“Saúde e paz, o resto a gente corre atrás” diz o ditado popular. Nesse caso, a sabedoria popular retumba, uma vez que aquele que não goza de saúde física e mental, dificilmente usufrui de qualquer outro direito. Afinal, comumente, aquele que não tem saúde, não chega às instituições de ensino, não é integrado ao mercado de trabalho, permanece aprisionado a sua moléstia enquanto esta durar ou permitir. Incapaz de viver com dignidade, o indivíduo doente, quando muito, sobrevive. Nesse sentido, destaca Catão, médico e sociólogo brasileiro:
[...] é no contexto da distribuição social da doença que se encontra a explicação para a associação entre as profundas desigualdades regionais de nosso país.1
Em outras palavras, a saúde possui importância primordial para o desenvolvimento humano e social. Esse fato foi evidenciado pela pandemia de Coronavírus, pois, diante da ameaça viral, os governantes, prontamente, realocaram verbas públicas e as redirecionaram à saúde de modo massivo. Essa reação não ficou adstrita apenas ao território nacional, tendo sido replicada ao redor do mundo por diversos gestores, que priorizaram o investimento na saúde pública para salvar o maior número de vidas possível – o que não surpreende, uma vez que um Estado sem seu povo, esvazia-se, perde sua razão de ser.
A pandemia mundial da COVID-19, demonstrou, em clara conotação, que o que interessa para qualquer Estado são as pessoas. Em meio à paralisação mundial devida à pandemia, indaga-se a real importância e para que serve o Estado senão o de preservar a vida das pessoas.2
Justamente por seu caráter essencial para o desenvolvimento individual e coletivo, é que a proteção à saúde humana é assegurada em toda e qualquer ordem jurídica que protege a vida e a integridade física, independentemente de estar ou não expressa na Constituição.
A saúde humana é um direito fundamental, aliás fundamentalismo, tão fundamental que mesmo em países Nos quais não está previsto expressamente na Constituição, chegou a haver um reconhecimento da Saúde como um direito fundamental não escrito (implícito), tal como ocorreu na Alemanha em outros lugares. na verdade , parece elementar que uma ordem jurídica constitucional que protege o direito à vida e assegura o direito a integridade física e com corporal, evidentemente, também protege a saúde, já que onde essa não existe e não é assegurada, resta esvaziado a proteção prevista para a vida e integridade física.3
De qualquer forma, nosso constituinte, possivelmente por entender a importância do direito à saúde e por temer deixá-lo à mercê da boa leitura do intérprete, fez questão de trazê-lo expressamente na Constituição (art. 6º e arts 196 a 200). Não obstante,é correto afirmar que o dever do Estado de prover saúde aos seus cidadãos é decorrente do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, que, como todo princípio, diferentemente das regras, importa em um mandado de otimização, conforme Alexy.
[...] princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidade jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização.4
Com base nisso, muitos juristas, principalmente aqueles que se encontram no polo de defesa do Estado, quando da judicialização do direito à saúde, alegam a “reserva do possível” como argumento para que não sejam obrigados judicialmente a fornecer determinado tratamento de saúde requisitado pelo cidadão.
Ocorre que, a “reserva do possível” é fruto de um transplante jurídico de origem alemã5 mal sucedido, que desembarcou de modo desconfigurado (sem a exigência de prova objetiva da incapacidade econômica do Estado6) em um país socialmente carente e subdesenvolvido, muito diferente da Alemanha.
De qualquer forma, o argumento da reserva do possível não pode ser aplicado ao direito à saúde, pois esse último se trata de um direito mais que fundamental. Nas palavras de Sarlet, trata-se de um direito “fundamentalíssimo”, ou seja, inerentemente ligado ao direito à vida, estando assim, portanto, fora da esfera de discricionariedade do administrador.
Há, por obviedade, outros direitos sociais previstos na Constituição, tais como educação, moradia, lazer etc. [...]. O mínimo existencial interliga-se com a ideia do direito de existir, e disso decorre que o Estado tem a responsabilidade constitucional de fazer com que, por sua omissão, o direito à vida não seja ceifado ou posto em risco.[...] O mínimo existencial não se encontra na esfera da discricionariedade do Poder Público, tendo, o judiciário, o papel de reconhecer essa intangibilidade e fazer com que os demais poderes possam manejar os recursos públicos, a fim de garantir uma vida de existência mínima.7
De modo que, é dever constitucional do poder judiciário exercer controle de mérito nos atos administrativos que digam respeito ao direito à saúde, dando provimento aos pedidos de cidadãos brasileiros que demandem por tratamento necessário8 e eficaz9, que não possa ser pago pelo autor da demanda sem afetar a sua subsistência. Afinal, como dizia Pontes de Miranda “o paternalismo passou, a subsistência é direito”.
O direito à subsistência está pra com o Estado e o Estado para com o direito à subsistência, como o fim para o meio e vice-versa. [...]. A subsistência, a higiene e assistência à mãe, ao recém-nascido, à criança, ao adulto, têm de ser direito, direito executável contra o Estado. Fora daí, nada feito. [...] o paternalismo passou. […]. A subsistência é direito. A assistência é direito. A escola e o ideal são direitos. Ao povo reclamá-los, exigi-los, executá-los.10
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1 CATÃO, Marconi do Ó. Genealogia do Direito à Saúde: uma reconstrução de saberes e práticas na modernidade. Edição do Kindle.
2 SILVA, Marcelino José Piancó da. Evolução do Direito à Saúde Pública no Brasil. Editora Dialética. Edição do Kindle.
3 SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde. pg 3 Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador, n. 11, set./nov. 2007. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/codrevista.asp?cod=233 Acesso em: 22 de ago. de 2021.
4 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2006. Disponível em: http://noosfero.ucsal.br/articles/0010/3657/alexy -robert-teoria-dos-direitos-fundamentais.pdf?fbclid=IwAR1SRmq5I3YBvVijjVZv_DMvu1nH-A3-HdUt4lMTZLi5t_QUaSKWQE5F8fk Acesso em: 23 de ago. de 2021.
5 “O primeiro foi o marco do instituto denominado “numerus clausus I”, quando, pela primeira vez, a Corte alemã entendeu que os direitos fundamentais a prestações positivas resultantes diretamente da Constituição devem ser limitados aos casos em que o indivíduo racionalmente possa exigi-los da sociedade, visando ao equilíbrio econômico global.” CRISTSINELIS, Marco Falcão. A Reserva do Possível na Jurisdição Constitucional Alemã e sua transposição para o Direito Público Brasileiro. Revista CEJ, Brasília, Ano XXI, n. 71, p. 122-136, jan./abr. 2017. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_ produtos/bibli_informativo/bibli_inf_2006/Rev-CEJ_n.71.11.pdf Acesso em: 23 de ago. de 2021.
6 “A alegada falta ou insuficiência de recursos financeiros para a efetivação do direito à saúde deve ser comprovada e invocada excepcionalmente, e não simplesmente alegada, como vê -se comumente nas ações judiciais.” SILVA, Marcelino José Piancó da. Evolução do Direito à Saúde Pública no Brasil. Editora Dialética. Edição do Kindle.
7 SILVA, Marcelino José Piancó da. Evolução do Direito à Saúde Pública no Brasil. Editora Dialética. Edição do Kindle.
8 Necessidade comprovada por laudo médico.
9 Conforme a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
10 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Os novos direitos do homem. Rio de Janeiro: Editorial Alba Ltda, 1933. p. 49) apud SILVA, Marcelino José Piancó da. Evolução do Direito à Saúde Pública no Brasil . Editora Dialética. Edição do Kindle.
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ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2006. Disponível em: http://noosfero.ucsal.br/articles/0010/3657/alexy -robert-teoria-dos-direitos-fundamentais.pdf?fbclid=IwAR1SRmq5I3YBvVijjVZv_DMvu1nH-A3-HdUt4lMTZLi5t_QUaSKWQE5F8fk Acesso em: 23 de ago. de 2021.
CATÃO, Marconi do Ó. Genealogia do Direito à Saúde: uma reconstrução de saberes e práticas na modernidade.Edição do Kindle.
CRISTSINELIS, Marco Falcão. A Reserva do Possível na Jurisdição Constitucional Alemã e sua transposição para o Direito Público Brasileiro. Revista CEJ, Brasília, Ano XXI, n. 71, jan./abr. 2017. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/doc umentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_ produtos/bibli_informativo/bibli_inf_2006/Rev-CEJ_n.71.11.pdf Acesso em: 23 de ago. de 2021.
SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador, n. 11, set./nov. 2007. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/codrevista.asp?c od=233 Acesso em: 22 de ago. em 2021.
SILVA, Marcelino José Piancó da. Evolução do Direito à Saúde Pública no Brasil. Editora Dialética. Edição do Kindle.
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