Migalhas de Peso

Mecanismos importam: breves notas sobre o desenho do “leilão da Cedae”

Dizer que mecanismos importam não nega a importância do ambiente, antes a reforça.

26/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O tão esperado leilão de blocos de concessão de serviços de downstream anteriormente explorados pela Cedae não somente aconteceu, como se pode concluir que foi um sucesso. A expectativa inicial do governo – que era arrecadar R$ 10,6 bilhões – foi em muito superada pelos R$ 22 bilhões correspondentes ao resultado das disputas para os blocos 1; 2; e 4.

Todavia, o bloco 3 – que abrangia originalmente 22 bairros da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, bem como outros 6 municípios do Estado 1 restou deserto. O porquê de tal bloco ter se desviado do padrão de sucesso do restante da licitação despertou interesse jornalístico, acadêmico e de podcasts de juristas entusiasmados pelo setor de infraestrutura.

Rapidamente surgiram explicações simplistas, divulgadas pela imprensa, no sentido de que os licitantes não teriam se interessado pelo bloco 3 por este supostamente abranger áreas conflagradas 2.

Essa explicação definitiva e cabal parece atrair a fórmula atribuída a H.L. Mencken, que indica que para todo problema complexo há uma explicação plausível, elegante e completamente equivocada 3. Em vez de uma única causa, o insucesso na adjudicação do lote 3 parece ter sido determinado, ou, no mínimo, possibilitado, pelo mecanismo utilizado no leilão.

Um pouco de análise econômica pode fornecer dados interessantes sobre o comportamento dos licitantes no caso em questão. O tema é afeto à Teoria dos Leilões, que rendeu o Prêmio Nobel, em 2020, a Robert Wilson e Paul Milgrom 4. 

Nossa hipótese é que o fato de o bloco 3 da concessão de saneamento no Estado do Rio de Janeiro ter restado deserto se deve a dois fatores: (i) a forma como o leilão foi desenhado – o mecanismo; e (ii) o cenário em que se desenvolveu o leilão – o ambiente. E mais: esse resultado nem de longe se revela negativo.

Um pouco sobre Leilões

Os leilões, basicamente, são uma forma de que vendedores dispõem para vender determinado objeto para potenciais compradores. Tal objeto, no leilão, é vendido por um preço final que é determinado através de um processo competitivo entre compradores, a partir de regras estabelecidas pelo vendedor – o desenho do leilão 5. O leilão é diferente, assim, de uma modalidade de compra e venda praticada pela maioria das pessoas no dia a dia, em que o preço é preestabelecido pelo vendedor e o comprador que deseja adquirir o objeto já está informado do valor que deverá dispor para concluir a transação.

A partir dessa definição conseguimos estabelecer a importância das regras do leilão: elas serão o instrumento por meio do qual o vendedor se vale para maximizar seus interesses na venda. 

Nos leilões, o valor final a ser pago pelo objeto não é conhecido previamente pelos participantes. O vendedor sabe quanto valoriza o objeto posto à venda (isto é, ao menos em leilões em que haja um preço mínimo ou um valor estabelecido como reserva); os compradores também sabem quanto estão dispostos a pagar por ele. Com o desenrolar dos lances do leilão as informações, em regra, vão sendo criadas e compartilhadas, lance a lance.

A forma como as regras são estabelecidas repercutem, por certo, também no comportamento dos participantes do leilão – desejosos estes, igualmente, de maximizar os seus próprios interesses. O vendedor age a partir de uma estratégia para fomentar lances mais altos e os compradores agem a partir de uma estratégia para pagar o menor valor possível.

As regras do jogo, criadas pelo desenhista do leilão, que determinarão aquilo que é permitido aos participantes fazer e aquilo que não o é, formam o chamado mecanismo. O mecanismo, por estar sob o controle do realizador do leilão, é diferente dos fatores não controlados por este: o chamado ambiente. Dentro do ambiente estão situados os participantes ou potenciais participantes; os possíveis resultados; e os tipos de participantes possíveis, isto é, suas capacidades, preferências, informações e crenças 6.

O mecanismo, portanto, importa. O ambiente, igualmente, é relevante para a compreensão do ocorrido. Vejamos um detalhe do mecanismo do leilão e do ambiente em que este estava situado, e a sua relação com o apenas aparente insucesso do bloco 3.

A regra da retirada: analisando o mecanismo do leilão de saneamento

Antes um necessário esclarecimento: muito embora seja comum a referência a “leilão da CEDAE”, de fato, o que foi objeto de licitação foi parcela do ciclo do serviço de saneamento, não implicando privatização da companhia estadual, tampouco qualquer alteração societária. Feito o esclarecimento, percebe-se que o Edital de Concorrência Internacional 01/2020 possui uma interessante regra, estampada no item 13.3.2 7, que permite ao licitante que tenha se sagrado vencedor de um dos blocos retirar a proposta de um bloco subsequente, sem consequências negativas em razão dessa supressão.

A compreensão do mecanismo do leilão perpassa a análise de três regras. A primeira delas, constante do item 27.6. 8 do edital, afirma que os participantes que apresentassem propostas classificadas com valor até 20% (vinte por cento) menor da proposta melhor classificada passariam a uma etapa de lances viva-voz.

A segunda regra é extraída a partir da leitura do item 6 9, que escalona a ordem de leilão dos blocos de 1 a 4 a partir de um critério de atratividade, que seriam disputados não na ordem sequencial, portanto, mas a partir de seu valor: bloco 1, 2, 4 e 3.

O último dispositivo destacado, constante do item 13.3.2, afirma que o licitante vencedor de um bloco poderia retirar a proposta feita para outro bloco, leiloado subsequentemente.

Com essas três regras em mente, o mecanismo do leilão incentiva os agentes – ainda que tenham interesses por mais de um bloco, mas de forma hierarquizada (ou seja, com uma preferência mais intensa em relação a dado bloco) – a ofertar um lance inicial alto para se classificar para a etapa de lances verbais e, lá, ser agressivo, muitas vezes comprometendo todo o capital próprio (e de terceiros) que possa dispor para ofertar, considerando que, caso ganhe a rodada, poderá retirar a proposta em relação a um bloco menos atraente. Os agentes estão, portanto, incentivados a serem agressivos em relação aos blocos que lhes sejam mais interessantes. 

O racional do mecanismo do leilão muito provavelmente foi idealizado de modo a tanto fomentar propostas maiores para os blocos mais atrativos quanto a garantir que haveria propostas para todos os blocos, pois , se não limita, ex ante, a apresentação de proposta, por um licitante, para todos os blocos, restaria assegurado a faculdade, caso tenha havido comprometido a integralidade de seus recursos na disputa de um bloco preferencial, a retirada proposta feita por um bloco menos atrativo, caso tenha se sagrado vencedor em bloco leiloado anteriormente.

Tratou-se, assim, de um trade-off entre manter propostas equilibradas entre todos os blocos versus fomentar propostas muito elevadas para os blocos mais atrativos, ainda que sob o risco de deserção de um bloco menos atrativo. A receita obtida, considerada a totalidade, compensaria eventual deserção. A ideia foi, portanto, maximizar o valor total da outorga. Optou-se por acirrar a competição pelos melhores lotes em detrimento à garantia a adjudicação de todos os lotes, ainda que por valores menores.

 De fato, as propostas vencedoras foram bastante elevadas, contemplando um ágio expressivo, o que sugere que a opção de prever a regra da retirada não tenha sido equivocada, mas apenas um efeito secundário do desenho adotado.

As propostas mais elevadas, naturalmente, confluiriam – e de fato confluíram – para os melhores lotes, em que se imagina uma melhor relação de risco/retorno, mas isso tem o efeito negativo de acabar possibilitando a existência de lotes vazios – sobretudo os lotes de rentabilidade mais incerta. 

E o ambiente?

Não apenas o mecanismo influencia os resultados dos leilões, mas também o ambiente. Um dos fatores que integra o ambiente de um leilão são as informações de que dispõem os participantes. Riscos inerentes à operação do bloco 3 eram (ou deveriam ser) de conhecimento comum dos licitantes. O desenho do bloco, que mesclava áreas de maior com áreas de menor rentabilidade servia, justamente, para mitigar esses eventuais cenários de pouca atratividade.

Houve, ainda, um fator que parece tornar o bloco 3 menos atraente do que os demais: a BRK, detentora da concessão de saneamento da Área de Planejamento 5 (AP-5), que compreende 21 bairros da zona oeste 10, incluídos, portanto, na área do bloco 3, continuaria tendo a gestão comercial da área. Tal fato aumenta os custos de transação inerentes ao bloco, bem como retira do eventual novo concessionário parcela da cadeia, mitigando a rentabilidade da operação.

Se o ambiente, que foge do controle do vendedor, se torna desfavorável pelo fornecimento de informações contrárias a seu interesse, seria papel do mecanismo mitigar tais fatores, de forma a fazer com que o leilão se desenrolasse auspiciosamente para os interesses do vendedor.

O que aconteceu, então?

No curso do leilão, as partes envolvidas podem, ainda, acabar fornecendo sinais a respeito das “jogadas” que realizarão nesse tabuleiro de xadrez que é a disputa em leilão. A teoria econômica chama esse compartilhamento, essa sinalização de informações, de signaling 11.

A Aegea, vencedora do bloco 1 e do bloco 4, havia apresentado proposta para o bloco 3. Diante do desinteresse dos demais licitantes, considerando que já dispenderia mais de R$ 15 bilhões, somados os R$ 8,2 bilhões e R$ 7,2 bilhões nos blocos 1 e 4, respectivamente 12, a Aegea optou por retirar a proposta, valendo-se da regra de retirada sem sanção prevista no mecanismo do leilão para os licitantes vencedores de um bloco anterior.

Considerando o valor das propostas apresentadas pela Aegea, é provável que a oferta que fez em relação ao bloco 3 fosse igualmente alta, embora, pelas regras do leilão, jamais saibamos o quão agressiva era a proposta inicial.

Não houvesse regra de saída sem sanções, o licitante teria sido menos agressivo nas etapas anteriores, pois saberia da necessidade de fazer firme todas suas propostas iniciais; ou seria mais agressivo do que a sua capacidade financeira permitiria – gerando, assim, um caso de maldição do vencedor.

Considerando, ainda, que a Aegea foi a única licitante a apresentar proposta para o referido bloco – de forma a evitar, inclusive, a possível maldição do vencedor, que poderia comprometer o cumprimento do contrato de concessão da área 3 e metas ligadas à universalização do serviço –, a utilização da regra da retirada parece ter sido a melhor estratégia para essa licitante.

O resultado, desse modo, foi o bloco 3 restar deserto.

Conclusões

A explicação para o insucesso do bloco 3 é menos simples do que parece. Os problemas relacionados à operação do bloco 3 eram fatos conhecidos pelos participantes do leilão que, com razoável certeza, dispõem de capacidade para averiguar informações necessárias para a apresentação de propostas que envolvem investimentos em cifras tão elevadas.

Há de se comentar, contudo, o bloco 3 possuía atratividade suficiente para receber proposta de um licitante – que em decorrência da regra da retirada, por ter vencido lotes que, no seu entender, eram melhores, resolveu retirar sua proposta. O bloco 3 não era, assim, inviável a priori.

O bloco 3 restar deserto parece ser produto do mecanismo do leilão – as regras definidas pelo vendedor, realidade que está sob seu controle – e com o ambiente do leilão, os fatos inerentes aos participantes do leilão, que fogem do controle do vendedor. 

Se o ambiente do leilão está para fora do controle do vendedor, é o mecanismo o elemento central a ser pensado. Todo o esforço deve ser direcionado à confecção de regras que mitiguem problemas no ambiente.

A Aegea, municiada de informações e sinais a respeito da baixa atratividade do bloco; e como vencedora de um bloco anterior, se valeu desse elemento do mecanismo do leilão para retirar a sua proposta, restando deserto o bloco 3.

Quando o ambiente se desenvolve de forma diversa dos interesses do dono do leilão, a existência de um adequado mecanismo se mostra de ainda maior importância.

Em nosso caso, quando apenas um licitante apresentou proposta para o bloco 3, a regra de retirada – elemento do mecanismo – não foi apta a contornar o que parecia ser um desenvolvimento ruim do ambiente. Pelo contrário: possibilitou que o único licitante a apresentar uma proposta a retirasse.

O fato de permitir a retirada, sem sanções, resultou na deserção do bloco 3, o que aparente ser uma consequência imediata negativa, mas com possíveis repercussões positivas: a regra de retirada – e consequente deserção do bloco 3 – possibilita a remodelagem do referido bloco,

O Poder concedente possui plenas condições de licitar novamente o bloco 3, incluindo novos municípios que, diante do sucesso do primeiro leilão, estariam mais bem informados em relação aos aspectos inerentes à concessão, reduzindo a incompletude informacional inerente ao jogo, de forma que se mostrariam mais entusiasmados em participar 13 - aliás, prognóstico que parece ter se materializado, ante o interesse pela adesão manifestado por outros municípios 14.  A assinatura dos contratos referentes aos blocos concedidos poderá, ainda, melhorar o ambiente do leilão, atraindo a participação de novos players.

Apesar dos aparentes pesares, o episódio serve como elemento de aprendizado para concessões futuras. Afirmar, contudo, que o fato de o bloco 3 ter restado deserto corresponderia a um insucesso do leilão global parece ser uma grande inverdade. A licitação de saneamento do Estado do Rio de Janeiro foi um sucesso, sendo marco para o setor.

Mecanismos de leilão, portanto, importam. Dizer que mecanismos importam não nega a importância do ambiente, antes a reforça. Se o ambiente está para fora do controle do dono do leilão, a forma como o mecanismo é desenhado será crucial para que o resultado do leilão corresponda, na maior medida possível, aos interesses de seu dono. Em nosso caso, o ambiente se tornou hostil para o bloco 3, e as regras constantes do mecanismo – mormente a regra de retirada – não foram hábeis em mitigar a influência do ambiente no resultado. O resultado foi o bloco 3 restar deserto.

O gestor que for desenhar leilões, assim, deverá ter em mente a forma como o jogo será estruturado, de modo a prever da melhor maneira possível o comportamento dos agentes envolvidos. O sucesso global da concessão pode servir como um bálsamo de otimismo, não eclipsado pelo provisório insucesso em relação ao bloco 3.

A experiência agregada fará com que o governo jogue cada vez melhor o jogo dos leilões, tornando as concessões cada vez mais eficientes.

________

1 Piraí; Rio Claro; Itaguaí; Paracambi; Seropédica; e Pinheiral. Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 No original: “Explanations exist; they have existed for all time; there is always a well-known solution to every human problem – neat, plausible, and wrong”. (MENCKEN, H.L. Prejudice, Second Series. Londres: Jonathan Cape, 1921, p. 158). 

4 Disponível aqui. “for improvements to auction theory and inventions of new auction formats”.

KRISHNA, Vijay. Auction Theory, 2ª ed. San Diego: Elsevier. 2010, p. 61

6 MILGROM, Paul. Putting Auction Theory to work. Cambridge: Cambridge University Press. 2004, p. 3.

13.3.2. Caso a proposta apresentada pela LICITANTE seja, após a fase de lances verbais, a de maior valor para um BLOCO, a LICITANTE terá a prerrogativa de retirar sua proposta para os BLOCOS subsequentes, sem que se configure infração administrativa e causa de execução da garantia da proposta.

8 Classificadas as PROPOSTAS COMERCIAIS, caso existam PROPOSTAS COMERCIAIS com valor até 20% (vinte por cento), inclusive, menor ao valor proposto na PROPOSTA COMERCIAL inicialmente classificada em primeiro lugar, será processada etapa de lances viva-voz entre estas LICITANTES.

9 Conforme redação dada pela Cláusula 6:

6. VALOR ESTIMADO PARA A CONTRATAÇÃO

6.1. O valor estimado do CONTRATO, para efeito desta licitação, corresponde ao valor presente do somatório das receitas auferidas com a prestação dos SERVIÇOS ao longo do prazo contratual, na database de dezembro de 2019: 6.1.1. BLOCO 1: R$ 25.540.646.800,18 (vinte e cinco bilhões, quinhentos e quarenta milhões, seiscentos e quarenta e seis mil, oitocentos reais e dezoito centavos); 6.1.2. BLOCO 2: R$ 14.542.689.046,35 (quatorze bilhões, quinhentos e quarenta e dois milhões, seiscentos e oitenta e nove mil, quarenta e seis reais e trinta e cinco centavos); 6.1.3. BLOCO 4: R$ 56.581.843.610,53 (cinquenta e seis bilhões, quinhentos e oitenta e um milhões, oitocentos e quarenta e três mil, seiscentos e dez reais e cinquenta e três centavos); 6.1.4. BLOCO 3: R$ 13.837.160.493,84 (treze bilhões, oitocentos e trinta e sete milhões, cento e sessenta mil, quatrocentos e noventa e três reais e oitenta e quatro centavos);

10 Conforme se observa pelo portifólio da companhia, disponível aqui.

11 SPENCE, Michael. Job Market Signaling. Quarterly Journal of Economics, v. 87, n. 3, 1973, pp. 355-374.

12 Disponível aqui.

13 Ver KUMBHAHARA, Subal; PARMETER, Christopher; TSIONASC, Efhtymios. Bayesian estimation approaches to first-price auctions. Journal of Econometrics, v 168, n. 1, pp. 47-59, maio de 2012.

14 Segundo informações disponibilizadas, chega em torno de 20 o número de municípios que querem integrar o bloco a ser licitado. Disponível aqui.

Thiago Cardoso Araújo
Professor da EPGE/FGV, procurador do Estado do Rio de Janeiro e sócio do escritório Bocater Advogados. Mestre e doutor em Direito pela UERJ.

Lucas dos Reis Montenegro
Mestrando em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Advogado.

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