Sabeis bem que o vocábulo democracia tem uma única etimologia, mas que pode variar infinitamente de sentido. A democracia portuguesa de então não brilhava pela tolerância nem pelo espírito de justiça. (…) Lisboa não podia resignar-se à situação de uma capital decaída, privada do melhor de seu comércio transatlântico, profundamente atingida nos seus rendimentos e, por consequência, no seu luxo. Foi assim que ciúme para com o país de além-mar fez tanto, senão mais, pelo levante, quanto as fascinações das ideias novas1.
No artigo precedente, foi visto como a impetuosidade de Napoleão e a conjuntura comercial britânica forçaram a monarquia lusitana a se lançar através do Atlântico para o Brasil e como a estrutura administrativa da colônia foi, pouco a pouco, sendo moldada por ideais iluministas trazidos por estrangeiros que cada vez mais vinham ao Brasil em virtude da abertura dos portos.
Analisou-se, igualmente, como se desenvolveram as políticas empreendidas pelo príncipe regente para adequar a colônia ao nível cultural e institucional esperado da sede de um império, com a criação de estruturas jurídicas e administrativas que alteraram em muito o cotidiano dos habitantes do Brasil, gerando enorme desconforto entre os colonos e os portugueses recém-chegados. Agora, cabe esclarecer qual foi o resultado dessa desconfiança mútua, analisando a movimentação política, nos dois lados do Oceano, que propiciou o momento ideal para a quebra do domínio português sobre o seu território brasileiro.
A inversão valorativa que se operou entre colônia e metrópole nos primeiros anos de D. João VI no Rio de Janeiro causou extrema insegurança social, pois desconstituiu subitamente uma ordem estabelecida já propagada por séculos e mantida, em grande parte, pelos proprietários de terras. A introdução da autoridade metropolitana dentro do território brasileiro obscureceu as relações de hegemonia outrora estabelecidas, gerando vácuos de poder que tendiam a ser preenchidos pelos agentes da independência.
As províncias do norte e do nordeste do Brasil não compartilharam do enriquecimento financeiro e intelectual do qual se beneficiou o Rio de Janeiro, estando distantes demais para participar dos processos deflagrados pela chegada da Corte.
O governo, desprovido de riquezas e preso ao Tratado de Comércio Anglo-Lusitano de 1810, não podia aumentar o imposto de importação. Como solução, onerou principalmente as produções de açúcar e algodão, o que repercutiu pesadamente em Pernambuco e suscitou insatisfação geral.
De fato, a inconsistência do desenvolvimento econômico brasileiro no período joanino se deveu muito às amarras diplomáticas e fiscais que ligavam o país ao Reino Unido. Celso Furtado explica que os problemas entre a elite local e os comerciantes britânicos não eram de matriz puramente econômica, mas “resultavam principalmente da falta de coerência com que os ingleses seguiam a ideologia liberal”1. A divisão classista que esse sistema criou na sociedade brasileira era ainda mais evidente dentro das províncias, onde apenas os ricos proprietários de terras podiam rivalizar politicamente com os mercadores.
Estava claro que a conjuntura de um império luso-brasileiro era insustentável; havia ainda muitas disparidades entre a Corte e as províncias e nenhum interesse político em abrandá-las. Na visão dos súditos do interior, o Rio de Janeiro representava fidedignamente a antiga metrópole — “o ressentimento nativista concluiu que Lisboa já não estava em Lisboa, mas no Rio”2. Na ótica do governo, ao contrário, as demais províncias constituíam “um simples setor, embora o essencial, daquela grande empresa comercial que é a monarquia portuguesa, com o seu rei no balcão"3.
O primeiro grande sinal de instabilidade do regime foi a revolta de Pernambuco em 1817. Formada por uma união improvável de elementos rurais e mercantis, aliciados pela maçonaria local e seus ideais iluministas, ela representou “o descontentamento fluido de muitas categorias, soldados, comerciantes e sobretudo dos agricultores”4. Os diversos grupos insurgentes eram liderados, dentre outros, por Antonio Carlos Ribeiro de Andrada5 e pelo Frei Caneca; suas irritações se voltavam principalmente contra os comerciantes portugueses, favorecidos pelas novas taxas comerciais, e contra a Corte, que exercia sobre Pernambuco um sufocante domínio fiscal e jurídico.
Avançando sobre o governo estabelecido da província em 6 de março de 1817, os revoltosos chegaram rapidamente ao sucesso, com a rendição do governador, submetendo-se-lhes todas as demais autoridades locais sem muito desgaste. Apesar de desenvolvida e implementada por maçons adeptos do iluminismo francês, a sublevação não propunha, ao menos de pronto, a proclamação de uma república pernambucana e a formalização dos direitos dos cidadãos. Na verdade, os elementos republicanos e monarquistas se alternavam dentro do movimento; tanto que a junta de governo então formada considerou abrir “negociações com El Rei para solicitar a redução de impostos e o estabelecimento de limites ao poder dos governadores”6.
A revolta pernambucana acabou tão subitamente quanto começou. Logo em meados de abril, o governo central instaurou um bloqueio naval à província, que, aliado a um corpo militar terrestre sob as ordens do general Luís do Rego Barreto, foi bem-sucedido em promover a rendição dos insurgentes até o mês de junho7. Quando chegou ao Rio de Janeiro a notícia do fim da revolta, “foi acolhida com foguetes, repiques de sinos e iluminações gerais”8.
Conquanto breve, a revolta de Pernambuco representa um episódio determinante na história política brasileira: foi o primeiro movimento que uniu burgueses, agricultores, maçons, militares e eclesiásticos contra a administração central da dinastia portuguesa. A sua rápida derrocada, porém, revelou a inconstância da sua gestão, sempre às voltas com discussões sobre sistemas de governo e ideais políticos. Na verdade, ainda que os revoltosos não tivessem “nenhuma intenção de alterar as estruturas sociais”9, o “ensaio geral” de 1817 fixou as bases sobre as quais se mobilizaria a Independência.
O fim das guerras napoleônicas em 1815 permitiu o estabelecimento de uma nova ordem política na Europa. Os princípios da legitimidade e do equilíbrio dos poderes, estipulados no Congresso de Viena, foram os pontos de partida para a reconstrução institucional dos países que haviam sido abalados pelo expansionismo francês. A permanência do monarca e de sua Corte no Brasil nessas circunstâncias irritou os habitantes de Portugal, que, como exposto, já se viam desfavorecidos na conjuntura do império. Para além disso, a abertura dos portos foi explorada “como a causa da completa aniquilação, tanto das fábricas como do comércio de Portugal”10.
Tomando o exemplo de Espanha e Itália, o povo português se mobilizou, inicialmente, no Porto em 24 de abril de 1820, exigindo a convocação de Cortes populares para que se constitucionalizasse a política lusitana. A sublevação se instaurou em Lisboa em 15 de setembro do mesmo ano, com a deposição dos regentes, marcando-se a primeira sessão geral das Cortes para janeiro de 182111. O movimento, a exemplo do que seria a Independência brasileira, “não teve caráter popular, não modificou a estrutura social, não reformou as relações sociais. Foi um golpe da burguesia portuguesa, promovido pelos negociantes, fomentado pela Maçonaria e pelas ideias liberais”12.
Os ideais das Cortes de Lisboa, posto que aglutinados entre grupos heterogêneos, continham uma contradição fundamental, em termos. Se, de um lado, as Cortes buscavam a constitucionalização do regime e a concessão de liberdades pessoais ao povo, por outro agiam de forma reacionária e colonialista, tudo no intuito de resgatar a importância perdida para o Brasil e submetê-lo, novamente, à sua exclusiva jurisdição. Assim, parte dos seus debates foi dedicada a esse tema.
Inicialmente compostas apenas de portugueses da metrópole, as Cortes foram palco de amplas discussões acerca de liberdades individuais e das condições do império marítimo, sendo preponderante nesses temas a discussão sobre o status jurídico do Brasil13. Talvez o mais célebre deputado brasileiro nessa assembleia tenha sido Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, que, após o fracasso da revolta de 1817, punha-se novamente no cenário político nacional, buscando obter maior autonomia para o Brasil e, em especial, para as suas províncias.
A subjugação política que para os brasileiros constituía medida intragável era, não obstante o “orgulho metropolitano”14 dos portugueses, resultante da aplicação do liberalismo econômico que norteava a ação dos países europeus após o Congresso de Viena. Assim, as grandes disposições das Cortes de Lisboa sobre o Brasil se detinham mais na instituição do livre comércio, sustentado pelas produções internas de todas as partes do império indistintamente, do que nas proibições típicas de um pacto colonial. Nenhuma deliberação fantasiosa das Cortes, porém, faria frente à realidade:
O que efetivamente contava é que havia autonomia econômica, crescimento econômico e um reino brasileiro. Enfim, os efeitos de todas as medidas de D. João VI inviabilizavam de fato a volta do Brasil à condição de colônia, pois as mudanças que provocaram foram enredadas numa teia de interesses econômicos, políticos e diplomáticos, tecida por ingleses, brasileiros, monarquia portuguesa e monarquias europeias. (…) Nesse contexto, os resultados inesperados das disposições [das Cortes] — ou a “natureza das coisas”, segundo Silvestre Pinheiro — ergueram obstáculos intransponíveis para o efetivo restabelecimento do exclusivo15.
Para além das projeções liberais e colonialistas, a convocação das Cortes tinha o objetivo primário de constitucionalizar o regime político lusitano. Para isso, tencionava a integração da monarquia tradicional às correntes jurídicas da época. Influenciadas pela Revolução Francesa — “estranho caos de leviandade e ferocidade”16 —, essas pregavam a soberania nacional desvinculada do monarca e a separação de poderes, prevendo também o direito de propriedade e as liberdades de imprensa e de indústria.
Apesar da dificuldade prática de concretizar as medidas tramadas pelas Cortes, a chegada de notícias a esse respeito ao território brasileiro causava atritos já no início de 1821, principalmente nas províncias do norte e do nordeste. A pendência de uma Constituição proclamada à revelia do rei, unida à possibilidade de correspondentes insurreições dentro do Brasil, gerou nervosismo em D. João VI; foi desse modo que o monarca se viu forçado, em 26 de fevereiro de 1821, a jurar a constituição que estava sendo redigida pelas Cortes. Assim, “ainda longe de tornar-se efetivo, e sobretudo uniforme, o novo regime tornou-se oficial para todo o Brasil”17.
Encerrava-se, com efeito, o período joanino no Brasil, e apesar dos esforços do rei português, o balanço era negativo; ao nomear D. Pedro como regente e partir para Portugal em abril de 1821, deixava para trás um povo inquieto, um sistema jurídico vacilante e uma clamorosa desigualdade financeira. Sobre o legado de D. João VI, não há dúvidas de que “fora impelido pelo medo, e, pelo medo, à pátria regressava. Sua Regência em Portugal resultara na ocupação do país; sua Regência e Reinado no Brasil, na perda da colônia”18. Sob a flâmula de D. Pedro — “paladino do constitucionalismo”19 — se ergueria, enfim, a “fúria contagiosa”20 da revolução de Independência.
No próximo artigo, tratar-se-á do protagonismo político de D. Pedro, que, guiado pela maçonaria local, representaria a quebra radical do domínio português e o ápice dos movimentos nacionalistas da colônia, propiciando a declaração formal de Independência.
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1 FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 17ª ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1980. p. 95.
2 MELLO, Evaldo Cabral de. A outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2004. p. 35
3 PRADO JR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 385.
4 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Globo, 2012. p. 302.
5 “Foi um astro luminoso, que se afundou nas cores do poente; um nome glorioso, que a História conquistou para suas páginas. Sua figura gigante avulta no pórtico da Independência, como um dos criadores de nossa nacionalidade. (…) Enquanto houver um culto pelos grandes homens, e a virtude cívica inspirar a gratidão, o Brasil inteiro repetirá com religioso respeito o nome de Antônio Carlos, que irá abrindo um sulco luminoso através dos séculos futuros” (SISSON, Sébastien Auguste. Galeria dos brasileiros ilustres. Brasília: Senado Federal, 1999. V1. p. 281).
6 MELLO, Evaldo Cabral de. A outra Independência. p. 40.
7 OLIVEIRA LIMA, Manuel de. D. João VI no Brasil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006. p. 510.
8 Ibidem. p. 515.
9 SILVA, Maria Beatriz Nizza da (Coord.). O Império Luso-Brasileiro (1750-1822). Lisboa: Estampa, 1986. p. 385.
10 ARMITAGE, John. História do Brasil: desde o período da chegada da família de Bragança, em 1808, até a abdicação de D. Pedro I, em 1831. Brasília: Senado Federal, 2011. p. 61.
11 Idem.
12 RODRIGUES, José Honório. Independência: revolução e contra-revolução: a evolução política. Rio de Janeiro: F. Alves, 1975. v1. p. 69.
13 ROCHA, Antonio Penalves. A Recolonização do Brasil pelas Cortes: história de uma invenção historiográfica. São Paulo: Unesp, 2009. p. 87.
14 MARQUES, Xavier. Ensaio histórico sobre a Independência. 2ª ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1977. p. 66.
16 BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução em França. Brasília: Ed. UNB, 1982. p. 52.
17 FAUSTO, Boris; HOLANDA, Sergio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira: o Brasil monárquico: o processo de emancipação. 2ª ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1965. p. 159.
18 RODRIGUES, José Honório. Independência: revolução e contra-revolução: a evolução política. p. 169.
19 BITAR, Orlando. Missão constitucional de Pedro I. In:___. Obras completas de Orlando Bitar: estudos de Direito Constitucional e Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. v2. p. 327.
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