Migalhas de Peso

Afinal, por que falar sobre Legal Design?

Nenhuma área do conhecimento é capaz de se desenvolver sozinha. Já é hora de pensar em Legal Design.

31/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O debate sobre inovação no mundo jurídico tem o potencial de nos direcionar para dois debates alternativos1. Por um lado, um espaço de resistência dos próprios advogados às mudanças que (não) devem acontecer por meio da tecnologia; já por outro, um caminho para a exaltação das novas tecnologias; inteligência artificial, dados, blockchain, automatização de decisões ou contratos e tantas outras inovações que podem revolucionar a forma que pensamos e estruturamos os serviços jurídicos. A partir desta observação, em meados de 2013, Margaret Hagan fundou o Legal Design Lab da Universidade de Stanford, que difunde a aplicação da metodologia de Design Thinking no mundo do Direito, especialmente após desenvolver a notória obra Law by Design (2017).

Logo de início, Hagan clareia uma premissa relevante para a discussão ao colocar que “[está] escrevendo este livro para neutralizar a tendência de falar sobre inovação jurídica apenas em termos de tecnologia”2. Enquanto o design é um campo estruturado a partir da ideia do “como”, o Direito tem um papel complementar proporcionando a ideia de “o quê”: o conteúdo propriamente dito, as leis e as decisões. Ou seja, utilizar uma metodologia de Design Thinking3 é uma forma de descobrir maneiras mais inteligentes e, de fato, aplicáveis para criar produtos inovadores e entregar serviços mais satisfatórios, seja para leigos ou para a própria classe jurídica. Afinal, é evidente que existe uma lacuna na linguagem utilizada pelos operadores do direito.

Mas então, o que é Legal Design?

Ante o exposto, “a definição de Legal Design passa a ser: a aplicação de princípios e elementos de design e a experiência do usuário na concepção e na elaboração de documentos ou produtos jurídicos”4. Nesse sentido, o Stanford Legal Design Lab trabalha com a ideia de que existem três pontos principais de união entre o design e o Direito5: (i) a criação de uma cultura experimental, inovando a forma como nós, profissionais do direito, desenvolvemos soluções para o setor; (ii) uma perspectiva de inovação centrada no usuário: focando no cliente e no usuário leigo que precisa utilizar os sistemas jurídicos, prestando serviços mais adequados à sua função e, por fim; (iii) novos caminhos para o trabalho jurídico e a prestação de serviços à justiça.

Neste ponto, vale recorrer brevemente à Teoria dos Contratos incompletos. De acordo com Hart, do ponto de vista econômico, os contratos completos seriam aqueles que teriam uma contingência para absolutamente todas as situações, ou seja, trazem uma solução eficiente para tudo6. Assim, é inevitável pontuar que os custos de transação para termos contratos completos seriam extremamente altos. Diante da incompletude dos contratos, adotar práticas de Legal Design Contract Design7, pode contribuir para a mitigação das fragilidades dos mecanismos contratuais, desenvolvendo documentos pensados diretamente para o usuário.

Eis que surge uma questão sobre o tema: então Legal Design se trata de usar figuras, ícones, cores e símbolos nos produtos jurídicos? A resposta, por sua vez, é simples: a aplicação Design Thinking no Direito difere da simples utilização de Visual Law. Isto é, adotar práticas de design aos documentos jurídicos não é sinônimo de torná-los mais agradáveis visualmente. A proposta reside em um processo de pensar e planejar detalhadamente a concepção de determinado produto jurídico8. A metodologia de Legal Design pode ser aplicada em todos os tipos de documentos, já os recursos gráficos não. É evidente, portanto, que contratos de M&A demandam elementos e ferramentas divergentes de contratos de produção de obras audiovisuais ou ainda de pareceres jurídicos de clearance.

Trago como exemplo, o contrato dos usuários da startup brasileira de serviços financeiros, Nubank9. Anteriormente às cláusulas do contrato, o usuário tem acesso a um resumo10 com uma redação simplificada seguida das principais obrigações e direitos daquele que utiliza os serviços oferecidos pela empresa. Não foi necessário utilizar recursos visuais ou tecnologias complexas, apenas uma simples reestruturação da forma que estamos acostumados a apresentar os documentos jurídicos, combinada à simplificação da redação contratual. Sendo assim, fica claro que a metodologia de Legal Design deve ser pensada e desenvolvida de acordo com as necessidades específicas que se mostram mais eficientes para nossos objetivos, criando documentos que fazem mais sentido para os clientes e/ou usuários.

E por que falar deste tema agora?

A mudança na forma como os profissionais jurídicos e consequentemente, como oferecemos os serviços jurídicos ao público requer, cada vez mais, criatividade e inovação no modo em que abordamos nosso trabalho. O foco deve estar em como melhorar esse processo, sem necessariamente, aguardar que a inteligência artificial domine todo o mundo jurídico ou o desenvolvimento de um novo modelo de negócios que tire os advogados do jogo11.

Diante destes fatos, algumas das universidades de maior renome em âmbito internacional já oferecem cursos e estudos aprofundados sobre Legal Design Design Thinking. São exemplos, Stanford12, Berkeley13, Harvard14 e até mesmo a Fundação Getulio Vargas15, no Brasil. Além disso, a plataforma ReInvent Law Channel16, apoiada pela Michigan State University, reúne palestras de grandes nomes da área como Margaret Hagan, apresentando Law by Design e Paul Lippe, com Legal by Design.

Ainda neste sentido, em Legal Design: criando documentos que fazem sentido para os usuários (2020), os autores da primeira obra da América Latina sobre o tema, realizaram uma pesquisa de análise de comportamento de usuários diante de documentos jurídicos17, abrindo novos caminhos para o debate no Brasil. Observou-se que, a partir da experiência do usuário, é interessante desenvolver documentos pensando neste, não em si mesmo; dosando o conteúdo (se necessário) e evitando qualquer tipo de ambiguidade. Assim, a partir deste estudo, identificou-se quais os elementos mais interessantes para cada tipo de documento jurídico; seja contratos com quadros-resumos, peças com diagramações específicas, linhas do tempo ou ainda QR Code.

Sabemos que a tecnologia não irá reduzir a importância da classe jurídica, mas não restam dúvidas de que observamos mudanças significativas na forma como os serviços são pensados e prestados; especialmente em relação aos modelos de cobrança de honorários profissionais18. Isso ocorre uma vez que a utilização da metodologia de Legal Design pode ser vista como um serviço que exige disponibilidade e reflexões específicas. Nem todo caso requer uma tese inédita ou complexa e por esse motivo, utilizamos recorrentemente minutas com poucas adaptações. Por conseguinte, excluindo a falsa ilusão de que todo documento jurídico seria unicamente para determinado usuário, nem toda estrutura pronta pode ser adequada para quem pretende utilizá-la19.

Desse modo, “enquanto alguns escritórios consideram […] ameaçador, outros verão nisso oportunidades interessantes. A sistematização do serviço oferece a oportunidade de fornecer aos clientes um serviço mais responsivo e com preços mais competitivos e, se a oferta não for coberta por concorrentes, haverá lucratividade”20. Afinal, nenhuma área do conhecimento é capaz de se desenvolver sozinha. Já é hora de pensar em Legal Design.

__________

1 HAGAN, Margaret. Law by Design. 2017. Disponível aqui.

2 Ibidem.

Desenvolvida e aplicada nos grandes projetos de inovação do Vale do Silício, nos EUA, Design thinking é uma metodologia que tem como objetivo organizar o processo criativo, dividido na descoberta do desafio, sua interpretação, a ideação da oportunidade, a experimentação da ideia e a evolução do experimento, de forma que é aplicável a todas as áreas do conhecimento. Ver CUNHA; MAIA; NYBO, Capítulo 5: Entre Legal Design e Design Thinking, 2020.

4 CUNHA, Mayara; MAIA, Ana Carolina; NYBø , Erik Fontenele. Legal Design: criando documentos que fazem sentido para os usuários. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 13.

5 HAGAN, Margaret. Law by Design. 2017. Disponível aqui.

6 HART, Oliver; MOORE, John. Foundations of Incomplete Contracts. NBER Working Paper N. 6726, 1998.

7 Pelizzon (2020) pontua que “o contract design deve ser entendido como um serviço que extrapola o simples ato de se elaborar e interpretar um contrato. Contém em si o compromisso de eficiência contratual, por meio do qual é possível mitigar riscos pela simplificação ou pela antecipação de questões a serem discutidas em juízo. (…) Entre as principais estratégias de contract design estão a simplificação, o uso de termos vagos ou imprecisos, a antecipação de fatos e de matérias de direito, a distribuição do ônus probatório entre as partes, a adoção de cláusulas de limitação de responsabilidade e a escolha entre jurisdição estatal ou arbitral, inclusive a definição de prazos, procedimentos e demais aspectos processuais.”

8 CUNHA, Mayara; MAIA, Ana Carolina; NYBø , Erik Fontenele. Legal Design: criando documentos que fazem sentido para os usuários. São Paulo: Saraiva, 2020.

9 Contrato completo. Disponível aqui. Acesso em: 18 de janeiro de 2020.

10 Nos termos do contrato “Honrando o nosso compromisso de simplicidade e transparência, fizemos o máximo para ter um contrato reduzido a escrito em uma linguagem simples e direta. Aqui você terá um resumo dos principais pontos do nosso Contrato e sobre a sua conta do Nubank. Lembrando que isso é apenas um resumo para facilitar a sua leitura do Contrato inteiro! Primeiramente, é importante você ter uma ideia de seus principais direitos e também de suas principais obrigações.”

11 HAGAN, Margaret. Law by Design. 2017. Disponível aqui.

12 Disponível aqui.

13 Disponível aqui.

14 Disponível aqui.

15 Disponível aqui.

16 Disponível aqui.

17 Principais resultados da pesquisa. Disponível aqui.

18 PELIZZON, Thiago Conceição. Contract design: reflexões a partir da análise de contratos de empréstimo pessoal celebrados com consumidores / Thiago Conceição Pelizzon. – 2020. 114 f. Orientador: Wanderley Fernandes. Dissertação (mestrado profissional) – Fundação Getulio Vargas, Escola de Direito de São Paulo.

19 Idem.

20 Referência à Susskind, 2010, p.36 em PELIZZON.

___________

BERKELEY LAW. Courses. Disponível aqui. 18 jan. 2021.

CUNHA, Mayara; MAIA, Ana Carolina; NYBØ, Erik Fontenele. Legal Design: criando documentos que fazem sentido para os usuários. São Paulo: Saraiva, 2020.

CUNHA, Mayara; MAIA, Ana Carolina; NYBØ, Erik Fontenele; HENRIQUE, Lucas Santana. Pesquisa sobre a aplicação de legal design e comportamento do usuário. Bits Academy, 2020. Color. Disponível aqui. Acesso em: 18 jan. 2020.

FGV. Metodologia Design Thinking aplicada aos negócios. Disponível aqui. Acesso em: 18 jan. 2021.

HAGAN, Margaret. Law by Design. 2017. Disponível aqui.

HART, Oliver; MOORE, John. Foundations of Incomplete Contracts. NBER Working Paper N. 6726, 1998. Disponível aqui.

HARVARD. Designs on the Law. Disponível aqui. Acesso em: 18 jan. 2021.

NUBANK. Contrato da Conta do Nubank. Disponível aqui. Acesso em: 18 de janeiro de 2020.

PELIZZON, Thiago Conceição. Contract design: reflexões a partir da análise de contratos de empréstimo pessoal celebrados com consumidores / Thiago Conceição Pelizzon. – 2020. 114 f. Orientador: Wanderley Fernandes. Dissertação (mestrado profissional) – Fundação Getulio Vargas, Escola de Direito de São Paulo.

REINVENT LAW CHANNEL. ReInvent Law Channel. Disponível aqui. Acesso em: 18 jan. 2020.

STANFORD LEGAL DESIGN LAB. Courses We Offer. Disponível aqui. Acesso em: 18 jan. 2021.

SUSSKIND, Richard. Tomorrow’s Lawyers. Oxford: Oxford University Press, 2013.

Alice Calixto Gonçalves
Colaboradora do escritório CQS/FV – Cesnik, Quintino, Salinas, Fittipaldi e Valerio Advogados.

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