Migalhas de Peso

O que a aprovação do Marco Regulatório da Geração Distribuída de Energia traz de novo aos produtores, consumidores e contribuintes?

Discussões tributárias a partir do texto do PL 5.829/19.

23/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

 

A Câmara dos Deputados aprovou o texto substitutivo do PL 5829/19, o projeto que institui o marco legal da geração própria de energia, conhecida como geração distribuída (GD). De acordo com o rito do processo legislativo, a proposta seguirá para análise do Senado.

No Brasil, a energia solar atualmente é regulamentada apenas por resolução da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). A Resolução Normativa 4821, criada em 2012, permite ao indivíduo produzir a sua própria eletricidade a partir de fontes limpas e renováveis, se tornando produtor e consumidor. Com o marco legal, as regras serão estabelecidas de forma mais clara e definitiva, aumentando a transparência das regras e ampliando a possibilidade de democratização do setor.

O marco legal pretende dar incentivos ao uso das energias limpas e renováveis, mas também prevê uma compensação pelo uso das linhas de distribuição de energia elétrica. Isso porque, até hoje não há uma legislação que cobre pelo uso dos sistemas das concessionárias, que armazenam e distribuem o excesso de energia gerada. Os donos de placas fotovoltaicas, até o momento, não pagam pelo uso das redes de distribuição de energia elétrica.

O texto cria um período de transição para a cobrança de encargos e tarifas sobre esse sistema e também traz disposições sobre o direito adquirido, ou seja, o direito daquele prossumidor - produtor e consumidor, que já tenha iniciado sua geração individual anteriormente à publicação do Projeto de Lei. Assim referente aos micros e mini geradores que não pagam tarifas por distribuição, o projeto mantém essa garantia até 2045.

O texto original previa que os prossumidores de energia solar - aqueles que produzem a própria energia - com potência instalada até 75 kW (microgeradores), e aqueles com potência de até 3 mil kW (minigeradores), tenham 50% de redução nas tarifas de uso dos sistemas de transmissão e distribuição de energia e nos encargos das concessionárias. Entretanto, os valores só passariam a ser cobrados a partir do ano de 2040, para os geradores cadastrados na Aneel até 31 de março de 2020.

Pelo texto substitutivo votado pela Câmara dos Deputados, os consumidores que já possuem sistema de geração distribuída até a publicação da lei permanecerão isentos de cobranças até 31 de dezembro de 2045. Quem solicitar a entrada no sistema de geração distribuída até doze meses após a publicação da nova legislação também ficará isento até 2045.

Para os novos consumidores, haverá uma regra de transição de seis anos. A proposta é que eles comecem a pagar por 15% dos custos associados à energia elétrica em 2023 — o percentual vai subindo gradativamente da seguinte forma.

Por fim, somente a partir de 2029, após o período de transição, os prossumidores de energia distribuída ficarão sujeitos às regras tarifárias estabelecidas pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica).

O texto garante ainda o pagamento, pelos produtores e usuários do sistema de geração distribuída, da Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (Tusd) do "fio B" – o cabo entre a distribuidora e as unidades consumidoras. Este pagamento é feito às distribuidoras e concessionárias que, pelas regras atuais, não são remuneradas pelo “uso do fio”.

Atualmente o maior embate acerca se dá acerca da possibilidade de cobrança pelo uso da rede de distribuição, devido ao fato de que consumidores do sistema de geração distribuída — ou seja, que produzem a própria energia — não pagam pelo uso da rede elétrica nem por todos os encargos cobrados de consumidores do mercado regulado, à exceção da taxa de iluminação pública. Dessa maneira, quem acabaria pagando a conta dos subsídios concedidos ao sistema de geração distribuída são os demais consumidores de energia por meio da Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição.

É certo, porém, que há que se definir e delimitar o que se entende por uso da rede de distribuição pelo prossumidor, uma vez que sua geração e consumo se dão in loco, sem a necessidade de utilização da rede de distribuição. Acontecendo apenas temporariamente a utilização da rede para armazenamento e compensação da eletricidade gerada e não consumida, surgindo daí o fato que ensejaria o pagamento pelo uso da rede.

Estamos falando nesse caso, do que convencionou-se chamar de subsídio cruzado, ou seja, uma classe de consumidores paga preços mais elevados para subsidiar os custos de um grupo específico sobre determinado serviço. Dessa maneira, um consumidor subsidia o outro, podendo o subsídio cruzado ser implícito, quando ele decorre da própria estrutura tarifária – como é o caso, ou explícito, quando é decorrente da legislação.

As vozes favoráveis ao texto argumentam que a geração distribuída incentiva a democratização da geração de energia elétrica a partir de fontes limpas e renováveis, diminuindo a utilização de usinas termelétricas e de combustíveis fósseis, que emitem grande volume de poluentes. Pontos que perpassam questões de extrema relevância em tempos de aquecimento global e crise hídrica nacional se faz cada mais necessário.

De outro lado, as vozes contrárias ao projeto argumentam que o texto fará manutenção do subsídio cruzado até 2045, concedendo os subsídios para quem já tem projetos de geração própria de energia, repassando a conta aos mais pobres, que não têm condições de ter, por exemplo, uma placa fotovoltaica em casa para captar energia solar.

Todavia, embora a votação do Projeto de Lei seja bastante promissora no sentido regulatório, parece que a discussão sobre os instrumentos hábeis à manutenção e desenvolvimento do projeto da geração distribuída no país não alçou patamares mais amplos.

Isso porque, é perfeitamente viável discutir pelos instrumentos tributários na manutenção do projeto da GD – Geração Distribuída, que sejam aptos à intervenção e manutenção da ordem econômica e ambiental, desonerando o consumidor regulado do subsídio cruzado. Para Heleno Taveira Tôrres1, a utilização dos tributos como instrumento de atuação do Estado na ordem econômico-ambiental não deve causar surpresa, uma vez que “não se trata de qualquer novidade o recurso a tributos com fins extrafiscais (...) desde priscas épocas o tributo vem sendo utilizado para práticas de tal natureza"3.

É assim possível falar sobre a tributação extrafiscal, como importante instrumento de indução do qual pode e deve o Estado se valer para, intervindo na ordem econômica, conciliar desenvolvimento econômico e preservação ambiental.

Temos por exemplo, no que se refere a energia solar a isenção do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal (ICMS), da competência dos Estados, veiculada por meio do Convênio ICMS 101/972, relativamente às operações praticadas com aquecedores solares, bem como seus componentes.

De mesma forma, existe hoje Convênio 16/20154, que autoriza os Estados membros a concederem isenções em suas operações internas relativas à circulação de energia elétrica, sujeitas a faturamento sob o Sistema de Compensação de Energia Elétrica de que trata a Resolução Normativa 482, de 2012, da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, ficando à conveniência de cada Estado aderir ou não ao Convênio.

Nesse cenário, fica evidente que já nos valemos de alguns instrumentos extrafiscais com a finalidade de estimular a expansão do setor de produção de energias limpas e renováveis. Por conseguinte, parece claro que o debate acerca da supressão do subsídio cruzado no suporte da expansão da GD pode e deve tomar as vias da extrafiscalidade, em obediência ao preceito constitucional da atuação positiva do Estado na manutenção econômica e na defesa do meio ambiente5.

Com efeito, é preciso pensar os termos do texto substitutivo do PL 5829/19, que propõe a manutenção do subsídio cruzado até 2045, pelas vias da extrafiscalidade, suprimindo o subsídio cruzado como principal mantenedor do projeto e ampliando o diálogo extrafiscal. De forma que venhamos deslocar a responsabilidade financeira ora alocada sobre o consumidor daquele determinado grupo, para a via da extrafiscalidade, cujo dever de contribuir com a persecução do progresso econômico e da defesa ambiental se transfira a todos os contribuintes, de forma solidária, e não fique limitada a determinado grupo.

____________

1 RESOLUÇÃO NORMATIVA Nº 482, DE 17 DE ABRIL DE 2012

2 CONVÊNIO ICMS 101/97 

TÔRRES, Heleno Taveira. Da relação entre competências constitucionais tributária e ambiental: os limites dos chamados “tributos ambientais”. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Org.). Direito tributário ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 97

4 CONVÊNIO ICMS 16, DE 22 DE ABRIL DE 2015

5 SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 87.

Bruna Dandara Ribeiro
Bacharela em Direito pela Faculdade Nacional de Direito - UFRJ. Trainee no Daudt, Castro e Galotti Olinto Advogados.

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