I, entregando-lhe uma carta pessoal do rei português que muito o desagradou. Temendo pôr em risco as negociações por seu comportamento “demasiado fogoso”4, o Imperador tratou de nomear três representantes para transacionar com o inglês: foram eles o Ministro dos Negócios Estrangeiros Luiz José de Carvalho e Mello, o Ministro da Marinha Francisco Vilela Barbosa e o Barão de Santo Amaro, José Egídio Álvares de Almeida5.
Nesse momento, posto que já consolidada a autoridade imperial no território brasileiro, a Independência era vista, até mesmo em Portugal, como realidade consumada. Assim, os maiores empecilhos para o avanço das negociações foram os devaneios do rei português quanto ao título imperial e à forma de “concessão” da Independência, pretensão que “causou sérios embaraços e quase provocou o fracasso dos entendimentos”6.
D. João VI tentava construir a narrativa de que o Brasil teria se tornado independente por sua vontade e por seu consentimento, derivando a soberania imperial do princípio da legitimidade do poder dos reis7. Essa visão contrastava fortemente com a imagem que D. Pedro I, embasado na aclamação popular, havia estabelecido para justificar a sua permanência na liderança do Estado. Por isso, o Imperador julgava fundamental que a separação dos países fosse considerada como resultado de uma força política ativa; ele pensava, com razão, que “a liberdade nacional era uma conquista e o Imperador não poderia renegar a soberania popular, porque se arriscava a ser abandonado pelo povo”8.
Ocorreram treze conferências entre os plenipotenciários, durando de 25 de julho a 29 de agosto de 18259; era de interesse dos brasileiros que tudo estivesse solucionado até o aniversário da Independência, no dia 7 de setembro. Com o objetivo de agilizar os debates, os negociantes decidiram deixar de lado, ao menos no momento, o assunto da sucessão da dinastia de Bragança; essa determinação resguardou o direito de D. Pedro I ao trono português, mantendo o status quo ante. Passou-se, assim, à discussão da natureza da Independência e do título imperial.
Os representantes do Imperador se mostraram inicialmente intransigentes com o diplomata inglês, não obstante a sua seriedade e boa-fé. Segundo os negociadores brasileiros, as três versões da Carta Régia portada por Stuart eram inaceitáveis, porquanto previam a transmissão da soberania de D. João VI a D. Pedro I ou omitiam deste o título de Imperador10. O inglês suportou a conduta beligerante dos diplomatas brasileiros com “bastante habilidade e finura”11, adaptando as instruções recebidas de Portugal com intuito conciliador, assumindo os respectivos riscos.
Ávidos por concluir as tratativas antes do sete de setembro e embrandecidos pela destreza diplomática de Stuart, os representantes brasileiros acabariam por ceder na maior parte das suas reivindicações. A mudança substancial no seu posicionamento reflete a falta de uma ordem sólida de prioridades, problema que, segundo José Honório Rodrigues, seria “uma constante de nossa história”12. Em outras palavras:
A revolução, quando não desemboca em contra-revolução, acaba em reforma, e a conciliação entre dois princípios extremos, a legitimidade e a aclamação, não estava fora do alcance dos vitoriosos. (…) Depois de tanto embaraço e dificuldade, chegou-se, finalmente, a um acordo, cedendo mais os brasileiros, não só nos princípios, como no dinheiro13.
O Tratado de Independência foi celebrado no Rio de Janeiro em 29 de agosto de 1825, tendo sido ratificado pelo Imperador no dia seguinte. Algumas de suas disposições, por serem consideradas demasiado impopulares, constaram apenas de um protocolo adicional que foi redigido e assinado em segredo. Com efeito, o documento representou uma vitória pírrica para o lado brasileiro, que obtinha o tão sonhado reconhecimento a custo de pesadas indenizações e da concessão do título imperial a D. João VI.
Os representantes do Imperador conseguiram, ainda que não nos termos mais favoráveis, que o Rei português primeiro reconhecesse a Independência no preâmbulo do Tratado, apenas depois aceitando transferir, “de sua livre vontade, a soberania do dito império [do Brasil] ao mesmo seu filho, e legítimos sucessores, e tomando somente, e reservando para a sua pessoa o mesmo título”14.
Com relação à Carta Régia, que ainda incluía condições inadmissíveis para o Brasil, decidiu-se que seria citada no Tratado, mas jamais publicada; tudo isso com vistas a melhor controlar a opinião popular a respeito. Tudo em vão: a publicação do documento, feita no terceiro aniversário da Independência, ocorreu sem a ratificação de D. João VI, chegando a Portugal por vias não oficiais antes mesmo do retorno de Sir Charles Stuart15.
A ocultação da Carta Régia suscitou a desconfiança do povo brasileiro, que já supunha a existência do protocolo secreto e, assim, a opinião pública nacional se dividiu sobre o tema, sendo a comemoração do dia 7 de setembro apenas uma tentativa de “esconder os enormes sacrifícios ideológicos e econômicos que a negociação custara”16. O Tratado também foi mal recebido em Portugal, onde não foram publicadas as indenizações a serem pagas pelo Brasil, constantes apenas do protocolo adicional.
Se os termos do Tratado vieram depois a ser desconsiderados ou mesmo ignorados, pouco importava. Conforme Rui Barbosa, “todas as convenções internacionais encerram a cláusula, subentendida sempre, do rebus sic standibus: enquanto as circunstâncias não mudarem; isto é: enquanto outra não for a vontade soberana mais forte”17. A despeito das amplas concessões feitas por ambos os lados e da impopularidade do diploma então assinado, o sucesso das negociações foi muito proveitoso ao Brasil, que adquiriu enfim o reconhecimento de sua Independência pela antiga metrópole.
Conclusão
A consolidação e o reconhecimento de uma nova ordem político-jurídica são processos complexos que envolvem uma multiplicidade de agentes e pressupõem a existência de arranjos que possibilitem a coexistência de interesses divergentes. Como visto, a Independência brasileira foi o resultado de um movimento duradouro e constante, iniciado no mínimo em 1808, por meio do qual o território brasileiro, assim entendido por nobres, maçons e interesses estrangeiros, insurgiu-se contra a dominação portuguesa e ordenou a sua própria liberdade.
Muito pode ser criticado do ponto de vista atual, quase duzentos anos após a declaração às margens do Ipiranga: o baixo índice de participação popular no movimento, a submissão a vontades de outras nações (principalmente à do Reino Unido), o pagamento de indenização a Portugal pelo reconhecimento da soberania brasileira, dentre outros. Todos esses elementos refletem a delicada situação política da época e os melhores esforços daqueles que atuaram em defesa da autonomia do Brasil, ainda que guiados, em determinadas ocasiões, por sentimentos particulares ou de outra forma ocultos.
Críticas à parte, não se pode ignorar que, em dezessete anos (de 1808 a 1825), o Brasil passou de uma simples colônia, com política isolacionista na diplomacia e no comércio, a um dos grandes centros de transmissão de cultura e de propagação dos ideais iluministas no continente americano. A influência dos maçons, dos comerciantes ingleses e dos próprios países aliados a Portugal, após a abertura dos portos, foi preponderante para que a população local pudesse ser ideologicamente “emancipada” e pudesse pensar por si mesma, avaliando as injustiças do regime colonial e escolhendo uma via diversa.
Não é prudente interpretar o movimento da Independência de forma alheia ao cenário político global no período. As guerras napoleônicas e o sistema internacional formado a partir do Congresso de Viena serviram de fundamento à Revolução Liberal do Porto e propiciaram a formação das Cortes de Lisboa, as quais, por seu radicalismo, fortaleceram o viés nacionalista que a elite política brasileira adotou em suas reivindicações por autonomia.
O rompimento político ocasionado pela declaração de Independência demonstra, diferentemente do que se construiu na historiografia popular, que a separação dos países não foi uma mera mudança na “gerência” do território, passando de pai a filho, mas a gênese de uma nação fundada em valores distintos que não mais se sentia representada pelos interesses dos colonizadores.
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1 “George Canning a Sir Charles Stuart”, em 14.03.1825, in RODRIGUES, José Honório. Independência: revolução e contra-revolução: a política internacional. Rio de Janeiro: F. Alves, 1975. v5. p. 315.
2 A assunção de dívida é um instituto que foi criado pelo Direito Romano clássico, mas só aprofundado posteriormente. Importa na transferência de uma dívida, com todos os seus acessórios, a um terceiro, que assume o polo passivo da obrigação, substituindo o devedor originário.
3 RODRIGUES, José Honório. Independência: revolução e contra-revolução: a política internacional. p.143.
4 VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. História da independência do Brasil: até ao reconhecimento pela antiga metrópole, compreendendo, separadamente, a dos sucessos ocorridos em algumas províncias até essa data. Brasília: Senado Federal, 2010. p. 309.
5 FAUSTO, Boris; HOLANDA, Sergio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira: o Brasil monárquico: o processo de emancipação. 2ª ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1965. p. 352.
6 Ibidem. p. 352.
7 Sobre a criação e propagação de narrativas históricas segundo os interesses dominantes, ensina Paul Ricoeur: “Esperamos da história uma certa objetividade, a objetividade que lhe convém: a maneira pela qual a história nasce nô-lo atesta; procede ela sempre da retificação da arrumação oficial e pragmática feita pelas sociedades tradicionais com relação a seu passado” (RICOEUR, Paul. História e verdade. Rio de Janeiro: Forense, 1968. p. 24).
8 RODRIGUES, José Honório. Independência: revolução e contra-revolução: a política internacional. p. 147.
9 PROENÇA, Maria Cândida. A Independência do Brasil: relações externas portuguesas, 1808/1825. Lisboa: Livros Horizonte, 1987. p. 98.
10 OLIVEIRA LIMA, Manuel de. O reconhecimento do Império: história da diplomacia brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2015. p. 146.
11 VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. História da independência do Brasil. p. 311.
12 RODRIGUES, José Honório. Independência: revolução e contra-revolução: a política internacional. p. 149.
13 RODRIGUES, José Honório. Independência: revolução e contra-revolução: a política internacional. p. 149.
14 “Tratado concluído entre D. João VI, e seu augusto filho, o imperador do Brasil, acerca da independência do respectivo império”, em 29.08.1825, in PROENÇA, Maria Cândida. A Independência do Brasil. pp. 128-129.
15 VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. História da independência do Brasil. p. 313.
16 RODRIGUES, José Honório. Independência: revolução e contra-revolução: a política internacional. p. 152.
17 BARBOSA, Rui. Os conceitos modernos do Direito Internacional. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983. p. 46.
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BARBOSA, Rui. Os conceitos modernos do Direito Internacional. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983. 127 p.
FAUSTO, Boris; HOLANDA, Sergio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira: o Brasil monárquico: o processo de emancipação. 2ª ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1965. 410 p.
OLIVEIRA LIMA, Manuel de. O reconhecimento do Império: história da diplomacia brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2015. 224 p.
PROENÇA, Maria Cândida. A Independência do Brasil: relações externas portuguesas, 1808/1825. Lisboa: Livros Horizonte, 1987. 135 p.
RICOEUR, Paul. História e verdade. Rio de Janeiro: Forense, 1968. 340 p.
RODRIGUES, José Honório. Independência: revolução e contra-revolução: a política internacional. Rio de Janeiro: F. Alves, 1975. v5. 343 p.
VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. História da independência do Brasil: até ao reconhecimento pela antiga metrópole, compreendendo, separadamente, a dos sucessos ocorridos em algumas províncias até essa data. Brasília: Senado Federal, 2010. 548 p.