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O sonho da contratação perfeita e a nova lei de licitações

A lei prescreve como princípio a celeridade na contratação pública e a arbitragem tem, geralmente, curso mais breve que a ação judicial, além de, agora, a ação judicial possuir prioridade de tramitação no Poder Judiciário (art. 177).

6/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Recentemente, me perguntaram se a nova lei de licitações é boa ou ruim. Solicitei 10 ou mais anos para responder. Disse, tentando não parecer presunçoso, que quero ser corresponsável pelo resultado da nova lei. Penso que, após a obra final do legislador, a sanção e os vetos presidenciais, seguidos pela derrubada de alguns vetos pelo Congresso Nacional, tornamo-nos todos responsáveis pelo sucesso ou pelo fracasso da nova legislação.

Os contratantes, os contratados e seu pessoal que lida com licitações e contratos; as Agências Oficiais de Cooperação Estrangeira ou os Organismos Financeiros Internacionais (art. 1º, § 3º); os Agentes Públicos (arts. 7 a 10); as Organizações Independentes Acreditadas (art. 17, §6º); os Órgãos de Assessoramento Jurídico da Administração (art. 53); os Garantidores, em especial os Seguradores (arts. 96 a 102); os Conciliadores, os Mediadores, os membros dos Comitês de Resolução de Disputas e os Árbitros (arts. 151 a 154); os Controladores (arts. 169 a 173); o Poder Judiciário e, claro, os Advogados, estão todos compromissados em fazer a lei dar certo e são estes que vão prestar contas do trabalho que ora se inicia: a aplicação da lei.

Na minha cota-parte de responsabilidade, sonhei com uma contratação exitosa, a qual passo a detalhar.

Se tratava de uma grandiosa e complexa obra pública, definida na lei 14.133/2021, pelo valor estimado superior a R$ 200.000.000,00 (duzentos milhões de reais), como obra de grande vulto (art. 6º, XXII).

O processo de contratação trilhou caminho seguindo todos os princípios esculpidos no art. 5º da lei, notadamente o primevo e novo princípio do planejamento. A obra foi incluída no plano de contratação anual do órgão contratante, racionalizando as contratações do período, garantindo o alinhamento com o seu planejamento estratégico e subsidiando a elaboração das respectivas leis orçamentárias (art. 12, VII). Com a finalidade de evidenciar o problema a ser resolvido e a sua melhor solução, de modo a permitir a avaliação da viabilidade técnica e econômica da contratação, a Administração iniciou o desenvolvimento de estudo técnico preliminar (art. 18, I e § 1º e 2º).

Desde o início do desenvolvimento do estudo prévio restou evidenciado pelo órgão que o empreendimento, por sua complexidade de execução, demandaria soluções inovadoras, optando a Administração por realizar um chamamento público de Procedimento de Manifestação de Interesse – PMI (art. 81). Tal procedimento contou com a participação de relevantes agentes do mercado que apresentaram substanciosos estudos, investigações, levantamentos e projetos relacionados à contratação e de utilidade para a licitação (art. 81, § 1º). Foram apresentadas no PMI soluções inovadoras de engenharia e diferenciais tecnológicos e metodológicos para a execução do empreendimento. A Administração analisou todos os estudos apresentados pelo mercado e elaborou parecer fundamentado com a demonstração de que material recebido estava adequado e suficiente à compreensão do objeto, de que as premissas adotadas foram compatíveis com as reais necessidades do órgão e de que a metodologia proposta é a que propiciaria maior economia e vantagem entre as demais possíveis (art. 81, § 3º).

Prosseguindo na fase preparatória da licitação, a Administração disparou uma série de procedimentos: iniciou os trâmites de licenciamento ambiental do empreendimento, cujo andamento processual goza de prioridade de tramitação nos órgãos ambientais (art. 25, § 6º); e abriu – em paralelo ao processo principal de licitação do empreendimento – novo processo de licitação para a contratação de projeto básico de engenharia, cujo procedimento licitatório igualmente deve observar a sistemática da nova lei.

Considerando que o projeto básico configura um serviço técnico especializado de natureza predominantemente intelectual (art. 6º, XVIII, "a") e que o valor da contratação foi estimado em valor superior a R$ 300.000,00 (trezentos mil reais), a Administração lançou edital para a contratação por técnica e preço, na proporção de 70% (setenta por cento) de valoração da proposta técnica (art. 37, § 2º, II). O julgamento neste critério de técnica e preço, conforme sabemos, não busca a contratação pelo menor preço, mas pelo melhor preço, modelo em que a qualidade do projeto de engenharia é sobremaneira valorizada (art. 37, I, II e III).

Com um excelente projeto básico de engenharia em mãos; ultimado o licenciamento ambiental prévio, obrigatoriamente obtido antes da publicação do edital (art. 115, § 4º); e avaliados todos os aspectos técnicos e emitido o parecer jurídico do órgão de assessoramento jurídico (art. 53, § 1º), a autoridade determinou a divulgação do edital de licitação (art. 53, § 3º), mediante a publicação e a manutenção do inteiro teor do ato convocatório e de seus anexos no Portal Nacional de Contratações Públicas – PNCP (art. 54), assim como por meio de publicação de extrato do edital no Diário Oficial e em jornal diário de grande circulação (art. 54, § 1º).  

O bem lançado edital contou com matriz de alocação dos riscos contratuais entre o contratante e o contratado, obrigatória para obras de grande vulto (arts. 6º, XXVII, 22 e 103). A matriz alocou os riscos de maneira eficiente, bem como estabeleceu os mecanismos para mitigação dos seus quando materializados durante a execução contratual (art. 22, § 1º).

Considerando a natureza do objeto e a complexidade do empreendimento, a Administração exigiu no edital a adoção, pelo futuro Contratado, da Modelagem da Informação da Construção (Building Information Modelling – BIM) para o acompanhamento do contrato, notadamente para as fases de desenvolvimento do projeto executivo e de execução dos serviços de montagem industrial (art. 19, § 3º).

O edital previu, ainda, a certificação por organização independente acreditada pelo INMETRO para a aceitação dos projetos executivos a cargo do Contratado e para certificar a conclusão de todas as fases da obra (art. 17. § 6º).

Apresentadas diversas propostas num ambiente de ampla concorrência, julgadas pelo menor preço, habilitada a empresa vencedora e ultrapassada a fase recursal, a Administração realizou a homologação do vencedor da licitação e o convocou para a assinatura do contrato administrativo, mediante prévia apresentação de garantia (art. 96, § 3º).

A execução contratual teve curso absolutamente normal, com o adimplemento das obrigações contratuais de lado a lado e o cumprimento rigoroso do cronograma contratual pela Construtora. Nada obstante, considerando a complexidade do objeto e a materialização de alguns riscos previamente arrolados na matriz contratual, houve pretensões de parte a parte (art. 103, § 4º). Por parte do Contratado, foi apresentado pedido de restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro da avença, formulado durante a vigência do contrato, conforme exigência legal (art. 131, parágrafo único).

A Administração cumpriu seu dever de explicitamente emitir decisão sobre o requerimento do Contratado (art. 123), dentro do prazo contratualmente estabelecido (arts. 92, XI e 123, parágrafo único). Algumas rubricas pleiteadas foram deferidas, outras rejeitadas pelo Contratante. As aprovadas administrativamente foram objeto de aditivo contratual consensual (art. 124, II). As indeferidas, foram submetidas pelas partes ao Comitê de Resolução de Disputas, previsto contratualmente e constituído pelas partes no início da relação contratual com caráter permanente e adjudicatório, cujas decisões tinham cumprimento obrigatório pelas partes (arts. 152 e 154). Referido Comitê decidiu, de maneira técnica e contemporânea a execução contratual, todas as disputas que lhe foram submetidas.

A obra foi integralmente concluída, seguindo todos os padrões de qualidade exigidos no edital. O cronograma de execução contratual foi cumprido à risca pelo Contratado e o preço pago pela Administração foi justo e em padrão de mercado, sem quaisquer sinais de sobrepreço ou superfaturamento, atingindo, portanto, os objetivos da licitação (art. 11, III). O empreendimento está em plena operação, tendo sido seguidos todos os princípios aplicáveis às contratações públicas, destacando-se os basilares da legalidade, da eficiência, do interesse público, da eficácia, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável.

Por fim, acordei feliz com a noite bem dormida. E pensei: será que alguma das partes discordou do entendimento do Comitê de Resolução de Disputas e pretende ingressar com procedimento arbitral (arts. 151 e 152) ou ação judicial para rediscutir, definitivamente, o assunto? Nunca saberemos. Porém, a lei prescreve como princípio a celeridade na contratação pública e a arbitragem tem, geralmente, curso mais breve que a ação judicial, além de, agora, a ação judicial possuir prioridade de tramitação no Poder Judiciário (art. 177).

Cristiano Borges Castilhos
Advogado, pós-graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente, é Diretor Jurídico da Construtora Queiroz Galvão S.A., Membro da Comissão de Direito Público da OAB/RJ, Vice-Presidente da Comissão de Obras, Concessões e Controle da Administração Pública da OAB/RJ, Membro da Comissão Especial de Obras, Concessões e Controle da Administração do Conselho Federal da OAB, Membro do IDASAN - Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro e Vice-Presidente da Comissão de Estudos de Improbidade Administrativa da OAB/RJ.

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