Migalhas de Peso

Por uma funcionalização do fato jurídico

A teoria do fato jurídico ainda tem relevante importância no ordenamento brasileiro, sendo certo que há necessidade de reconstruí-la, sob a perspectiva funcional do fato jurídico, de modo a valorar todo o ordenamento, com o escopo de concretizar a tutela jurídica da pessoa humana e atingir o objetivo solidarista constitucional.

30/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Introdução

Após a promulgação da Constituição Federal da República de 1988, o Direito Civil vem sofrendo grandes transformações advindas da elevação da pessoa humana ao topo do ordenamento jurídico1, fazendo com que a visão patrimonialista outrora prevalente cedesse lugar para uma ótica existencialista nas relações privadas.

Esta mudança impulsionou a necessidade de revisitar os institutos jurídicos clássicos de maneira a interpretá-los de acordo com os valores e princípios constitucionais. Este fenômeno foi denominado pela doutrina de constitucionalização do Direito Civil, o qual tem como premissa a prevalência do “ser” sobre o “ter”2, de modo a privilegiar as situações existenciais em detrimento das patrimoniais.

Encontra-se, neste ambiente, um dos institutos jurídicos mais tradicionais no direito civil, a “teoria do fato jurídico”, sendo certo que no cenário jurídico contemporâneo, a interpretação e a aplicação deste instituto deverão ser observadas sob um olhar renovado, afastando a tradicional perspectiva patrimonialista existente no momento da sua construção.

Com efeito, verifica-se que, nesta atmosfera de transformação, o jurista terá que reconstruir os ditames da teoria do fato jurídico sob a perspectiva civil-constitucional, compatibilizando os seus preceitos originais com os valores constitucionais.

2. Fato jurídico. Conceito. A teoria do fato jurídico

Para os civilistas clássicos, o fato jurídico é notado pela produtividade dos seus efeitos. Neste sentido, Francisco Amaral dispunha que fatos jurídicos são “acontecimentos que produzem efeitos jurídicos, causando o nascimento, a modificação ou a extinção de relações jurídicas e seus direitos”3.

Entretanto, a análise do fato jurídico sob o prisma da produção dos seus efeitos não parece ser a mais adequada, haja vista que um fato jurídico pode não chegar a produzir seus efeitos efetivamente, apesar de possuir capacidade para tanto.

Seguindo esta linha de pensamento, Pontes de Miranda conceituou o fato jurídico como “o fato ou o complexo de fatos sobre o qual incidiu a regra jurídica: portanto, o fato de que dimana, agora, ou mais tarde, talvez condicionalmente, ou talvez não dimane, eficácia jurídica”4.

Parecendo seguir a mesma concepção traçada, Pietro Perlingieri dispõe que “fato jurídico é qualquer evento idôneo, de acordo com o ordenamento, a ter relevância jurídica”5. No entanto, o aludido jurista acrescenta ao raciocínio delineado que todo fato é juridicamente relevante, independentemente da produção de efeitos6. A fim de clarear este entendimento, o jurista cita que o simples fato de um indivíduo andar numa rua constitui um fato juridicamente relevante, tendo em vista o exercício da liberdade de circulação, valor constitucionalmente protegido (art. 5º, XV, CF)7.

Como se verá adiante, a concepção do fato jurídico definida por Perlingieri parece coadunar-se mais adequadamente ao direito civil contemporâneo, pois quanto mais ampla for a abrangência do fato jurídico, maior será o reconhecimento da tutela nas situações jurídicas. Esta perspectiva decerto facilita a compreensão de que o direito civil deve ser interpretado à luz dos valores constitucionais.

Contudo, diante das fortes raízes na concepção patrimonialista e individualista que o direito civil possui, a visão acerca do fato jurídico tem, por vezes, se restringido ao texto da lei sem observar o ordenamento de forma unitária e, consequentemente, limitando a tutela jurídica.

Neste sentido, a denominada “teoria do fato jurídico”, criada por Pontes de Miranda, parece fortalecer a lógica formalista, dificultando a ampliação do alcance do exame do fato jurídico. O aludido jurista sintetizou o processo pelo qual o fato ingressa no mundo jurídico da seguinte forma:

A regra jurídica é norma com o que o homem, ao querer subordinar os fatos a certa ordem e a certa previsibilidade, procurou distribuir os bens da vida. Há o fato de legislar, que é editar a regra jurídica; há o fato de existir, despregada do legislador, a regra jurídica; há o fato de incidir, sempre que ocorra o que ela prevê e regula8.

Percebe-se, com efeito, que Pontes de Miranda dividia o mundo dos fatos e o mundo jurídico. Em suma, a teoria ponteana dispõe que (i) a regra jurídica (norma jurídica) contém uma hipótese fática, (ii) a hipótese fática surge no mundo dos fatos, (iii) há a incidência9 da norma jurídica sobre a hipótese fática, surgindo o fato jurídico. Ou seja, a regra jurídica assinala o que deve entrar no mundo jurídico. Se não há regra jurídica, aquele fato não ingressará no mundo jurídico.

A fim de ilustrar a lógica da teoria proposta, cumpre trazer, como exemplo, o processo fenomenológico decorrente do nascimento de uma criança. O art. 2º do Código Civil10 versa sobre a hipótese fática (o nascimento). Quando esta hipótese fática acontecer, incidirá a norma jurídica e, por consequência, surgirá o fato jurídico.

Todavia, a visão tradicional do fato jurídico leva ao entendimento de que podem existir fatos irrelevantes, afastando, portanto, determinadas situações da pretensão de tutela jurídica, o que contraria a perspectiva civil-constitucional como já mencionado alhures.

Outrossim, não obstante o valor histórico da concepção ponteana, o sistema jurídico contemporâneo é unitário, composto por regras jurídicas, mas, especialmente, por princípios jurídicos11, motivo pelo qual não é possível interpretar uma regra jurídica sem levar em consideração todo o ordenamento jurídico, notadamente os dispositivos constitucionais.

Ademais, a separação entre o mundo dos fatos e mundo jurídico denota uma visão ultrapassada do direito civil, baseada numa visão estática da relação jurídica e calcada no método subsuntivo de interpretação12, critério inapto a promover a tutela jurídica e alcançar os objetivos constitucionais.

De toda forma, não obstante a necessidade de releitura dogmática da teoria do fato jurídico, a sua classificação ainda possui relevância no ordenamento, visto que capaz de solucionar diversos problemas jurídicos.

_________

1 (...) a Constituição Federal, ao contrário, pôs a pessoa humana no centro do ordenamento jurídico ao estabelecer, no art. 1º, III, que sua dignidade constitui um dos fundamentos da República, assegurando, desta forma, absoluta prioridade às situações existenciais ou extrapatrimoniais”. (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na Medida da Pessoa Humana, estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2019. p. 21-22.)

2 SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. São Paulo: Ed. Atlas, 2013. p. 18-22.

3 AMARAL, Francisco. Direito Civil, Introdução. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 333. No mesmo sentido, Caio Mario expunha que “fatos jurídicos são os acontecimentos em virtude dos quais começam, se modificam ou se extinguem as relações jurídicas”. (PEREIRA, Caio Mario. Instituições de Direito Civil. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 291)

4 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 18ª ed. Saraiva: São Paulo, 2012. p. 145.

5 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2008. p. 635.

6 Ibid., p. 638-639.

7 “Não existe, portanto, fato que não receba uma valoração expressa ou implícita do ordenamento. Há quem afirme a existência de fatos juridicamente irrelevantes: é uma teoria herdada do passado, da concepção do direito como garantidor das situações adquiridas, do ordenamento construídos somente por regras, e não por princípios. Os chamados fatos “juridicamente irrelevantes”, na verdade, ou são fatos relevantes (como o exercício da liberdade), mas não predeterminados a ter eficácia, ou não são fatos. A respiração de uma formiga não é um fato juridicamente irrelevante: simplesmente não é um fato”. (Ibid., p. 640)

8 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de Direito Privado. Tomo I, Parte Geral. Campinas: Bookseeler, 2000. p. 57.

9 “A incidência é, assim, o efeito da norma jurídica de transformar em fato jurídico a parte do seu suporte fáctico considerado relevante para ingressar no mundo jurídico”. (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. Op.cit., p. 108.)

10 Art. 2º - A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

11“Em primeiro lugar, não se pode imaginar, no âmbito do direito civil, que os princípios constitucionais sejam apenas princípios políticos. Há que se eliminar do vocabulário jurídico a expressão “carta política”, porque suscita uma perigosa leitura que acaba por relegar a Constituição um programa longínquo de ação, destituindo-a de seu papel unificador do direito privado. O civilista, em regra, imagina como destinatário do texto constitucional o legislador ordinário, fixando os limites da reserva legal, de tal sorte que não se sente diretamente vinculado aos preceitos constitucionais, com os quais só se preocuparia nas hipóteses – patológicas e extremas – de controle de constitucionalidade. Tal preconceito o faz refém do legislador ordinário, sem cuja atuação não poderia reinterpretar e revisitar os institutos de direitos privado, mesmo quando expressamente mencionados, tutelados e redimensionados pela Constituição”. (TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Tomo I. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 18.)

12 Assim, a solução normativa aos problemas concretos não se pauta mais pela subsunção do fato à regra específica, mas exige do intérprete um procedimento de avaliação condizente com os diversos princípios jurídicos envolvidos”. (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na Medida da Pessoa Humana, estudos de direito civil-constitucional, op.cit., p. 318.)

Alan Sampaio Campos
Sócio do escritório Safer Advogados. Pós-graduado em Direito Civil-Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestrando em Direito Civil-Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC - Rio).

Daniel Rivera
Advogado em Veirano Advogados. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO). Cursando atualmente o LL.M em Direito: Negócios na Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RIO).

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