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Delegado da Cunha: houve improbidade na monetização do canal no Youtube?

Caso traz novos desafios interpretativos à lei de Improbidade Administrativa.

27/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

No dia 11 de agosto de 2021 (quarta-feira), diversos portais divulgaram que o Ministério Público do Estado de São Paulo, por meio da Promotoria do Patrimônio Público, instaurou inquérito civil para apurar se o delegado de polícia Carlos Alberto da Cunha, conhecido como “delegado da Cunha”, ganhou dinheiro com vídeos de operações oficiais da Polícia Civil postados por ele no canal do YouTube que leva o seu nome.

Segundo as reportagens, da Cunha é investigado por enriquecimento ilícito – modalidade mais grave entre os tipos previstos na lei de Improbidade Administrativa. Conforme matéria veiculada pela Folha, o delegado teria declarado que monetizou seu canal apenas depois de ser afastado das operações de rua, quando precisou criar um instituto.

Muitas questões de ordem jurídica, portanto, emergem dessa situação.

Para fins teóricos, vamos desconsiderar os aspectos ainda não esclarecidos -como o fato de a monetização ter ocorrido somente após o afastamento do delegado) - e nos concentrar nas questões subjacentes a essa investigação, no que tange à configuração do possível ato de improbidade. Assim, vamos à primeira e fundamental pergunta.

1. Houve enriquecimento ilícito?

Sabe-se que a lei 8.429/1992 apresenta três principais condutas ímprobas: (i) enriquecimento ilícito (artigo 9º); (ii) dano ao erário (artigo 10-A); (iii) lesão aos princípios da Administração Pública (artigo 11), além daquela prevista no artigo 10-A do diploma legal, que, para fins do presente artigo, deixamos de mencionar.

Como vimos, a investigação que recai sobre o delegado diz respeito a possível enriquecimento ilícito – a forma mais grave entre os quatro tipos previstos no regramento. Para que ela seja configurada, é necessário que o agente obtenha qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas como sujeitos passivos.

Portanto, antes de mais nada, precisamos investigar se, de fato, houve por parte do delegado da Cunha a obtenção de ganhos patrimoniais indevidos em razão do exercício do cargo público.

Como dito anteriormente, a investigação decorre de possível monetização do canal do YouTube em que o delegado documentava e expunha operações da polícia civil na cidade de São Paulo. Dessa forma, a vantagem patrimonial obtida, se houve, não decorreu diretamente do exercício da função pública, mas da monetização de um conteúdo audiovisual produzido no exercício da função pública.

O aspecto indireto da possível obtenção de ganhos financeiros pode parecer pouco relevante quando colocado dessa forma, mas nos leva a uma série de questões interpretativas que podem balizar diversos casos no futuro. Por exemplo: podemos concluir que existe uma proibição geral para a monetização de qualquer forma de divulgação de atividades desempenhadas por agentes públicos? Se os relatos das operações policiais fossem produzidos textualmente e publicados em um blog que contém banners publicitários que geram remuneração, estaríamos diante de um ato de improbidade administrativa? Ou a vedação vale apenas para conteúdo audiovisual? E se, em vez de divulgar as operações policiais, o delegado ministrasse aulas e fizesse relatos, em seu canal do YouTube, sobre as operações das quais participa: haveria a mesma proibição? Como fica o caso de um promotor de justiça que comercializa, através de marketing digital agressivo, cursos de atuação perante o Tribunal do Júri? Ele também não está obtendo vantagens financeiras indevidas em razão do exercício da sua função pública?

Não temos aqui, a pretensão de responder cada uma dessas perguntas, mas apenas a intenção de expor os complexos desdobramentos que o caso pode ensejar de agora em diante.

Queremos apontar ainda para o fato de que este caso é um típico exemplo de como as mudanças da sociedade influenciam a interpretação de uma lei produzida em outra época. Cabe lembrar que a lei de Improbidade Administrativa foi publicada em 1992, ou seja, em uma época muito anterior à popularização da internet e à revolução tecnológica que nos conduziu às formas de economia digital que temos hoje em dia.

Embora não seja possível, em muitos casos, afirmar qual foi a exata intenção do legislador ao produzir determinada norma, esse é um contexto que nos autoriza a afirmar com certeza que o objetivo do tipo descrito no artigo 9º da lei de Improbidade Administrativa não era punir o agente público que monetiza canal do YouTube voltado a relatar sua atividade.

A verdade é que as quase três décadas de vigência da lei de Improbidade Administrativa, os estudos realizados sobre ela, a doutrina e a jurisprudência produzidas em torno do assunto, nos fizeram entender exatamente o espírito desse regramento: trata-se de uma lei voltada à proteção do patrimônio público, seja ele material ou aquilo que muitos autores chamam de “patrimônio moral da Administração”; uma lei com vocação ao combate da corrupção e aos casos de grave ineficiência no setor público e que fornece ferramentas eficientes para afastar o agente desonesto ou gravemente ineficiente.

Por isso, sabemos bem que, quando se falava em “auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida” em razão do exercício de cargo público, pensava-se no agente, servidor ou empregado público que se utiliza da sua função em prol de interesses particulares. Logo, podemos nesse primeiro ponto concluir que, se não é totalmente descabido falar em enriquecimento ilícito no caso do delegado da Cunha, é no mínimo desproporcional equipará-lo aos sujeitos que “comercializam facilidades” no âmbito da Administração.

Tudo isso nos leva à próxima pergunta fundamental.

  1. Houve violação aos princípios da Administração Pública?

Ainda que, para fins teóricos, partamos da premissa de que houve enriquecimento ilícito, devemos investigar se tal elemento é suficiente para a configuração do ato de improbidade ou se a responsabilização, nesse caso, ainda necessita da conjugação de outros fatores.

Na hipótese do artigo 9º da lei 8.429/1992, que trata da forma mais gravosa de improbidade, Aloísio Zimmer Júnior destaca que “para enquadramento nesse tipo legal, sempre haverá afronta a princípios, o dano patrimonial ao erário ocorrerá na maior parte das vezes e o locupletamento será a regra inafastável.”1

Nesse ínterim, já percebemos de antemão que o mero enriquecimento do agente não configura, por si, o ato de improbidade administrativa. No caso envolvendo o delegado, sabemos que não houve dano algum ao erário. A questão central é saber se houve concomitante violação aos princípios da Administração Pública.

Os princípios da Administração, como se sabe, estão descritos no artigo 37, caput, da Constituição Federal: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Além deles, o precitado artigo 9º da lei 8.429/1992 ainda menciona os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições.

A análise do fato à luz de cada um desses princípios poderia ensejar páginas inteiras de discussões, a partir de múltiplas abordagens. Todavia, para encurtar esse caminho, podemos responder a essa pergunta a partir de uma rápida pesquisa jurisprudencial e, a partir dela, examinar alguns casos comparativamente.

Para tanto, podemos utilizar a decisão proferida no processo 700607378632, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul condenou agente público por ato de improbidade administrativa caracterizado pelo enriquecimento ilícito e considerou violado, concomitantemente, o princípio da moralidade administrativa. No caso retratado, o réu teria se associado a um delegado de polícia para exigir vantagem indevida de cooperativa, consistente no pagamento de R$ 100.000,00, a fim de que fosse adotada linha investigativa, em relação àquela associação, que lhe fosse favorável.

Percebe-se, com isso, que o enquadramento legal de condutas ímprobas no tipo do artigo 9º da lei 8.429/92 costuma estar associado à corrupção da atividade. Em outras palavras, ao desvio da finalidade pública em prol de um interesse particular, mediante pagamento.

Contudo, mesmo que não haja demonstração do desvio, a condenação ainda assim é possível quando evidenciado, por exemplo, acréscimo patrimonial sem origem declarada.

No MS 21.708/DF, o Superior Tribunal de Justiça apreciou caso de servidor que apresentou evolução patrimonial incompatível com suas fontes de renda e afirmou, dentre outros aspectos, que “não há (...) no fato típico ímprobo a imposição de que a origem do incremento patrimonial esteja relacionada com desvios no exercício do cargo, o que denota que a hipótese legal considera o simples ato genericamente doloso de ostentar patrimônio incompatível com a renda auferida e não justificado legalmente como ato grave violador do princípio da moralidade administrativa”3.

Assim, embora a Corte entenda que não há a necessidade de demonstrar que o acréscimo patrimonial decorreu diretamente de um desvio funcional, somente a renda não justificada legalmente enseja violação ao princípio da moralidade administrativa. Tal fato, por si, já evidencia que este mesmo raciocínio não poderia ser aplicado ao caso do delegado da Cunha, uma vez que a renda obtida através da remuneração dos vídeos é lícita e justificável.

Desse modo, se tomarmos como base casos semelhantes, quase sempre encontraremos a violação aos princípios estampadas em condutas que têm como base, entre si, um agir ético pouco republicano e norteado para a consecução de interesses privados por meio do uso indevido da função pública. Diante disso, deve-se lembrar que o caso da monetização dos vídeos, se atendeu a um interesse particular do agente, isto se deu somente após a realização total do interesse público através do exercício regular da função de delegado de polícia.

E isso nos leva à última pergunta.

  1. Houve dolo na conduta do delegado?

Por muitos anos, a doutrina debateu acerca do conteúdo do dolo na lei de improbidade administrativa. Hoje, sabe-se que o dolo, no caso da improbidade, resulta da associação entre a vontade livre e consciente do agente de praticar o ato e o juízo objetivo de desvalor moral da conduta: algo que todos os integrantes de uma mesma sociedade possam entender como imoral.

Como não há possibilidade de saber se o agente sabia estar agindo com desonestidade ou por motivos imorais, pois ainda não existem técnicas científicas capazes de detectar pensamentos humanos, é necessário aplicar um juízo objetivo a estes casos.

Assim, parte-se da premissa de que todos os cidadãos são capazes de realizar avaliações sobre a moralidade objetiva de suas condutas, principalmente quando se trata de verificar se a ação se ajusta à ética de instituições específicas, como ocorre com a moralidade típica da Administração Pública.

Portanto, deve-se avaliar a ação do agente público ao qual se imputa a prática de improbidade administrativa sob a luz de critérios objetivos de moralidade. Concluindo-se que a conduta efetivamente viola a ética administrativa, entende-se, portanto, que o agente violou dolosamente princípios jurídico-morais da Administração Pública. Esse é o sentido do conceito de dolo na improbidade administrativa.

Sabendo disso e analisando-se o caso da monetização de vídeos que expunham operações policiais (bem realizadas) em uma plataforma mundial de vídeos, há de se concluir que este tal não viola qualquer tipo de moralidade objetiva. Quando muito, podemos assumir que algumas pessoas considerem isso um locupletamento indevido, mas considerando que, pelo ineditismo da questão, muitas opiniões hão de divergir nesse caso, ainda não há possibilidade de dizer que existe um juízo moral objetivo que tenha sido violado neste caso.

Considerações finais

Em suma, observando-se que não houve lesão ao erário, que não houve violação aos princípios da Administração e, sobretudo, que não há um consenso social claro acerca da imoralidade de um ato como “monetizar vídeos que expõem o exercício regular de uma função pública em plataforma mundial”, não parece viável equipará-la à forma mais grave de improbidade administrativa e enquadrá-la em uma tipologia que tem por objetivo primordial o combate à corrupção na Administração Pública.

Por ora, o melhor proveito que podemos – e devemos – tirar de um caso como esse é utilizá-lo para debater questões como o anacronismo de certas regras jurídicas, os vácuos normativos que se criam a partir das evoluções sociais e a necessidade de desenvolvermos doutrinas e entendimentos que auxiliem a atividade interpretativa. Pois numa sociedade globalizada que avança no ritmo da economia digital, cabe a todos os profissionais do direito a desafiadora tarefa de observar os fatos não somente a partir do que já fomos e já produzimos no passado, mas também à luz do que já somos e seremos no futuro

_______

1 JUNIOR, Aloísio Zimmer. Corrupção e Improbidade Administrativa: Cenários de Risco e a Responsabilização dos Agentes Públicos Municipais. São Paulo: Thomson Reuters, 2019. P. 213.

(Processo:70060737863Tipo de processo: Embargos Infringentes; Tribunal: Tribunal de Justiça do RS; Classe CNJ: Embargos Infringentes; Relator: Marilene Bonzanini; Órgão Julgador: Décimo Primeiro Grupo Cível)

MS 21.708/DF, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 08/5/2019, DJe 11/9/2019

Pedro Henrique Carneiro Mosmann
Advogado e Mestre em Direito pela FMP

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