Migalhas de Peso

1821 e 1822: Reação nacional

Após a partida de D. João VI para Portugal, D. Pedro I proclamou aos brasileiros que respeitaria as leis estabelecidas e privilegiaria a educação pública, a agricultura e o comércio. O regente procurava unificar os interesses das classes dominantes contra a ameaça externa.

3/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A cisão da sociedade colonial e do povo brasileiro é irreparável. (…) O meio social, com a mesma força transmutadora do meio físico, apropria e converte em agentes da revolução a muitos daqueles que se orgulhavam de bons e leais portugueses. D. João VI, acossado pelas tropas de Junot, veio lançar no terreno já aparelhado as instituições fundamentais do regime livre. Os revolucionários do Porto, solicitando o nosso apoio, reconhecem-nos implicitamente o direito à liberdade. (…) A independência subia do seio do povo, suscitando e elegendo os seus arautos entre brasileiros e portugueses, indistintamente1.

Em 27 de abril de 1821, apenas um dia depois da partida de seu pai a Portugal, D. Pedro I mostrou o seu lado estadista, proclamando aos brasileiros que respeitaria as leis estabelecidas e privilegiaria a educação pública, a agricultura e o comércio. Tudo foi feito no intuito de tranquilizar a população acerca da instabilidade vigente nos dois lados do Atlântico e aumentar a confiança do povo no seu novo governante. Enquanto foi regente do Brasil, o Imperador se voltou para assuntos de fundamental importância econômica e social, estipulando a desoneração de tributos, a garantia do direito de propriedade e a presunção de inocência.

A aparente generosidade de D. Pedro I tinha clara aspiração política, voltando-se a unificar os interesses das classes dominantes contra a ameaça externa. O problema foi que, “como sempre, o liberalismo só atingia os livres, não os escravos, mas para os brasileiros livres, sofrendo os abusos do absolutismo, as medidas eram sensacionais2.

As atitudes empreendidas pelo governo do regente refletiam um dos maiores obstáculos, até hoje, para a consolidação da nacionalidade brasileira: a clara e aberrante falta de isonomia real entre os cidadãos — mesmo entre os livres —, não obstante as garantias formais positivadas pelos bem-intencionados legisladores iluministas. É certo que nem toda discriminação necessariamente causa dano ao princípio da igualdade como esculpido pelo ordenamento constitucional; é preciso “indagar quais as discriminações juridicamente intoleráveis3. Nessa seara, vê-se que a escravidão, elemento máximo da discrepância social, servia de base (e até hoje serve) à flagrante quebra de isonomia, posto que trazia desigualdade de tratamento sem que houvesse vínculo de correlação lógica entre essa e os “interesses prestigiados na Constituição4.

De fato, o príncipe regente estava tentando remediar os males e manter a unidade do território brasileiro, já bastante abalado pela revolta da Bahia, iniciada em 10 de fevereiro de 1821, quando os baianos, liderados por Cipriano Barata, haviam instalado uma junta provisória de governo e jurado as bases da Constituição portuguesa, negando o reconhecimento da autoridade de D. Pedro I. Temendo uma retaliação pelo governo do Rio de Janeiro, os rebeldes solicitaram apoio militar lusitano, o que foi prontamente concedido pelas Cortes de Lisboa.

A presença militar na Bahia, representada pelo General Inácio Luís Madeira de Melo, encontrou forte resistência popular, a despeito de ter sido requerida pela junta provisória. A posição do Rio de Janeiro logo se fez clara: longe de buscar a submissão da província pela força, conclamava aos cidadãos baianos que lutassem pela união nacional e contra o controle absoluto das Cortes, “não obstante parecerem fazer o jogo de Lisboa5.

As lealdades no território brasileiro estavam erodindo, e o antigo jogo de poder, se reorganizando. Buscando esclarecer quem seria o verdadeiro governante no Brasil, não obstante o caráter representativo da regência de D. Pedro I, uma tropa lusitana no Rio de Janeiro se reuniu e forçou o regente a jurar as bases da futura constituição portuguesa, tal qual havia acontecido com D. João VI.

A truculência dos soldados portugueses nas províncias, aliada às medidas centralizadoras e autoritárias promulgadas pelas Cortes, serviu para propagar o sentimento antilusitano no Brasil. Não era propriamente um chamado à independência, posto que essa inquietação já existia no mínimo desde 1808, faltando apenas “consolidá-la com a monarquia brasileira e constitucional6.

De meados ao fim de 1821, a revolta popular pregava uma solução conjunta, mas com autonomia para ambas as partes do império lusitano, como se depreende de um poema que circulou no Rio de Janeiro nessa época, assinado “por um amante da pátria”:

(Imagem: Divulgação)

A opinião pública brasileira estava, portanto, dividida em três polos complementares e antagônicos: o Rio de Janeiro, sede do governo, da alta cultura e dos mais influentes comerciantes do país; Pernambuco, ainda marcado pela revolta de 1817, que propunha uma independência radical com o estabelecimento de uma república; e a Bahia, que, como dito, alternava entre rompantes de nacionalismo lusitano e defesas do constitucionalismo brasileiro.

As posições demasiado duras dos grupos dominantes em Pernambuco terminaram por isolar a província das negociações que estavam sendo feitas pelo país. A junta provisória estabelecida na Bahia foi derrubada rapidamente, tornando-se preponderante o partido dinástico, que “contentava-se com a independência monárquica e para a separação marchava, através de confraternizações efêmeras e condescendências com os dominadores8. Assim é que se construiu o eixo Bahia-Rio de Janeiro, que seria fundamental na consolidação do movimento pela independência do país.

A liderança baiana, sob a ameaça militar do General Madeira, propunha de início uma composição amigável, utilizando para isso o exemplo dos delegados enviados às Cortes de Lisboa. O Diário Constitucional, periódico publicado na cidade de Salvador a partir de 4 de agosto de 1821, expunha contrariamente que, não importando como viesse a ser feita a separação política, “é mais do que claro que o Brasil necessita de legislação própria, por ventura em muitos respeitos diferente da que convém a Portugal9.

O jornal, criado por Francisco Jê Acaiaba de Montezuma — futuro deputado constituinte e fundador do Instituto dos Advogados do Brasil —, se propunha a derrubar a junta de governo favorável aos portugueses, estreitando a lealdade do povo baiano com o governo independente do Rio de Janeiro. Foi assim que, transmutando o jogo de forças políticas na Bahia, o periódico se tornou sinônimo de resistência ao partido português e às determinações das Cortes. O General Madeira, escrevendo à junta de governo sobre a atuação do veículo em junho de 1822, dizia:

Assim tornam-se do maior perigo os escritos que se publicaram dirigindo a opinião pública de uma maneira própria para produzir a anarquia e guerra civil, e é por isso que o 25 do Constitucional, proclamando aos povos para se unirem ao Rio de Janeiro, é incendiário e seus autores perturbadores da ordem estabelecida10.

Em dezembro de 1821, as Cortes de Lisboa emitiram um decreto no qual ordenavam o retorno do regente a Portugal, medida inserida no grande plano de despojar o Brasil de sua autonomia recém-conquistada. Frente a essa determinação, até os grupos mais moderados ficaram atônitos. Houve larga manifestação de brasileiros, e mesmo de portugueses que moravam no país, contra a ordem das Cortes, pois “não viam na retirada do príncipe senão dissolução, anarquia e saqueio geral11.

Mais do que a ineficácia das propostas feitas pelos delegados brasileiros em Portugal, foi o autoritarismo das Cortes quanto à permanência ou não do príncipe regente no Brasil que alertou as lideranças políticas do futuro país para o projeto intransigente que viria a ser escrito. Em carta ao seu pai em 14 de dezembro de 1821, D. Pedro I escrevia que o povo se manifestou dizendo que “se a constituição é fazerem-nos mal leve o diabo tal coisa; havemos fazer um termo para o príncipe não sair, sob pena de ficar responsável pela perda do Brasil para Portugal12.

A agitação popular foi tanta que se multiplicaram declarações, pelas Câmaras Municipais, pelo Senado da Câmara e por grupos de comerciantes pedindo a manutenção do governo do regente. Agindo de forma ponderada e encorajado por um manifesto político dotado de mais de oito mil assinaturas, D. Pedro I manifestou a sua permanência por meio de José Clemente Pereira, notório maçom e Presidente do Senado da Câmara.

Não obstante a imprecisão da data — se em 9 ou em 10 de janeiro de 1822 —, as palavras de D. Pedro se tornaram célebres e serviram de fundamento moral para a iminente separação. No episódio que ficou conhecido como “Dia do Fico”, o futuro Imperador se manifestou: “como é para o bem de todos e a felicidade geral da nação, diga ao povo que fico13. A adesão de Pernambuco veio logo depois, em 21 de janeiro. 

Constatada a impossibilidade da união e tornada pública a resistência do regente às Cortes, decidiu-se formar um novo Ministério, liderado por José Bonifácio de Andrada e Silva — que, assumindo em 19 de janeiro, ficou depois conhecido como o Patriarca da Independência. Pondo-se a viajar pelo país e aglutinar os interesses dos diversos grupos por ele espalhados, D. Pedro I mostrou toda a sua desenvoltura frente às contradições fundamentais do regime que buscava instituir.

Sobre a tradição monárquica agirá a mensagem liberal, conjugadas na pessoa do “jovem herói” que sabia por sua vez combinar atrevimento e habilidade, seduzir as imaginações e conciliar fidelidade onde havia prevenção ou dissidência. Demonstrou-o logo na viagem a Minas (abril), como depois na excursão culminante a São Paulo, apalpando primeiro o terreno, enfrentando elementos suspeitos ou descontentes e triunfando numa onda de simpatia14.

A irredutibilidade da posição portuguesa a respeito da autonomia brasileira forçou a radicalização do movimento separatista no Brasil, visto como a única saída tangível para o domínio opressor operado pelas Cortes de Lisboa. Uma das formas de enfraquecer o jugo lusitano, representado inclusive militarmente, foi a de conceder baixas aos soldados e de realistá-los no Brasil, apelando para o sentimento nacionalista e constitucionalista que muitos desses militares já nutriam pelo país15. O Ministério de José Bonifácio constituiu, nesse período, um verdadeiro Conselho de Estado ao futuro Imperador, auxiliando no desenvolvimento e na aplicação das políticas de governo.

Atendendo a um pedido do Conselho de Procuradores das Províncias em 3 de junho de 1822, D. Pedro I decretou a reunião de uma Assembleia Geral Constituinte e Legislativa, cujos membros seriam eleitos nas províncias. Ainda que prévia ao rompimento oficial, essa medida alertou os portugueses da irrefreável revolução que se desenhava, porquanto significava que o “Brasil já possuía por vontade da nação um arcabouço constitucional que Portugal não admitia e de que não cogitava sua constituição, a qual devera ser comum16.

A narrativa construída no Brasil face à postura das Cortes de Lisboa, principalmente depois da convocação da Assembleia, não deixava qualquer margem à composição amigável entre os países. A beligerância crescente entre os povos do império lusitano indicava que nada poderia ser feito até a deflagração de um confronto militar. Assim defendia um brasileiro em folheto anônimo da época:

O Brasil tem-se constituído em Império independente e separado — É pois da sua dignidade e para bem da sua conservação, que este Império repila a força com a força, e sufoque com maiores e mais prontas forças as de Portugal. Não há um momento que se não deva já aproveitar17.

Em agosto de 1822, o príncipe regente empreendeu viagem à província de São Paulo, onde era ainda necessário consolidar a opinião pública em torno de si. Por decreto do dia 13 desse mês, confiou a regência à sua esposa, a Princesa Real D. Maria Leopoldina, ordenando ao Ministério e ao Conselho de Estado que procedessem como se o próprio D. Pedro I estivesse presente18.

Partindo com sua comitiva no dia seguinte, o futuro Imperador “já se despediu quase resolvido a declarar a independência19. Passou, nos dias sucessivos, por Lorena, Guaratinguetá, Pindamonhangaba, Jacareí, Mogi das Cruzes, Penha e Santos; em todas essas cidades, angariou apoio popular, modulando o seu ministério e fazendo alterações nos governos locais, tudo no intuito de garantir a adesão dos paulistas ao movimento que buscava concretizar.

Às margens do riacho do Ipiranga, em 7 de setembro de 1822, D. Pedro I declarou a Independência do Brasil. Com tal expediente, iniciaram-se profusas dificuldades diplomáticas que serão tratadas nos próximos artigos, voltados ao reconhecimento internacional da Declaração de Independência. Conforme alertado lugubremente por José Bonifácio, “todo governo em revolução só faz descontentes20.

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1 MARQUES, Xavier. Ensaio histórico sobre a Independência. 2ª ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1977. p. 27 e 28.

2 RODRIGUES, José Honório. Independência: revolução e contra-revolução: a evolução política. Rio de Janeiro: F. Alves, 1975. v1. p. 172.

3 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 11.

4 Ibidem. p. 17.

5 OLIVEIRA LIMA, Manuel de. O movimento da Independência: 1821-1822. 6ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 67.

6 FAUSTO, Boris; HOLANDA, Sergio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira: o Brasil monárquico: o processo de emancipação. 2ª ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1965. p. 156.

7 CARVALHO, José Murilo de et al (Org.). Às armas, cidadãos!: panfletos manuscritos da Independência do Brasil (1820-1823). Rio de Janeiro: Companhia das Letras e Editora Ufmg, 2012. pp. 169-170.

8 MARQUES, Xavier. Ensaio histórico sobre a Independência. p. 93.

9 “Nº 31, 27.03.1822”, apud SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Diário Constitucional: um periódico baiano defensor de D. Pedro – 1822. Salvador: Ed. UFBA, 2011. p. 61.

10  “Nº 42, 15.07.1822”, apud ibidem. p. 150.

11 VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. História da independência do Brasil: até ao reconhecimento pela antiga metrópole, compreendendo, separadamente, a dos sucessos ocorridos em algumas províncias até essa data. Brasília: Senado Federal, 2010. p. 107.

12 OLIVEIRA LIMA, Manuel de. O movimento da Independência. p. 185.

13 RODRIGUES, José Honório. Independência: revolução e contra-revolução: a evolução política. p. 209.

14 FAUSTO, Boris; HOLANDA, Sergio Buarque de. O Brasil monárquico: o processo de emancipação. p. 168.

15 RODRIGUES, José Honório. Independência: revolução e contra-revolução: a evolução política. p. 227.

16 OLIVEIRA LIMA, Manuel de. O movimento da Independência. p. 357.

17 CARVALHO, José Murilo de et al (Org.). Às armas, cidadãos!. p. 174.

18 BRASIL. Coleção das leis do Império (1821-1830). Disponível aqui. Acesso em 05.08.2021.

19 VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. História da independência do Brasil. p. 157.

20 ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de. Projetos para o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras e Publifolha, 2000. p. 111.

Guilherme Lerer
Advogado do escritório Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados, com experiência em Contencioso Cível e Empresarial, bem como em Arbitragem e em confecção e análise de contratos.

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