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De Tiririca a Paula Toller: o uso de jinglês e obras artísticas em campanhas eleitorais e as potenciais violações aos direitos autorais

O tema ganhou mais destaque recentemente por conta da condenação da Deputada Federal Carla Zambelli, que usou sem autorização a música “Xiquexique”, de autoria de Tom Zé e José Miguel Wisnik, em material publicado nas redes sociais em apoio ao Presidente Jair Bolsonaro.

18/8/2021

A polarização observada nos últimos anos no Brasil é capaz de produzir, além de tensão nos ambientes políticos, nas redes sociais e até nas ruas (mais em épocas pré-pandêmicas, é verdade), até mesmo conflitos em torno de direitos autorais sobre obras musicais e audiovisuais usadas em propagandas eleitorais. Não é surpresa, afinal alguns jingles se tornaram de tal forma conectados à história política de determinados candidatos que, por vezes, esquece-se que tais obras foram originalmente criadas por artistas que podem ou não concordar com as plataformas defendidas pelo candidato por trás do jingle.

O tema ganhou mais destaque recentemente por conta da condenação da Deputada Federal Carla Zambelli, que usou sem autorização a música “Xiquexique”, de autoria de Tom Zé e José Miguel Wisnik, em material publicado nas redessociais em apoio ao Presidente Jair Bolsonaro. O caso foi julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo1, que condenou a parlamentar ao pagamento de indenização no valor de R$ 65 mil, ao afastar a tese de defesa de que o uso da obra se daria apenas em “pequeno trecho”.

Em pesquisa realizada nos Tribunais de Justiça de São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal, e também no Tribunal Superior Eleitoral, entre os anos de 2013 e 2021, foram encontrados 18 processos dessa natureza2, seja relativo a jingles musicais ou a outras obras utilizadas para propaganda política. Ao contrário do que se poderia imaginar, contudo, não foi observado um aumento no ajuizamento de ações em reflexo à intensificação do ambiente político polarizado, ainda que o espaço amostral da pesquisa abranja período representativo, atravessando desde a contraposição entre PT e PSDB, manifestações e impeachment da Presidente Dilma Roussef, governo de Michel Temer e até o atual embate entre bolsonarismo e petismo.

Há, isso sim, acentuada tendência de proteção aos direitos do autor sobre a obra, uma vez que a simples falta de autorização de uso pelo autor ou, minimamente, de créditos conferidos a ele, configurariam ato ilícito. Sob essa perspectiva, as condenações, em geral, abrangem a indenização tanto por danos morais como materiais, como no já citado caso da Deputada Federal Carla Zambelli.

Como se sabe, as obras musicais são criações do espírito, protegidas pelo artigo 7º, inciso V da lei de Direitos Autorais (lei 9.610/98), de modo que a sua utilização por terceiros deve ser precedida de autorização dada pelo titular de seus direitos patrimoniais, além de haver a indicação de autoria, nos termos dos artigos 29 e 24, inciso II da lei de Direitos Autorais3, respectivamente.

É também assegurado ao autor da obra, na qualidade de titular dos direitos morais sobre sua criação, a proteção da integridade de sua obra intelectual, inclusive contra práticas que possam atingir sua reputação e honra, nos termos do artigo 24, inciso IV da lei de Direitos Autorais4.

Como defesa a esse tipo de demanda envolvendo jingles e similares, é recorrente a alegação de que a utilização da obra seria uma forma de paródia, o que dispensaria autorização prévia e não configuraria violação aos direitos autorais, por conta de previsão expressa do artigo 47 da lei de Direitos Autorais5. Ainda, outro argumento de defesa frequente é que o jingle ou obra audiovisual eleitoreira reproduziria apenas pequeno trecho da obra original e, por não ser o objeto principal da obra nova, tal uso estaria contido na exceção do artigo 46, inciso VIII da lei de Direitos Autorais6.

Entretanto, o que se observou da maioria dos precedentes encontrados é que os usos “políticos” de obras não têm sido enquadrados, pelos tribunais, como uma das exceções previstas na lei de Direitos Autorais para uso livre de obras protegidas por direitos autorais.

Um importante aspecto que merece análise mais atenta é que o uso de obra artística para produção de material político-partidário, sem autorização prévia do autor, possibilita uma vinculação involuntária (e, às vezes, indesejada) do autor às mensagens políticas divulgadas, o que é ainda mais grave em se considerando a obra como uma expressão do espírito humano do artista.

Tal preocupação pôde ser notada em alguns julgados. É novamente elucidativo  o acórdão que julgou o recurso interposto pela Deputada Federal Carla Zambelli, a ver: “Também há menção à compra de cloroquina em um dos outdoors que apareceu no vídeo. A comunidade científica nunca considerou esse remédio eficaz contra o coronavírus que causa a Covid-19, o que também afasta a alegação de que o vídeo foi informativo e o que contribuiu para o desconforto dos coautores ao se verem associados a uma política pública evidente e sabidamente equivocada.”7.

Igualmente, em sentença que condenou o Partido dos Trabalhadores por fazer uso de obra do compositor Billy Blanco em jingle de campanha de deputados estaduais, asseverou-se o seguinte:

“Alegam os autores que o autor, se vivo fosse, não consentiria de forma alguma com a utilização em questão, uma vez que vincularia sua obra a um partido político (fls. 22). Tal alegação é bem verossímil, já que a utilização de obra em campanha eleitoral realmente pode macular a honra e reputação de seu autor, especialmente quando o noticiário atual apresenta inúmeras notícias negativas contra tal partido político.”8

Quanto à possibilidade de o uso da obra para tais fins caracterizar paródia, o que seria autorizado pela lei, vale destacar, uma vez mais, o caso recente envolvendo a obra musical “Pintura Íntima”, de coautoria da cantora Paula Toller. Nele, o Partido dos Trabalhadores foi novamente condenado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro9 a indenizar pelos danos morais e materiais causados, tendo sido afastada, por unanimidade, a alegação de que o uso teria configurado paródia ou paráfrase, já que não se poderia “confundir liberdade de criação [...] com a usurpação de obra alheia” para fins comerciais.

Em sentido contrário, mas o único encontrado, há o Recurso Especial 1810440/SP10, recentemente julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, em que se reconheceu a paródia da obra musical “O Portão” feita pelo então candidato “Tiririca”, em campanha política para reeleição.  

Na ocasião, a corte superior entendeu que a paródia seria verdadeira limitação ao direito do autor, não configurando qualquer ato ilícito desde que não seja verdadeira reprodução da obra original ou que a ela implique descrédito, razão pela qual seria desnecessária a autorização do titular da obra parodiada e irrelevante sua finalidade, seja “comercial, eleitoral, educativa, puramente artística ou qualquer outra”. Ainda, asseveram os ministros que nenhuma obra literária, artística ou intelectual é exclusiva de seu titular, vez que não se pode impedir que os demais desfrutem diretamente dos bens imateriais.

É claro que a utilização de uma obra protegida por direitos autorais, seja em jingles, vídeos políticos, ou até campanhas políticas, e a verificação de seu possível enquadramento nas exceções previstas nos artigos 46, inciso VIII, e 47 da lei de Direitos Autorais dependem das peculiaridades do caso concreto, em especial da representatividade da obra original no material “eleitoreiro” e do potencial descrédito causado à obra primígena. Todavia, é importante notar que os tribunais têm dado indicativos de como deve ser feita a análise, demonstrando justificada preocupação em proteger os autores da vinculação não-autorizada de suas obras a mensagens políticas com as quais podem não concordar.

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1 “INDENIZATÓRIA POR DANOS MORAIS E MATERIAIS Direitos autorais Veiculação de trecho de música em vídeo de caráter político - Ausência de autorização e de identificação dos autores da obra - Procedência - Insurgência da ré - Descabimento - Direitos morais dos autores violados - Inteligência do art. 24, II, c/c o art. 108,ambos da lei 9.610/98 - Inaplicabilidade do art. 46, II, da lei 9.610/98 - Ausência de veiculação privada e de cunho informativo - Danos materiais não impugnados especificamente - RECURSO IMPROVIDO.” (TJRJ; Apelação 1072763-75.2020.8.26.0100; 7ª Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Miguel Brandi; j. em 27.07.2021)

2 Processos de 0001581-59.2016.6.26.0001, 4235-90.2014.6.26.0000, 0000425-21.2016.6.26.0200, 0053565-60.2007.8.07.0001, 0159309-88.2019.8.19.0001, 0090503-21.2007.8.19.0001, 0177949-42.2019.8.19.0001, 0012637-54.2009.8.19.0004, 0004353-45.2012.8.26.0299, 0000678-65.2013.8.26.0323, 0018679-76.2013.8.26.0007, 1092453-03.2014.8.26.0100, 1079408-58.2016.8.26.0100, 1005264-79.2016.8.26.0176, 1114415-82.2014.8.26.0100, 1010479-62.2019.8.26.0004, 1028239-78.2016.8.26.0602, 1072763-75.2020.8.26.0100.

3 Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:

Art. 24. São direitos morais do autor:

II - o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra;

4 Art. 24. São direitos morais do autor:

IV - o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra;

5 Art. 47. São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito.

6  Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: VIII - a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.

TJSP; Apelação 1072763-75.2020.8.26.0100; 7ª Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Miguel Brandi; j. em 27.07.2021.

8 TJSP; Ação indenizatório 1114415-82.2014.8.26.0100; 20ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo; j. em 18.02.2019.

9 CIVIL – DIREITO AUTORAL E PROCESSUALCIVIL. APELAÇÃO. OBRA MUSICAL “PINTURA ÍNTIMA”. DIVULGAÇÃO NÃO AUTORIZADA DA CANÇÃO EM CAMPANHA PUBLICITÁRIA ELEITORAL. PRETENSÃO AO RECEBIMENTO DE DANO MATERIAL E MORAL. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Uso indevido da obra musical “Pintura Íntima” em campanha publicitária do Partido dos Trabalhadores, sem a correspondente autorização da coautora Paula Toller Amora. Enriquecimento ilícito vedado pelo ordenamento jurídico. Inexistência de paráfrase ou paródia, pois há correlação direta à obra musical. Não se pode confundir a liberdade de criação, amparada pelo art. 8º, VII da lei 9.610/98 com a usurpação de obra alheia, ou mesmo comum, para fins comerciais. Não se pode alargar a ideia de paráfrase ou paródia, contida no art. 47 da lei de Direitos Autorais, para legitimar o uso lucrativo e indevido de obra alheia ou comum protegida. Menção ao nome da cantora/autora, famosa intérprete da composição conhecida “Pintura Íntima”, cuja pretensão foi corretamente acolhida em primeiro grau de jurisdição. Dano moral configurado e valor bem fixado em R$50.000,00 (cinquenta mil reais). Dano material fixado em duas vezes o valor do licenciamento da imagem e dos direitos autorais e artísticos que deverão ser apurados em liquidação de sentença. Julgamento extra petita, eis que inexiste pedido de direito de intérprete e direito de imagem. Recurso conhecido e parcialmente provido. (TJRJ; Apelação 0177949-42.2019.8.19.0001; 17ª Câmara Cível; Rel. Des. Lindolpho Morais Marinho; j. em 16.03.2021)

10 RECURSO ESPECIAL. DIREITO AUTORAL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. 1. ADEQUAÇÃO DA TUTELA ENTREGUE. PREQUESTIONAMENTO FICTO. ART. 1.025 DO CPC/2015. 2. ILEGITIMIDADE ATIVA E PASSIVA. TEORIA DA ASSERÇÃO. CONTEXTO FÁTICO NARRADO NA PETIÇÃO INICIAL. PARTES LEGÍTIMAS. 3. PARÓDIA. CARACTERIZAÇÃO. FINALIDADE ELEITORAL. IRRELEVÂNCIA. 4. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

1. Recurso especial que debate a utilização pelos recorrentes de obra lítero-musical de titularidade da recorrida, sem autorização, para elaboração de paródia com finalidade de propaganda eleitoral.

2. O Código de Processo Civil de 2015 faculta a supressão de grau, quando alegada e constatada a existência de vício previsto no art. 1.022, por meio da admissão de prequestionamento ficto (art. 1.025 do CPC/15). Precedentes.

3. As condições da ação são verificadas de acordo com a teoria da asserção, razão pela qual, para que se reconheça a ilegitimidade ad causam, os argumentos aduzidos na inicial devem possibilitar a inferência, em um exame puramente abstrato, de que o réu pode ser o sujeito responsável pela violação do direito subjetivo alegado pelo autor. Precedentes.

4. A paródia é forma de expressão do pensamento, é imitação de composição literária, filme, música, obra qualquer, que resulta em composição nova, por meio da qual se identifica a remissão à obra original que é adaptada a um novo contexto, com versão diferente.

5. A paródia é uma das limitações do direito de autor, com previsão no art. 47 da lei 9.610/1998, que prevê serem livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito. Respeitadas essas condições, é desnecessária a autorização do titular da obra parodiada.

6. A finalidade da paródia, se comercial, eleitoral, educativa, puramente artística ou qualquer outra, é indiferente para a caracterização de sua licitude e liberdade assegurada pela Lei n. 9.610/1998.

7. Recurso especial provido. (STJ; EREsp 1810440/SP; 3ª Turma; Rel. Min Marco Aurélio Bellizze; j. em 12.11.2019)

Henrique Cazerta de Godoy Bueno
Advogado do escritório Gusmão & Labrunie - Propriedade Intelectual.

Artur Morandi El Faro
Colaborador do escritório Gusmão & Labrunie - Propriedade Intelectual.

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