Migalhas de Peso

Arquitetura: tipos de normas que regem a Arquitetura

A Arquitetura, como criação intelectual, de fato deverá ser livre sempre porque o elemento fundamental dela é a imaginação criadora.

8/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

E o escravo não pode ser arquiteto, porque a escravidão é mesquinha, e porque a arquitetura, filha do pensamento, é livre como o vento que varre a terra.

Gonçalves Dias, Meditação

Neste longo e inconcluso poema em prosa, escrito em 1845/6, depois que voltara de seus estudos jurídicos em Portugal, o poeta maranhense Antônio Gonçalves Dias (1823-1864), pasmo com o escravismo, considera que “a arquitetura, filha do pensamento, é livre como o vento que varre a terra”. Faz um jogo de oposições no poema para condenar a escravidão que via nas cidades brasileiras, refletida em ruas “estreitas, tortuosas e mal calçadas” e em casas “baixas, feias e sem elegância”.

A Arquitetura, como criação intelectual, de fato deverá ser livre sempre porque o elemento fundamental dela é a imaginação criadora: “o belo e o grande é filho do pensamento” diz o poeta. Porém o arquiteto, profissional liberal, está submetido, fortemente, a diversos tipos de normas, a saber: (a) normas jurídicas; (b) normas técnicas; (c) normas éticas. Isto é dito, expressamente, no art. 18/IX da lei do CAU (lei 12.378/10), segundo o qual constitui infração disciplinar deixar o arquiteto “de observar as normas legais e técnicas pertinentes na execução de atividades de arquitetura e urbanismo”. Se constitui infração desobedecer normas legais e técnicas é porque, no sentido positivo, elas são obrigatórias.

Assim, segundo a Resolução CAU 143/17 - que dispõe sobre as normas para condução do processo ético-disciplinar no âmbito dos Conselhos de Arquitetura e Urbanismo - , as sanções para violação daquele dispositivo legal serão, conforme as circunstâncias de cada caso (imprudência, negligência, imperícia, má-fé, etc) -, (a) advertência ou repreensão (privada ou pública); (b) suspensão do exercício profissional (de 60 a 180 dias); ou (c) multa (de 4 a 7 anuidades). A sanção pecuniária pode ser aplicada cumulativamente tal como permite o art. 19/§ 4º da lei do CAU.

Quanto às normas éticas, disciplinando o comportamento do profissional, o respeito a elas está garantido pelo art. 17 da mesma lei do CAU, segundo o qual “no exercício da profissão, o arquiteto e urbanista deve pautar sua conduta pelos parâmetros a serem definidos no Código de Ética e Disciplina do CAU/BR”. Acrescenta o parágrafo único que tal código, ainda inexistente em 2010, “deverá regular também os deveres do arquiteto e urbanista para com a comunidade, a sua relação com os demais profissionais, o dever geral de urbanidade e, ainda, os respectivos procedimentos disciplinares”. O Código de Ética e Disciplina do CAU/BR está veiculado na Resolução 52/13 e os procedimentos ético-disciplinares na referida Resolução 143/17.

As diferenças entre aquelas normas referidas – legais, técnicas e éticas –, que vinculam o profissional, atrelando-o ao interesse público, são bastante claras. As normais legais são aquelas estabelecidas em lei ou outro ato normativo do Poder Público. Assim, um arquiteto que viole norma urbanística federal, estaduais ou municipais – estas as mais características (art. 30/VIII da CF) - cometerá certamente infração disciplinar. Mas não é só. As normas do próprio CAU/BR podem ser consideradas normas legais porque editadas no exercício de competência legislativa derivada diretamente da lei. Com efeito, o art. 28/II da lei do CAU permite ao Conselho Federal (e só a ele) editar os “provimentos que julgar necessários” para o adequado exercício da profissão. Portanto, trata-se de competência normativa derivada diretamente da lei - e que, por isso, não poderá o conselho desbordar dela, sob pena de tornar-se a ilegal a resolução tomada. Como escreve Odete Medauar, “as leis que regulamentam profissões e criam ordens ou conselho transferem-lhes competência para exercer a fiscalização do respectivo exercício profissional e o poder disciplinar”1: fora desse contexto, próprio e específico, o conselho agirá ilegalmente porque fora de suas competências.

Foi o caso, por exemplo, da famosa e controvertida Resolução 51 de 2013 e que afronta diretamente o art. 3º a lei do CAU ao estabelecer, unilateralmente, atribuições dos arquitetos privativas e compartilhadas com outras profissões liberais, notadamente os engenheiros: esta resolução foi revogada em 2019 e depois restabelecida com alguns itens suspensos, abrindo o CAU/BR consulta pública a respeito, que se encerrou em 29 de agosto de 2021. A própria concepção da resolução - e também da consulta pública aberta - é equivocada porque, evidentemente, o CAU/BR não é Poder Legislativo, que no nível federal é exercido somente pelo Congresso Nacional para disciplina essencial das profissões (cf. art. 22/XVI da CF). A lei do CAU, ao listar as atribuições dos arquitetos no art. 2º, não disse que elas eram fixadas com exclusividade, ou em caráter privativo, relegando o tema para resolução conjunta dos conselhos profissionais envolvidos (CAU/CREA) para arbitragem ou para decisão do Poder Judiciário (art. 3º/§§ 4º e 5º). O legislador preferiu não decidir tal questão central, polêmica há um século, e que entravaria a própria aprovação do projeto de lei em 2008/2010.

Quanto às normas técnicas, elas se diferenciam bastante das anteriores porque editadas por entidade de normalização, como é o caso, por exemplo, da ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas, uma associação civil sem fins lucrativos criada em 19402 – e por entidades outras como o Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do Estado, que edita instruções técnicas para segurança contra incêndios. Mesmo não sendo normas jurídicas em sentido estrito, é importante ressaltar que tais normas podem ser aplicadas tanto pelo CAU quanto pelo Poder Judiciário porque seu conhecimento e obediência integram aquilo que se denomina “dever de competência geral do arquiteto”, fundamentado no título acadêmico (concedido pela Universidade) e pelo título profissional (atribuído pelo conselho) que detém - dever que, uma vez violado, gera possibilidade de reparação ou indenização.

No texto “Caixa de esgoto em área privativa: dano moral e material”, publicado pelo Portal Vitruvius, em 2019, observei que “na falta de norma jurídica específica, embasa-se o julgado [Ap. 1062553-94.2017.8.26.0576] na norma da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT que diz: ‘Não devem ser colocadas caixas de inspeção ou poços de visita em ambientes pertencentes a uma unidade autônoma, quando os mesmos recebem a contribuição de despejos de outras unidades autônomas’ (NBR 8160)”. As normas técnicas, de cumprimento em princípio voluntário (salvo quando incorporadas pela lei, como é o caso do Código de Defesa do Consumidor, art. 39/VIII, ou do Código de Obras paulistano de 2017), determinam maior qualidade, segurança e eficiência na prestação de serviços, ao padronizar certos procedimentos e sistemas. Tratando de temas pontuais como acessibilidade, desenho técnico ou formação do canteiro, elas são objeto de estudo nas várias disciplinas de projeto – edilício e urbanístico - das graduações em Arquitetura e Urbanismo.

A respeito, o referido Código de Obras e Edificações paulistano aprovado pela lei 16.642/17 estabelece que “a conformidade do projeto às normas técnicas gerais e específicas de construção e às disposições legais e regulamentares aplicáveis aos aspectos interiores das edificações é de responsabilidade exclusiva do responsável técnico pelo projeto, de acordo com a declaração de responsabilidade a ser apresentada nos termos deste Código”. Tal como faz a lei do CAU no art. 18/IX, o preceito presume - e presume de modo absoluto - o conhecimento e a aplicação dessas normas todas por parte dos arquitetos, que assumem formalmente a responsabilidade jurídica pela obediência delas3.

Por fim, as normas da ética profissional são derivadas do Código de Ética e Disciplina do CAU, de 2013. Este código fixa as obrigações dos arquitetos em face de seis “valores”, portanto dividas em seis categorias: (I) obrigações gerais; (II) obrigações com o interesse público; (III) obrigações com o contratante; (IV) obrigações com a profissão; (V) obrigações com os colegas; (VI) obrigações com o Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU)4. Interessante observar que tais obrigações subdividem-se em princípios, regras e recomendações, o que na prática se torna bastante confuso, mesmo com a explicação que o próprio Código fornece: “Os princípios são as normas de maior abrangência, cujo caráter teórico-abstrato referencia agrupamentos de normas subordinadas. As regras, que são derivadas dos princípios, devem ser seguidas de forma específica e restrita às circunstâncias objetivas e concretas. A transgressão às regras será considerada infração ético-disciplinar imputável. As recomendações, quando descumpridas, não pressupõem cominação de sanção, todavia, sua observância ou inobservância poderão fundamentar argumento atenuante ou agravante para a aplicação das sanções disciplinares”.

Portanto, pela leitura do texto conclui-se que apenas a violação das regras éticas é que conduzem à aplicação de sanção o que é, certamente, um equívoco porque se sabe que a violação de um princípio é muito mais grave que a violação de uma regra - como já observou, lapidarmente, Celso Antônio Bandeira de Mello em seu Curso de Direito Administrativo5. Na sistemática do Código de Ética do CAU tal não ocorre - e a regra, derivada do princípio, torna-se mais relevante que ele apenas para efeito de operacionalização da aplicação das sanções. É uma solução questionável.

De outro lado, materialmente, é certo que as regras éticas referem-se a questões bastante amplas, pré-projetuais e pós-projetuais, profissionais e até mesmo acadêmicas, como, por exemplo, a regra do item 1.2.6: “O arquiteto e urbanista responsável por atividade docente das disciplinas de Arquitetura e Urbanismo deve, além de deter conhecimento específico sobre o conteúdo a ser ministrado, ter executado atividades profissionais referentes às respectivas disciplinas”. Terá o CAU poder de fiscalizar o currículo dos docentes universitários arquitetos? Qual a relação entre conselhos e Universidade? Isto constituirá tema de outro texto. A partir de alguma denúncia ou de fiscalização do Conselho, a aplicação da sanção ético-disciplinar é feita pelo CAU/UF (art. 34/IX) com possibilidade de recurso para o CAU/BR (28/VIII da lei do CAU).

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Direito administrativo moderno, p. 106.

2 Tão importante é a ABNT que o decreto que regulamenta o Código de Obras paulistano (Decreto 57776/17) diferencia as normas técnicas no art. 2º - “XVII - NT - Norma Técnica, expedida por órgão competente, exceto ABNT; XVIII - NTO - Norma Técnica Oficial (registrada na Associação Brasileira de Normas Técnicas - ABNT)”.

3 Neste sentido, é totalmente indevido o uso do condicional em matéria publicada pelo CAU/BR, em 2016: “cinco normas técnicas que todo arquiteto e urbanista deveria saber.” Disponível aqui.

4 Em linguagem pouco recomendável, o texto do Código utiliza dupla preposição e diz estabelecer obrigações do arquiteto “para com” o interesse público, o contratante, etc.

5 Curso de Direito Administrativo, p. 975.

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CASTILHO, José Roberto Fernandes. O arquiteto e a lei – elementos de Direito da Arquitetura. 3ª ed. São Paulo: Pillares, 2017

MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno. 16ª ed. São Paulo: RT, 2012

 

MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 30ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013

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José Roberto Fernandes Castilho
Professor de Direito Urbanístico e de Direito da Arquitetura da FCT/Unesp.

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