Migalhas de Peso

Garantia dos direitos fundamentais e a mitigação da garantia constitucional aos povos indígenas

O presente estudo pretende abordar a garantia dos direitos fundamentais dos povos indígenas no contexto do ordenamento jurídico pátrio.

24/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A salvaguarda aos direitos fundamentais comporta respaldo no texto constitucional de forma expressa, todavia tal garantia não exclui outros direitos decorrentes de tratados internacionais, nessa toada pode-se afirmar que existem direitos e garantias implícitos. Conforme melhor definição pode-se afirmar existirem três grupos de direitos fundamentais, conforme o texto constitucional brasileiro:

  1. Os que estão expressos na Constituição;
  2. Os que estão implícitos, decorrendo do regime e dos princípios adotados pela lei Maior;
  3. Os que estão firmados nos tratados internacionais dos quais o Brasil é parte. 1

Outro baluarte do texto constitucional é o direito ao desenvolvimento, embora não esteja incluído de forma expressa na CRFB, no caderno que trata dos direitos e garantias fundamentais, este fim a ser alcançado (desenvolvimento) encontra respaldo no direito positivado brasileiro como um direito fundamental, haja visto o princípio da não-taxatividade dos direitos fundamentais.

Ademais, no artigo 3º da Constituição encontra-se menção ao desenvolvimento nacional, tal dispositivo veicula os princípios constitucionais fundamentais de natureza obrigatória, ou seja: vincula os poderes, órgãos e agentes estatais, os quais detêm o dever de atuar para concretizá-los. Sob este enfoque Eros Roberto Grau leciona: Trata-se de um princípio constitucional impositivo ou diretriz com caráter constitucionalmente conformador. (Grau, 1977) 2

Neste aspecto, depreende-se, portanto, que existe o dever de o Estado atuar no sentido de promover medidas voltadas a assegurar o pleno desenvolvimento nacional.

Nestes termos, Gilberto Bercovici assevera: a atuação do Estado deve se pautar por um planejamento abrangente e o desenvolvimento nacional deve ser considerado a principal política pública, com a qual todas as demais devem se harmonizar e se conformar. (Bercovici, 2005) 3

Resta claro, portanto, acerca desta temática, que apesar do princípio do desenvolvimento não encontrar respaldo no texto constitucional, ao partirmos de uma interpretação subjetiva de todo o ordenamento jurídico brasileiro coaduna a ideia de que o desenvolvimento é um direito fundamental consubstanciado, seja como um fim a ser alcançado pelo Estado Democrático de Direito, ou seja interpretado como uma garantia a qual todos os cidadãos detêm.

Todavia, pautado sob o enfoque do desenvolvimento nacional, a controvérsia surge quando analisamos a garantia da autodeterminação dos povos indígenas.

De início vale estabelecer um ponto controvertido na utilização do termo “Índio”, uma terminologia que por vezes consubstancia a ideia de um ser selvagem, preguiçoso, pernicioso etc., quem utiliza-se deste raciocínio incorre em erro. Ser indígena não é uma questão biológica ou racial, trata-se tão somente de uma atributo étnico-cultural.

A autodeterminação dos povos indígenas preceitua a ideia de que todo o povo de um país tem o direito de se autogovernar, realizar suas escolhas, sem qualquer intervenção externa, exercendo de forma soberana o direito de determinar o próprio estatuto político.

A discussão acerca da autodeterminação dos povos indígenas está inserida em debates políticos polêmicos durante o processo de descolonização após a Segunda Guerra Mundial. A descolonização implica na libertação de países, povos, nações para exploração de recursos naturais e colonização.

A colonização se deu na expansão europeia, era sabido da existência de povos existindo neste continente, no entanto não havia ocorrido qualquer tentativa de contato com estes povos.

Remontando ao processo colonial, um Estado se constitui a partir de manifestações da vontade de um grupo que compõe uma sociedade, adequando os interesses deste grupo.

Conforme os interesses da maioria uma estrutura política é consolidada, tornando-se estável, universal e centralizada. Note-se ainda, conforme preleção que a estrutura de um Estado Moderno, é baseada em uma acepção moderna racionalista, eurocêntrica, individual e universal do mundo, promovendo a exclusão dos povos coletivos na constituição do Estado 4. (Nogueira, 2016)

É notável uma incompatibilidade entre a racionalidade dos Estados nacionais com a efetivação dos direitos coletivos - a autodeterminação dos povos estando consubstanciada neste rol - em outras palavras, a lógica do colonizador colide com a lógica do colonizado, ambos interesses estão intrinsecamente interligados, sendo de difícil alcance o bem-comum.

Neste ínterim, a controvérsia surge quando passamos a analisar a salvaguarda do princípio da autodeterminação dos povos indígenas sob o enfoque da garantia dos direitos fundamentais.

Outro ponto de discussão é a imposição de um regime jurídico aos povos indígenas desde os primórdios do processo colonial de conquista e ocupação, sendo estabelecido uma lógica que por si já é contraditória, qual seja: integrar outrem a um regime jurídico que eu estabeleço. Admitir que o “outro” detém um direito a partir da concepção do Direito que o “eu” anteriormente estabeleça.

Todavia, uma acepção de como se deve constituir um ordenamento jurídico que delimita a relação entre os indígenas deveria ser estabelecido conforme os parâmetros que regem as relações interpessoais destes. Todavia, conforme percebe-se no contexto contemporâneo essa perspectiva não obteve vislumbre por parte do colonizador pátrio.

A constituição de um Estado brasileiro no início do século XIX foi balizada na ideia de organização social ocidental, ou seja, a adoção de um ideal de nação. No período colonial aquele detentor de um poder político-econômico entendeu por necessário uma identificação de quem seriam os cidadãos que compunham os habitantes do Brasil.

Ademais, entendeu-se por necessária também a identificação de um único povo. Daí surgiu-se o mito do fundador brasileiro, que é identificado como a junção de três raças étnicas, quais sejam: o índio, o branco e o negro, negando-se assim a realidade fática daquele momento que seria justamente contraposta, uma diversidade étnica e cultural que permanece até o presente.

Neste processo colonial outro importante fato a ser respaldado é o abate cultural que ocorreu, houve uma imposição violenta de normas criadas pelo colonizador, consubstanciando uma negação total das tradições culturais, religiosas e até da composição social dos povos indígenas.

Neste contexto, houve um enfrentamento e resistência por parte de diversas etnias indígenas, havendo até mesmo um total isolamento por parte de alguns indígenas, isolamento que remanesce até os tempos atuais.

A título de conhecimento importa dizer ainda, que por óbvio houve também, por parte de alguns indígenas, uma coligação com os colonizadores em todos este processo, até porque os indígenas estavam em número muito maior do que os colonizadores, em outras palavras, muitas vezes os indígenas guerrearam entre si em busca de interesses opostos.

No entanto, esta vertente não afasta o fato de que o processo de colonização se deu de forma brutal a extinguir de forma majoritária um povo já constituído.

Na Constituinte de 1988 ocorre um forte protagonismo para a formulação de um capítulo em específico a tratar-se dos interesses, direitos e garantias dos indígenas.

Nesta toada, inaugurou-se uma forte proteção aos fundamentos dos direitos dos indígenas, pautados sob a proteção da diversidade étnica e cultural da sociedade brasileira.

Todavia, é de se ressaltar que nem sempre essa proteção foi estipulada, fazendo-se uma digressão histórica podemos citar na década de 1970, em que o governo militar tomou as rédeas da política indigenista, que se tornou dependente dos projetos do que se chamou à época de “desenvolvimento”.              

Um argumento que é utilizado para elucidar essa tentativa de emancipação dos indígenas seria o seu aspecto obscuro, qual seja: essa emancipação guardava interesses outros, a emancipação dos índios da tutela seria interpretada pelos magistrados como uma forma de destituí-los de sua condição de indígena, e consequentemente, não lhes seriam assegurados os direitos sobre suas terras, ou seja, tornaria assim, as terras que ocupavam livres para demarcação para uma seguida apropriação.

Adentrando-se nesta seara, pertine dizer que a posse das terras indígenas se dá de forma distinta daquela concebida no bojo do Direito Civil. Na averiguação da posse indígena deve prevalecer-se da teoria do fato indígena 5. Sob este enfoque ainda comportar dizer o entendimento do STF a de se estipular um marco temporal a fim de delimitar quais seriam as terras indígenas, conforme um referencial insubstituível para o reconhecimento aos índios dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sendo este marco temporal a data da promulgação da CRFB, ou seja, o dia 05 de outubro de 1988.

Ademais, os direitos dos indígenas sobre as suas terras são reconhecidos desde a época colonial.

Tal direito foi inscrito em todas as Constituições republicanas desde 1934. A partir de então, a posse inalienável de suas terras foi assegurada aos índios. Na Constituição de 1967, acrescentou-se que a propriedade das terras indígenas seria da União 6. (Cunha, 2018)

Na Constituição democrática de 1988 estabeleceu um novo parâmetro na relação do Estado para com os povos indígenas, foi assegurado a organização social, o uso de costumes, a salvaguarda a suas crenças e línguas, garantiu a proteção às terras indígenas, tudo isso como um direito dos povos originários. 

Uma teoria que embasa toda a proteção conferida aos indígenas é o indigenato  com o ideal de que os índios são os detentores de direitos originários, anteriores à constituição do Estado. Em busca de uma melhor definição, leia-se: “O indigenato não se confunde com a ocupação, com a mera posse. O indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigenato é legítimo por si 7”.(Jr. (1912)

Nesta toada, há de analisar-se a promulgação do Estatuto do Índio, um apanhado histórico, cultural e social que respalda sua importância na sociedade. É sabido que há tempos existe o povoamento do continente americano, em especial a região da América do Sul, há indícios de povoamento que datam de até 20.0000 a.C (antes de Cristo), encontrados nas escavações arqueológicas de Lagoa Santa (MG), Rio Claro (SP) e Ibicuí (RS). A dispersão da espécie humana por todo o território nacional aconteceu em cerca de 9.000 a.C. Existem traços culturais nas mais improváveis áreas da nossa sociedade, essa herança cultural remonta até a atualidade. A importância silente em preservar a cultura e os costumes indígenas é possibilitar  que os indígenas possam ser incluídos em nossa sociedade, bem como uma valorização do contexto histórico e os traços da formação cultural do povo brasileiro.

No dia 19 de dezembro de 1937, foi promulgada a lei 6.001/73, o Estatuto do Índio, objetivando regular a situação jurídica dos povos indígenas, a preservação cultural e a sua integração à comunhão nacional.

Utilizando-se de um salto temporal adentramos na contemporaneidade. É de clara percepção que eventos múltiplos colocam a proteção conferida aos povos indígenas em voga novamente, declarações coloquiais proferidas por autoridades em exercício de seu mandato legislativo colocam em jus a proteção aos indígenas, em observância à interesses obtusos pautados sob um enfoque financeiro, em face daqueles que serviram de base para a produção da proteção legislativa vigente.

No contexto do presente estudo, abordou-se de forma superficial o processo de colonização do Brasil, foram analisados o princípio da autodeterminação dos povos, a teoria do indigenato, a efetivação dos direitos fundamentais com o enfoque aos indígenas e uma análise analítica de uma provável mitigação aos interesses indígenas na contemporaneidade.

Por fim conclui-se que há de prevalecer a salvaguarda aos interesses indígenas, independentemente de interesses outros. O desenvolvimento nacional é um dos fundamentos basilares do Estado Democrático de Direito.

Todavia, há de prevalecer um apoderamento entre as garantias legislativas vigentes e o desenvolvimento nacional, ambos interesses devem ser vislumbrados, no entanto isto não implica em dizer o enfoque de uns em detrimento ao de outros. O princípio da dignidade da pessoa há de prevalecer em qualquer situação, bem como a liberdade de expressar suas vontades, o seu modo de viver, a livre manifestação cultural etc.

Ademais, mudar o contexto legislativo de amparo aos indígenas não deve prevalecer haja visto, tratar-se de uma realidade fática, posta, mudar um pensamento que já é consolidado coaduna até mesmo com os preceitos basilares que formularam o texto constitucional vigente, seria por assim dizer quase que um retrocesso cultural.

Portanto, não há o que se falar em mitigação dos interesses e direitos dos indígenas, devendo-se na realidade incentivar uma maior efetivação do interesse-comum em busca do desenvolvimento nacional.

 ______

1 PIOVESAN, Flávia. Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos: Jurisprudência do STF. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel, BINENBOJM, Gustavo (coords.). Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 465.

2 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 3ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 238.

3 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 63.

4 Nogueira, C. B. (2016). A autodeterminação dos povos indígenas frente ao Estado. Pontifícia Universidade Católica do Paraná, 226.

5 Queiroz, P. E. (06 de junho de 2013). A construção da Teoria do Indigenato: do Brasil colônia à Constituição de 1988. Brasília, Distrito Federal/DF, Brasil. Acesso em 2019.

6 Cunha, M. C. (SET.-DEZ. de 2018). Índios na Constituição. DOSSIÊ 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA - CEBRAP.

7 Jr. J. M. (1912). Os indígenas do Brasil, seus direitos individuais e políticos. Hennies Irmãos.

Paulo Cosmo Jr.
Possui graduação em bacharelado em Direito - LAEL VARELLA EDUCACAO E CULTURA LTDA (2020).

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