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A recuperação extrajudicial como instrumento para obtenção da regularidade fiscal

Com as mudanças legislativas que trouxeram uma nova roupagem à recuperação extrajudicial e regulamentaram a transação tributária, vislumbra-se uma possível aproximação entre os institutos

8/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Introdução

Apesar de a recuperação extrajudicial não ter tido ainda o mesmo destaque da recuperação judicial, e nem possuir os mesmos benefícios para o devedor em termos de regularização das dívidas tributárias, entendemos que há um importante espaço a ser ocupado por ela em relação a equalização do passivo fiscal das empresas em crise, que pode contribuir bastante para o desenvolvimento da relação das Fazendas Públicas com os processos de insolvência.

Com a adoção da consensualidade como um norte na relação Fisco-contribuinte1, e com a reforma do instituto da recuperação extrajudicial pela lei 14.112/20, tornando-o muito mais atrativo, temos uma combinação de fatores única que colabora para que finalmente as empresas possam enxergar na recuperação extrajudicial um caminho que também leva ao tratamento de seu passivo fiscal.

Ao mesmo tempo em que a abertura para negociação, por parte do Fisco, trouxe maior flexibilidade na estruturação de negócios jurídicos com os contribuintes, permitindo a construção artesanal de soluções para cada caso, por outro lado traz uma exigência ainda mais intensa de motivação dos atos praticados, que necessitam ser devidamente justificados, a fim de se demonstrar o atendimento aos princípios da legalidade, isonomia, impessoalidade e capacidade contributiva (o que foi positivado no §2º, do art. 1º, da lei 13.988/20). E o ambiente da recuperação extrajudicial se encaixa como uma luva nesse novo paradigma, pois permite o acesso da Fazenda Pública a negociação que foi levada a cabo com os credores privados, servindo tanto para comparação, quanto para compreensão do cenário enfrentado pela empresa em crise. 

2. A transação tributária e a recuperação extrajudicial

A reforma da lei 11.101/05 (LREF) encampou várias das sugestões que a doutrina apresentava para que fosse aperfeiçoada a recuperação extrajudicial, tornando o instituto muito mais atrativo e eficaz. Apesar disso, a reforma da LREF não alterou a questão da não submissão dos créditos tributários à recuperação extrajudicial, continuando o art. 161 da LREF a prever o credor tributário como credor não sujeito.

Ainda assim, a recuperação extrajudicial pode servir também para que a empresa em crise retome sua regularidade fiscal. De fato, a transação tributária pode ser útil para que, paralelamente à negociação do plano de recuperação extrajudicial com os credores sujeitos, a empresa em crise negocie também um plano de recuperação fiscal com a Fazenda Pública.

E aqui vale ser feito um alerta inicial: o parâmetro de comparação das opções disponíveis para empresas em recuperação extrajudicial não pode ser aquelas previstas para empresas em recuperação judicial. É certo que esta última possui muito mais vantagens, como a previsão de um parcelamento especial, o parcelamento de tributos passíveis de retenção na fonte e o desconto e prazos maiores na transação tributária. A recuperação judicial pressupõe uma situação de crise muito mais grave2 da empresa, o que justifica que a Fazenda Pública faça maiores concessões, a fim de preservar aquela atividade.

A comparação, então, deve ser feita com as opções disponíveis aos acordos privados celebrados fora do sistema de insolvência3, e é aí que conseguimos visualizar a abertura de novas possibilidades que se abrem para as empresas em recuperação extrajudicial.

A Lei da Transação Tributária (13.988/20) não trata em nenhum dispositivo da recuperação extrajudicial. No entanto, a Portaria PGFN nº 9.917/20, que regulamenta a Lei e que contém as normas gerais sobre o tema, no âmbito federal, dispõe de maneira expressa que os créditos detidos por empresas em recuperação extrajudicial serão considerados irrecuperáveis (art. 24, III, b). Ademais, também é prevista a possibilidade de formulação de proposta de transação individual independentemente do valor da dívida (art. 36 c/c art. 32, II).

Essas duas vantagens previstas da Portaria 9.917/2020 são bastante relevantes. A pré-caracterização como crédito irrecuperável já indica para a Fazenda Pública que deve haver uma maior flexibilidade na negociação da forma de pagamento daquela dívida, e que a empresa em crise poderá fazer jus à descontos (art. 11, I, da lei 13.988/20). É algo que não pode ser ignorado, e que pauta a negociação do acordo a ser firmado.

Além disso, a possibilidade de se apresentar proposta de um acordo de transação individual é realmente o grande diferencial à disposição das empresas em recuperação extrajudicial. Atualmente o patamar mínimo para tanto é de quinze milhões de reais (art. 4º, §1º, e art. 32, I, da Portaria PGFN 9.917/20), conforme autorizado pelo art. 14, III, da lei 13.988/20, que por uma questão de praticabilidade permitiu que fossem estabelecidos esses critérios.

Ou seja, via de regra, somente empresas com grandes passivos estão autorizadas a negociar um acordo customizado, enquanto as demais devem aderir às propostas padronizadas editadas pela PGFN. Já no caso das empresas em recuperação extrajudicial, é concedida a oportunidade de celebrar um acordo customizado às suas necessidades em qualquer caso, independentemente do valor de sua dívida. Isso permite a adaptação das garantias, da entrada, do volume inicial de pagamentos, dos descontos, dos valores das parcelas etc.

Ademais, nessa modalidade de transação tributária não há a previsão de se facultar à Fazenda Nacional o pedido de falência da empresa em razão da rescisão do acordo, afastando-se essa preocupação. Isso faz sentido, visto que também não prevê a LREF qualquer hipótese de convolação da recuperação extrajudicial em falência.

É importante então definirmos o que seria o "devedor em recuperação extrajudicial", para fins de aplicação das regras específicas da transação tributária. A nosso ver, o devedor se encontra "em recuperação extrajudicial" entre o protocolo do pedido de homologação do plano (art. 162 ou art. 163, da LREF) e a sentença de extinção do processo. Antes ou depois disso, não está mais o devedor "em recuperação extrajudicial", já que não há período de supervisão judicial, ao contrário do que pode ocorrer na recuperação judicial, que possui também normas específicas sobre o momento em que o devedor deixa de ter que acrescentar ao seu nome empresarial a expressão "em recuperação judicial".

Além dessas vantagens concretas e normatizadas, há também uma vantagem menos intuitiva na retomada da regularidade fiscal por parte das empresas em recuperação extrajudicial, que é a estabilização das relações jurídicas tributárias e das discussões que as envolvem, criando assim um ambiente de segurança jurídica que auxilia o soerguimento da empresa. 

3. A segurança jurídica, a transação tributária e a recuperação extrajudicial

O fato de o credor tributário não estar submetido à recuperação extrajudicial é certamente um dos itens que traz maiores dificuldades na obtenção da adesão dos credores ao plano de recuperação extrajudicial, caso o passivo fiscal seja relevante. Isso porque, estando a dívida tributária em aberto, as premissas que fundamentaram o plano homologado em juízo podem ser profundamente alteradas com o andamento da cobrança feita pela Fazenda Pública, podendo até mesmo inviabilizar o plano. Vale lembrar, também, que no caso em que a empresa em recuperação extrajudicial venha a falir, as obrigações novadas pelo plano não retornam às suas condições originais, ao contrário do que ocorre na recuperação judicial (art. 61, §2º, da LREF).

Além disso, alienação de bens no âmbito da recuperação extrajudicial não está protegida da possibilidade de se caracterizar a sucessão tributária do adquirente, uma vez que o inciso II, do §1º, do art. 133, do CTN se refere especificamente à recuperação judicial. Também não é afastada a possibilidade de se caracterizar a fraude à execução (art. 185 do CTN). Esse é outro ponto de preocupação que afasta potenciais investidores e que prejudica a efetividade da recuperação extrajudicial, pois a alienação de bens é sempre um dos principais meios de recuperação das empresas em crise.

Ambos esses fatores de inquietação podem ser minimizados com a transação tributária e com a retomada da regularidade fiscal do devedor. A negociação entabulada com a Fazenda Pública permite a criação de um ambiente de confiança entre Fisco e contribuinte, que poderá contribuir para que a negociação de um plano de recuperação extrajudicial com os credores privados chegue a um bom termo. Sendo celebrado um plano de recuperação fiscal que permita aos investidores vislumbrarem que a empresa terá todas as condições para manter sua regularidade fiscal, certamente os riscos antes apontados serão suavizados, trazendo segurança jurídica ao ambiente de negociação do plano de recuperação extrajudicial.

Os princípios aplicáveis à transação tributária e seus objetivos declarados (arts. 2º e 3º, da Portaria PGFN 9.917/20) prestigiam a busca por uma solução que melhor se amolde ao contribuinte, atenta às suas condições específicas. É enaltecida, também, a boa-fé objetiva como elemento central desse acordo. Dentre os deveres anexos da boa-fé objetiva que são criados para as partes da relação jurídica tributária4, podemos ressaltar os deveres de colaboração e de informação, que impõem às partes a obrigação de serem diligentes no cumprimento da obrigação acordada, de maneira coerente e evitando-se comportamentos que possam gerar insegurança, e que durante a vigência da relação jurídica haja o compartilhamento tempestivo de todas as informações necessárias para o desenvolvimento dessa relação no sentido de seu adimplemento.

Tendo em vista isso, fica claro que ao envolver o Fisco em seu plano de recuperação extrajudicial, mesmo que paralelamente à negociação com os credores privados e ao pedido de homologação judicial, a devedora desenvolverá um cenário de mais segurança jurídica em seu processo de soerguimento, facilitando a atração de investidores e a renegociação com os demais credores, podendo afastar preocupações em relação à viabilidade do plano e à sucessão tributária.

O espaço de negociação coletiva criado pela recuperação extrajudicial reduz os custos de transação e de barganha para a empresa em crise, e também permite ao Fisco compreender como ele se insere naquela gama de credores e como pode colaborar para o soerguimento de sua devedores, ao mesmo tempo em que garante a recuperação dos créditos tributários.

Cria-se, de um lado, a segurança jurídica necessária para que sejam feitos os desinvestimentos previstos no plano homologado judicialmente, e de outro a tranquilidade para o Fisco de que não estão sendo praticados atos fraudulentos ou blindagens patrimoniais. E é a recuperação extrajudicial a responsável por isso, pois estabelece a arena onde essas relações podem ser desenvolvidas, e também autoriza que seja sempre feito um acordo de transação individual, onde todas as variáveis citadas podem ser trabalhadas adequadamente.

______________

1 Nesse sentido, tivemos a edição pela PGFN das Portarias 502/16, 33/18, 375/18, 742/18, além da Lei de Transação Tributária e da realização de consultas e audiências públicas.

2 "Para problemas estruturais generalizados que exijam reformas societárias ou operações de grande complexidade especialmente envolvendo relevantes alterações em direitos de garantia e propriedade, situações de profunda iliquidez ou insolvabilidade, ou mesmo em casos em que se demande a solução de problemas complexos envolvendo interesses divergentes de variados credores ou classes de credores, mais recomendada à recuperação judicial, para a qual o próprio legislador propõe um longo rol de alternativas de reorganização (art. 50). Já a recuperação extrajudicial é muito menos abrangente e ambiciosa." SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro de. Capítulo VI, "Da Recuperação Extrajudicial". In: SOUZA JUNIOR., Francisco Satiro; PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. (Coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falências: Lei 11.101/2005. 2 ed. São Paulo/SP: Revista dos Tribunais, 2007. Pág. 524.

3 Scalzilli, Spinelli e Tellechea já afirmavam que "a maior concorrente da recuperação extrajudicial pode não ser a recuperação judicial, mas, sim, as modalidades alternativas de acordos privados celebrados entre o devedor e seus credores (art. 167)". In "Notas críticas ao regime jurídico da recuperação extrajudicial”. Revista de Direito Mercantil Industrial, Econômico e Financeiro, v. 161/162, p. 47-71, 2012.

4 Cf. GUIMARÃES, Bruno A. François. A Boa-fé Objetiva no Direito Tributário e os Deveres Anexos na Relação Obrigacional Tributária. Revista Direito Tributário Atual, n.47. p. 102-121. São Paulo: IBDT, 1º semestre 2021.

Gabriel Augusto Luís Teixeira Gonçalves
Procurador da Fazenda Nacional, sendo atualmente o Procurador-Chefe da Divisão de Assuntos Fiscais em São Paulo e Coordenador do Núcleo de Falências e Recuperações Judiciais em São Paulo.

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