Desde a redemocratização que o agronegócio procura formas de relativizar a proteção concedida pelo texto constitucional aos interesses dos povos originários e quilombolas, todavia, adentramos em um estágio estarrecedor.
O capítulo oitavo da Ordem Social toca especificamente aos indígenas no texto da Constituição de 1988 (CR/88), o seu artigo 231 reconhece os direitos aos povos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, determinando que compete à União demarcá-las e protegê-las.
A Constituição de 1934 foi a primeira a mencionar os indígenas, até a Constituição de 1967 a menção aos indígenas foi esparsa e superficial considerando somente dois aspectos: a competência da União para legislar para a chamada incorporação à comunhão nacional (terminologia infeliz) e posse das terras.
A Constituição de 1967 inovou, além de assegurar a posse permanente das terras que habitam, reconheceu o direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais.
Conforme já mencionado, na CR/88 os indígenas receberam um capítulo específico, proteção que o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Brito denominou de Constitucionalismo Fraternal ou Solidário. Dois aspectos são fundamentais nessa proteção: o direito à diferença e o regime jurídico do direito à terra indígena. O direito à diferença traduz-se no respeito às línguas das populações indígenas e na proteção às tradições culturais.
O regime jurídico das terras indígenas pré-existe a formação estatal, o seu reconhecimento como direitos originários, como a fonte primária para a existência e exercício de outros direitos. Ainda sobre o regime jurídico, importa frisar o posicionamento emanado no julgamento da Pet. 3388-RR:
Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente ‘reconhecidos’, e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se torna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de ‘originários’, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos estes, que a própria Constituição declarou como ‘nulos e extintos’ (§ 6º do art. 231 da CF/1988.
A dificuldade inicial é a demarcação das terras indígenas, em seu artigo 67 os Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), dispõe que União concluirá a demarcação no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição, em 1988. Até o presente momento, em 2021, tal procedimento demarcatório não foi encerrado, perfazendo um total de vinte sete anos. Uma forma de sanar tal inércia é acionar os mecanismos de responsabilização internacional pelo descumprimento do dever primário de proteção aos direitos humanos, no sistema interamericano de direitos humanos, já que o Brasil compõe a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que reconhece a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Independente do inadimplemento da União na tarefa delegada pela Constituição, nada justifica as tentativas desarrazoadas dos agropecuaristas em violar a proteção aos povos e as suas respectivas terras. Desrespeitar tal proteção significa destruir o que ainda perdura da cultura dos povos originários, sua sabedoria, sua riqueza histórica, a biodiversidade ambiental, um verdadeiro genocídio daqueles remanescentes dos povos originários. Tal disparate irá propiciar malefícios irremediáveis para as futuras gerações, o atual desmatamento ambiental irá proporcionar um futuro distópico para a espécie humana.
O Agronegócio atualmente se encontra no epicentro do malfadado poder executivo eleito em 2018, desde então houve uma total derrocada na proteção ao meio ambiente e a proteção dos povos indígenas, a passada de uma boiada em vistas tão somente de interesses financeiros escusos, inomináveis, abjetos, lastimáveis. Houve a tentativa de supressão do Ministério do Meio Ambiente e da Fundação Nacional do Índio (Funai) pelo Ministério da Agricultura, restando infrutífera.
O atual chefe do Poder Executivo foi eleito com um discurso preconceituoso e odioso aos povos indígenas, apesar destas manifestações escabrosas nada afeta o texto constitucional. A base da democracia é o texto constitucional, a confluência dos interesses de toda a sociedade, e a separação de poderes. Independente do posicionamento ideológico do chefe do Poder Executivo, o que deve prosperar é o texto constitucional.
O agronegócio retoma a tese do Marco Temporal Indígena, a infeliz tentativa de suprimir a proteção territorial expressa no artigo 231 da CR/88, aos indígenas que não estivessem nas suas terras na data de 5 de outubro de 1988, um disparate total, uma infâmia do agronegócio. Uma total falta de empatia ao que remete aos povos originários.
A título de ilustração, sob esta linha argumentativa, aqueles povos originários que houvessem sido expulsos naquela data, por meios vis e ardilosos, das suas terras perderiam a proteção, um escárnio.
Mitigar a proteção das terras indígenas significa aceitar um lastimável processo de genecídio dos povos originários, afinal de contas pelo o quê os povos ainda sobrevivem é justamente as suas terras, o seu habitat é a fonte de alimentação, trabalho, reunião e culto. Sequer cogitar tal possibilidade é assombroso. A simples relativização já seria algo deplorável, pelo contrário, haveria de se encontrar formas de se efetivar a proteção aos povos originários e a biodiversidade ambiental.
Os órgãos internacionais estão pressionando cada vez mais e exigindo um posicionamento contundente do Brasil em vistas à proteção indígena. O alto índice de desmatamento e incêndios na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal é alarmante, atrelado à essa perfídia houve também um aumento no desrespeito aos direitos humanos dos povos originários.
O Agronegócio é um setor que movimenta a economia do Brasil, um baluarte. Contudo, isso não significa dizer que deve apropriar-se dos territórios indígenas e desmatar a biodiversidade ambiental, nada justifica tais posicionamentos.
O simples fato de haver uma denominada Medida Provisória (MP) da “Grilagem”, já é um verdadeiro escárnio, em meio a tantos que surgem na atualidade, tempos estranhos. Coincidentemente tais desfortúnios surgem a partir do início de um malfadado mandato eletivo iniciado em 2019.
Ante todo o exposto é de se afirmar que o agronegócio não é popular. Não deve ser vendido como algo de todo benéfico e necessário.
O agronegócio propõe justamente uma violação ao texto constitucional, uma mitigação à uma proteção ensejada no processo de redemocratização de 1988, que até o atual momento não foi alcançada em sua plenitude, a efetivação da proteção da constituição cidadã.
Ora, se ao invés de caminharmos no alcance da efetivação do texto constitucional, passamos a relativizar tal proteção estaremos em um verdadeiro processo de retrocesso social e cultural. Como prosperar se não conseguirmos sequer respeitar e efetivar uma proteção estabelecida no passado?
O que deve prevalecer é a proteção às terras indígenas, o respeito aos povos originários, a proteção à biodiversidade ambiental, sem quaisquer óbices. E qualquer tentativa de desrespeito a essas normas devem ser encaradas como ilícitos e, portanto, devem ser obstados, reprimidos e puníveis, sem pestanejo. Em vistas ao bem comum e respeito a todos.
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CUNHA, M. C. D. PAZ ENTRE AGRONEGÓCIO E DIREITOS INDÍGENAS? , 2021. Disponível aqui.
FORENSE, E. (ed.). Constituição Federal Comentada. 2018.
STF - Pet: 3388 RR, Relator: CARLOS BRITTO, Data de Julgamento: 03/04/2009, Data de Publicação: DJe-071 DIVULG 16/04/2009 PUBLIC 17/04/2009