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Namoro e união estável: uma linha tênue

A linha entre o namoro e a união estável é, muitas vezes, extremamente tênue.

17/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Durante a pandemia, diante da necessidade de isolamento social, muitos relacionamentos que ainda engatinhavam pularam etapas subitamente até atingir aquele que costuma ser o ápice do compromisso mútuo: a coabitação. Mais uma vez, veio à tona importante debate sobre as diferenças entre a união estável e o namoro. Justamente por isso advogados militantes na área de Direito de Família têm sido seguidamente consultados por clientes que não sabem nem ao menos definir o status de seu relacionamento. Como geralmente a preocupação é com os efeitos jurídicos da relação cujos contornos são nebulosos, seguidamente o cliente traz a ideia de um “contrato de namoro” como resposta mágica para suas perguntas.

A questão inspira cautela, porque a união estável é uma entidade familiar de fato. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem reiteradas decisões reforçando o caráter fático da união estável. Como já se manifestou a Quarta Turma do STJ, basta o vínculo afetivo e a existência de fato para que haja a incidência das normas constitucionais e legais a esse respeito (REsp 1.761.887/MS).

Vale dizer, portanto, que, uma vez estabelecida a união estável, os efeitos jurídicos decorrem da própria legislação em vigor. Na maioria das vezes, às partes cabe apenas regulamentar as questões patrimoniais com efeitos futuros, por escritura pública de união estável, sob pena de, na sua falta, ser aplicada a comunhão parcial de bens, conforme artigo 1.725 do Código Civil.

Porém, nem toda relação afetiva é uma união estável. O próprio legislador, no artigo 1.723 do Código Civil, definiu os requisitos da união estável. São eles: convivência pública, continuidade, durabilidade e objetivo de constituir família. Na realidade, o que pretende o legislador é que os companheiros se portem como se casados fossem, mas sem portarem certidão de casamento.

Tomando esse dado como premissa, duas questões se colocam como fundamentais: o período mínimo para união estável e a necessidade de convivência sob o mesmo teto.

Se a união estável é o casamento refletido no espelho do mundo dos fatos, de antemão precisamos considerar que o casamento é casamento independentemente de período mínimo ou de os cônjuges residirem sob o mesmo teto.

Quanto ao período mínimo, o nosso ordenamento jurídico já exigiu convivência superior a 05 anos, prazo que podia ser reduzido se o casal tivesse filhos comuns (artigo 1º da lei 8.971/1994). Porém, a lei 9.278/1996 revogou essa previsão, exigindo apenas a convivência duradoura e contínua, e, alguns anos depois, o Código Civil de 2002, diploma que regula a união estável atualmente, manteve essa linha. Com isso, hoje o que se tem é uma cláusula aberta, a ser preenchida no caso concreto, quando e se a questão bater às portas do Judiciário.

Se, de um lado, isso demonstra que inexiste prazo mínimo para que um relacionamento seja considerado união estável, de outro lado, não estamos autorizados a afirmar que uma relação passageira possa ser considerada como família, diante da ausência do requisito de durabilidade. Se assim não fosse, haveria inegável segurança jurídica.

Já com relação à vivência sob o mesmo teto, é indiscutível que não há, no casamento, divórcio simplesmente porque um dos cônjuges foi transferido para trabalhar em outra cidade, por exemplo. Reconhecendo essa realidade, o legislador não exige a coabitação como requisito da união estável. Ratificando a prescindibilidade da coabitação, é de se notar que o STJ já afastou a existência de união estável entre dois noivos que residiram sob o mesmo teto no exterior por determinado período. Para o Tribunal, a transitoriedade da situação sucumbiu à falta de intenção das partes de constituir família naquele momento, conquanto tenham casado posteriormente (REsp 1.454.643/RJ). Houve, como se vê, privilégio ao elemento subjetivo da vontade dos indivíduos.

Aliás, é justamente nesse ponto que a união estável se afasta completamente do namoro, no qual não há a intenção de se constituir família, ainda que a relação possa ser pública, longa e estável ou mesmo que haja o projeto futuro, ainda não implementado, de constituição familiar.

O fenômeno comportamental pandêmico contribuiu sobremaneira para debate que ganhou corpo após o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal dos RExt 646721 e 878694, em que houve a equiparação dos efeitos da união estável aos do casamento. Antes a questão era quase incipiente, porque era possível excluir qualquer direito do companheiro, pela adoção da separação convencional de bens em escritura pública de união estável e pela exclusão do direito de herança do companheiro por testamento. Na dúvida, declarava-se a união estável e decidia-se pela falta de repercussão patrimonial do relacionamento.

Com a equiparação da união estável ao casamento, isso não é mais possível, porque o direito sucessório do companheiro não pode mais ser afastado e eventual reconhecimento de união estável não formalizada importa direito de meação e de herança aos conviventes.

Nesse contexto, passaram a ser cogitados os “contratos de namoro”. Neles as partes declaram que não desejam constituir família. Embora o namoro não tenha repercussões jurídicas, a zona nebulosa existente entre alguns namoros e uniões estáveis gera preocupação, o que torna recomendável, em muitos casos, a elaboração dos contratos de namoro.

Atualmente muitos namoros não podem ser considerados como fase experimental para o casamento, como ocorria antigamente. Hoje namorados viajam juntos, mantêm relações sexuais e até mesmo coabitam¹ – o que pode levar à equivocada interpretação de que o relacionamento seria uma união estável –, mas, ao mesmo tempo não desejam dar consequências jurídicas ao seu relacionamento.

Ocorre que não há como negar às pessoas o direito de se relacionarem afetivamente umas com as outras e determinarem os efeitos disso²! Desse modo, aos namorados deve ser garantida a possibilidade de manifestação do desejo de que seu relacionamento não seja considerado família, sob pena de haver um “casamento impositivo”. Vivemos em um Estado Democrático de Direito que garante liberdade e privacidade aos seus cidadãos, razão pela qual, também no âmbito afetivo, os cidadãos devem poder decidir os rumos de sua vida.

Porém, considerando que a união estável é entidade familiar de fato, não basta firmar contrato de namoro para afastar a incidência dos efeitos jurídicos do companheirismo (e consequentemente do matrimônio). Para que tenha efeitos, a declaração documentada deve espelhar o que existe na realidade, isto é, que as partes efetivamente vivem como namorados, já que o contrato é apenas elemento de prova da vontade dos indivíduos.

Como se pode ver, a linha entre o namoro e a união estável é, muitas vezes, extremamente tênue. 

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1 XAVIER, Marilia Pedroso. Contrato de namoro: amor líquido e direito de família mínimo. Belo Horizonte: Forum, 2020. p. 114.

Disponível aqui.

Gabriel Seijo
Sócio com atuação destacada nas áreas de Contencioso e Arbitragem e Falência e Recuperação de Empresas.

Felipe Russomano
Associado do Cescon Barrieu.

Julia Spinardi
Associada do Cescon Barrieu Advogados.

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