Migalhas de Peso

Santo Agostinho de Hipona, um jurista universal

Este Jurista Universal, Agostinho, evocando este profundo excerto de Antígona de Sófocles, quando nele narrou o Coro dos Anciãos e proclamaram: “Há muitas maravilhas neste mundo, não há uma maior que o homem”.

31/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

I

A comemoração, no calendário religioso, de Santo Agostinho de Hipona, no dia 28 agosto, leva-me a revisitar um pouco da sua contribuição ao pensamento humano. E, desde 2004, quando veio a público, em Madri e em Barcelona, a coleção "Juristas Universales" (Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A. Madri, 2004.), passei a considerar, avaliar, refletir e ensejar a elaboração do direito, a partir dos juristas romanos, que colocaram Agostinho nessa moldura.

A agudeza dessa obra cíclope, em 4 volumes, que foi construída por mais de 500 pensadores de requinte intelectual, partiu da história biográfica da ciência jurídica desde meados do século II a.C. até o final do segundo milênio.

E louvores à Faculdade de Direito da Universidade de Navarra, que, então, comemorou bodas de ouro com esta monumental obra, instituição que partiu do seu fundador e primeiro Grande Chanceler, o canonizado Josemaria Escrivá.

Interroguei-me, porque Agostinho de Hipona mereceu ser alinhado dentre os juristas romanos pelo Professor Rafael Domingo, à época Catedrático de Direito Romano, na Universidade de Navarra e autor da Introdução da Primeira Parte (Juristas Romanos) do Volume I: Juristas Antigos. E foram 43 outros, principiando Manio Manilio (Manius Manilius, p.111) e encerrando com Doroteo (Dorotheus, p. 237). Ressalto que cada um deles foi criteriosamente analisado por um jurista de origem diferente, embora ponderando o objeto do conjunto da obra em 4 volumes fosse dar o tom universalista aos que forma trazidos à lume. O Professor Rafael Domingo não deixou por menos e esmerou-se no esboço e minucioso roteiro de esclarecer como e porque Juristas Antigos receberam este título significativo. E para isso valeu-se de erudita dissertação bem explicativa (da pág. 81 até a pág. 110).

II

Permanece a dúvida: por que Agostinho foi alcunhado e tido como Jurista Universal?

O Professor Rafael Domingo nos respondeu convincentemente: são juristas universais os que per se surgiram na história como expoentes no seu tempo, “Al di là”, pois 

Sendo o Direito vida (ius vita oritur, poderia dizer-se, como um paradoxo, parafraseando os juristas medievais) e havendo recebido, ao longo dos séculos, uma grande influência da própria História, assim como da Filosofia, Teologia, Filologia, Política, Sociologia e, atualmente, Economia, tornando-se, dessarte, imprescindível afirmar as densidades de determinados autores que, sem serem propriamente juristas ou não exclusivamente juristas, deixaram na Ciência do Direito uma marca indelével (p., 35).

E, citando vários, desde Hermann Cunning (médico) a filósofos como Kant, Fichte, Marx e Rawls, teólogos como Agostinho, Tomás de Aquino, Suárez e até sociólogos como Max Weber, Durkheim, além de estadistas como Thomas Jefferson e – por que não? – legisladores como Justiniano, Caio, Napoleão e, supreendentemente, filólogos, sendo exemplo Paul Krüger. E o Professor Domingo com esta magistral correlação assente a justificativa: “Tendo caráter geral, por tanto, o critério tem sido flexível, como é o próprio Direito, se incorporarem todos aqueles pensadores que, por sua contribuição ao Direito, um jurista culto espera se encontrar em uma obra como a que agora é publicizada” (p. 36).

Encerram-se as costuras intelectuais, prima-se a levar em conta o que Agostinho produziu de sorte pode alinhar como um jurista universal dentre tantos outros, nas diversas áreas do conhecimento humano, sem se ater ex radice à matéria do direito.

III

Santo Agostinho, ou Aurelius Augustines Hiponensis (354-430 d. C.) foi abordado pelo Professor Antonio Troyol Sena (já havia falecido quando a obra foi publicada. Troyol foi Catedrático de Filosofia do Direito, além de magistrado emérito do Tribunal Constitucional e Acadêmico da Real Academia Espanhola de Ciências Sociais e Políticas), nas páginas 219/226.

Isto posto, passemos a considerar Agostinho jurista, mas universal.

Conciso, conseguiu biografá-lo com precisão, como se reproduz:

Pai da Igreja Católica. Por seu pai, Patricius Aurelius, pagão, e sua mãe, Mônica, de família de classe média e cristã, participou Santo Agostinho das tradições. Nasceu em Targate, no Norte da África (no dia 13 de setembro de 354); recebeu sua primeira educação em sua cidade natal em Madaura (365-369). De pronto estudou Retórica em Cartago (370-374), de cujo ambiente frívolo participou (teve uma concubina e um filho, Adeodato). Foi professor de eloquência em Tagarte e em seguida em Cartago (375-383), sendo que a leitura do livro perdido Hortensius, de Cícero, nele despertou a inquietude espiritual para a filosofia. Seu primeiro contacto com a Bíblia não satisfez sua consciência religiosa, fato que o levou a aderir à seita dos Maniqueus. Parte para Roma, onde o ceticismo o influencia por algum tempo. Obtém, finalmente, uma Cátedra em Milão (383-386). Ali conheceu Santo Ambrósio, cuja predicação, unido à leitura de Plotino, logra-lhe superar o materialismo, preparando o caminho que, em Agosto de 386, o leva a converter-se. A partir de então, dedicará sua vida e seus dotes intelectuais à defesa de sua fé contra o paganismo, por um lado, e contra as heresias, de outro (p. 221)

IV

Estudante do Colégio Anglo-Latim, onde cursei o então denominado Colegial (Clássico pós-ginásio), tivemos a oportunidade, sem dúvida feliz, de ter como Professor de filosofia, o bacharel em direito, Adib Casseb, e também como Professor de Matemática e Lógica Odinovaldo Ricetti, que nos introduziram na reflexão desinteressada de humanistas do espírito, partindo de Platão e Aristóteles. Daí, quem se interessasse ia além, porque se discutia em classe Política, com os olhos voltados ao bem comum. E, paulatinamente, margeamos, até a superação dos pensadores gregos e romanos para chegarmos aos construtores da Cidade Antiga, que Fustel de Coulanges retratou com maestria. Um passo a mais arribamos à construção utópica de Santo Agostinho confrontada com a elaboração realista de Tomás de Aquino (também Jurista Universal, no segundo volume, p. 464/468).

Agostinho nos provocou, no 2º ano de filosofia, um momento existencial quase de ruptura (como estamos hoje em dia) porque professava, em parte de seu pensamento, como antropólogo e que o Professor Troyol, enfrentou com profunda lucidez e assim exprimiu: “se antes conciliou Santo agostinho a imutabilidade da lei eterna e a lei natural com a mutabilidade do Direito Positivo, agora limita o âmbito jurídico-positivo com respeito ao ético e o jurídico-natural, reduzindo-os às relações que tem um alcance social mais relevante” (p., 221).

Por isso, nós nos deteremos em Agostinho, apenas, tão somente, em algumas obras.

V

Sustentando-me nos livros de valor inestimável de Tarcisius J. Van Bavel (Saint Augustine, Florença: Marcatorfonds and The Augustinian Historical Institute, 2007) e de Allan D. Fitzgerald (Augustine through the Ages: an Encyclopedia, Michigan: Editora Williams B. Eerdmans Publishing Company, 1999), elencamos, partindo da síntese destas obras imorredouras, algumas poucas agostinianas que se adequam ao digno papel de Jurista Universal:

 I. Confissões (em latim: Confessiones). É uma obra autobiográfica de Santo Agostinho, constituída de 13 livros escritos em latim, entre os anos 397 e 400. A obra não é uma autobiografia completa, pois foi escrita após Agostinho completar 40 anos. No entanto, fornece um registro ininterrupto de seu desenvolvimento de pensamento e é o registro mais completo que se tem de sua vida, no qual relata suas experiências antes de se tornar cristão e converter-se. Comentando sua própria obra, Agostinho diz que a palavra confissões (no plural), mais que confessar pecados, significa adorar a Deus. É, portanto, um hino de louvor além de, entre outras coisas, ser uma obra teológica significativa, apresentando também meditações espirituais. Nela, Agostinho escreve sobre como se arrependeu de ter levado vida pecaminosa e imoral. Discute seu arrependimento por ter sido adepto da religião maniqueísta e acreditar na astrologia. Ele escreve sobre o papel de seu amigo Nebridius em ajudá-lo a se persuadir de que a astrologia não era apenas incorreta, mas má, e como o papel de Santo Ambrósio em sua conversão ao cristianismo foi fundamental. Assim, os primeiros nove livros das Confissões são autobiográficos e os quatro últimos são comentários e, significativamente, mais filosóficos. Estampa intensa tristeza por seus pecados sexuais e escreve sobre a importância da moralidade sexual. Os livros que compoem as Confissões foram escritos como orações a Deus, daí o título, baseado nos Salmos de Davi.

Alguns vêem as Confissões como obra divisível em livros que refletem vários aspectos da Trindade e da crença trinitária.

II. Da Trindade (em latim: De Trinitate), outro livro escrito em latim por Agostinho, para discutir a Trindade no contexto do Logos. Embora não seja tão conhecido como algumas de suas outras obras, é indiscutivelmente sua obra-prima e de maior importância doutrinária para a Filosofia e Teologia. As teses disseminadas versam sobre o mistério da Santíssima Trindade. A partir desta obra, foram assumidas por toda a intelligentsia da Igreja Ocidental e continuam a exercer forte influência pelos séculos afora no mundo das ideias. A obra tenta nos introduzir na vida íntima do Deus-Trino e na própria vida de nosso espírito. O desejo de Santo Agostinho é mostrar ser a vida divina particularmente semelhante à atividade íntima da alma que se pensa, se conhece e se ama. Ele almeja fazer a mente humana voltar ao Criador e levá-la a tomar consciência de sua dignidade de imagem de Deus. É sua genialidade.

III. Sobre a Doutrina Cristã (em latim: De doctrina Christiana) é um dos textos de carater mais teológico escritos por Agostinho. Composto por quatro livros que descrevem como interpretar e ensinar as Escrituras. Os primeiros três desses livros foram publicados em 397 e o quarto adicionado em 426. Ao escrever este texto, Agostinho definiu três tarefas para professores e pregadores cristãos: “descobrir a verdade no conteúdo das Escrituras, ensinar a verdade das Escrituras , e para defender a verdade bíblica”.

IV. Cidade de Deus (em latim: De civitate Dei), é o um dos livros de filosofia cristã mais famosos escritos em latim por Agostinho, no início do século V d.C. O livro foi uma resposta às alegações de que o Cristianismo causou o declínio de Roma e é considerado uma das obras mais importantes da doutrina cristã, sendo uma das criações mais representativas do gênero humano.

A propósito da filosofia ou teologia da História, este livro trata dos mais variados e complexos assuntos que sempre apaixonaram e torturaram o espírito humano: da origem e substancialidade do bem e do mal, do pecado, da culpa e da morte, do direito, da lei e das penas, do tempo e do espaço, da contingência e da necessidade, da Providência, da ação humana e do destino no desenvolvimento da História: do ser, do conhecer e do agir do homem, de Deus, da natureza e do espírito, da temporalidade, do eterno, da perenidade e dos ciclos cósmicos, da profecia e do mistério como argumento apologético, da pessoa, da cidade e da comunidade humana.

Em sendo obra capital de um dos mais influentes Padres da Igreja, A Cidade de Deus é uma pedra angular do pensamento ocidental, expondo muitas questões profundas da teologia, dos quais resplandecem “sofrimento dos justos”, “a existência do mal”, “o conflito entre o livre arbítrio e onisciência divina” e a “doutrina do pecado original”.

V. Do Livre-Arbítrio (em latim: De libero arbítrio), nada mais nada menos do que livro densidade poética saliente de Agostinho e versa sobre a liberdade de vontade do indivíduo. Escrito e estruturado como um diálogo platônico com um aluno chamado Evódio.

O autor iniciou De libero arbitrio como parte de uma série de trabalhos contra o maniqueísmo e o pelagianismo especificamente. Desafiou o determinismo, identificando-o como uma heresia que leva ao dualismo, no primeiro volume e investigou as condições da existência de Deus e do conhecimento nas outras duas partes de que foi composta.

VI. Da Vida Beata (em latim: De beata vita), focando-se, agora, na temática da felicidade, motivo de discussão por muitos filósofos há séculos, Agostinho, aqui, faz uma tentativa filosófica de mensurar o conceito de felicidade a partir da via teológica. Com a promoção de um encontro, ele propõe aos seus amigos uma retórica sobre a felicidade. A abrangência desta pesquisa, ao correr de Cronos, tem como ponto de partida a obra de Agostinho e outros autores que o seguem, com o objetivo de demonstrar sua trajetória na busca da vida feliz que propôs em elegante dissertação. "Você é livre para fazer suas escolhas, mas é prisioneiro das consequências". (Pablo Neruda). Por conseguinte, é possível partirmos em busca da demonstração da felicidade no curso da história, pois frequentemente ela é admitida ou entendida apenas como um momento de bem estar: é atada ao tempo e a ele condicionada e subjugada?

Agostinho também nos propõe uma forma de conhecimento norteada pela felicidade.

VI

Procuro encerrar com gala, este Jurista Universal, Agostinho, evocando este profundo excerto de Antígona de Sófocles, quando nele narrou o Coro dos Anciãos e proclamaram: “Há muitas maravilhas neste mundo, não há uma maior que o homem”.

A síntese? Gênesis 1,26/27; 2,18, 22/23.

Jayme Vita Roso
Advogado.

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