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Primeiros casos de aplicação das novas regras de insolvência transnacional pelo Judiciário brasileiro

A adoção da lei Modelo garante maior segurança jurídica, otimização da representação de credores e partes interessantes, resultando em melhorias econômicas aos interessados e maior previsibilidade para agentes de outras jurisdições.

16/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Entre as alterações trazidas pela lei 14.112/20 à lei de Falência e Recuperação Judicial e Extrajudicial- LFR, uma das que tem suscitado maior debate entre especialistas foi a inclusão do capítulo VI-A denominado “Da Insolvência Transnacional” em seu texto. O referido capítulo adota as disposições da lei Modelo da United Nations Commission on International Trade Law (UNCITRAL1) sobre insolvência transnacional.2

Na medida em que não há hierarquia entre países soberanos, a padronização trazida pela lei Modelo permite o diálogo e a cooperação entre jurisdições, na medida em que os países que adotam a lei Modelo passam a estar disponíveis para adotar as medidas de cooperação necessárias em favor de eventuais solicitantes. 

A cooperação jurídica internacional compreende um conjunto de medidas e mecanismos pelos quais os órgãos competentes dos Estados prestarão auxílio recíproco para realizar atos processuais e pré-processuais em seu território. Note-se que, na forma proposta pela lei Modelo e incorporada pelo ordenamento brasileiro, não se trata de um pedido de execução de decisão estrangeira. Ao contrário, o juiz brasileiro irá analisar o caso em questão e, a partir de elementos concretos, irá verificar se é o caso de reconhecer o procedimento ou de conceder eventual medida pleiteada pelo juízo do processo principal, por exemplo. A adoção da lei Modelo garante maior segurança jurídica, otimização da representação de credores e partes interessantes, resultando em melhorias econômicas aos interessados e maior previsibilidade para agentes de outras jurisdições.

Após a alteração da LFR, foi noticiado que houve o ajuizamento de um pedido de jurisdição voluntária pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (“MP”), para questionamentos sobre o processo de Chapter 11 do Grupo LATAM4. O objetivo de tal medida era discutir eventual tratamento desigual dado aos credores brasileiros. Sem entrar nas peculiaridades da discussão, fato é que a inicial foi indeferida, pois reconheceu-se que o MP não possuía legitimidade para fazer tal pedido e, ainda, que não foi requerida a cooperação pelo juízo estrangeiro. Ou seja, a tentativa de utilização das novas regras domésticas sobre insolvência transnacional foi infrutífera, embora o processo ainda esteja em fase recursal.

Por outro lado, em sentido contrário, de forma inédita, a justiça fluminense reconheceu a existência de processo de insolvência estrangeiro em Singapura e, com base na LFR alterada, concedendo a tutela de urgência pleiteada para, dentre outras medidas, proibir a constrição dos bens dos devedores situados no território brasileiro, com o intuito de preservar o patrimônio do grupo internacional no Brasil.

Nesse sentido, nos termos do novo art. 167-H da LFR, a representante da empresa estrangeira Prosafe SE, atuante na área de exploração de embarcações marítimas, ajuizou pedido de reconhecimento de processo de insolvência estrangeiro, que tramitava perante o Tribunal Superior de Singapura, com fundamento no Insolvency, Restructuring and Dissolution Act da República de Singapura5.

Nos autos desse processo estrangeiro, havia sido concedido pedido de moratorium protection, semelhante ao stay period previsto na legislação pátria, por meio do qual fica vedada a adoção de determinadas medidas por credores contra o devedor e seu patrimônio por um período de tempo fixado pela corte competente, com o intuito de preservar os ativos do devedor e assegurar ao devedor o tempo necessário para reestruturar as suas dívidas e negociar com os seus credores, de modo a garantir a preservação da sua atividade empresarial6.

Tendo em vista que o Grupo Prosafe é detentor de embarcações localizadas no Brasil, a Prosafe SE valeu-se da medida prevista no art. 167-H da LFR para requerer (i) o reconhecimento do processo de insolvência estrangeiro em curso em Singapura como processo principal; e (ii) a concessão de tutela provisória (conforme autorizado pelo art. 167-L da LFR) para que, nos termos do art. 167-M da LFR, fosse vedada a adoção de quaisquer medidas constritivas sobre os bens de sua propriedade, entre outros pedidos formulados na mesma linha que o pedido de moratorium protection feito junto à corte singapuriana.

Em sede liminar, o juízo da 3ª Vara Empresarial da Capital do Rio de Janeiro reconheceu como principal o processo estrangeiro em curso em Singapura – tendo concluído que Singapura seria o principal centro de interesses do Grupo Prosafe – e entendeu estarem presentes os requisitos que autorizam a concessão de tutela de urgência. Por essas razões, determinou a suspensão de quaisquer processos de execução em curso em face do Grupo Prosafe, bem como vedou a adoção de quaisquer medidas constritivas sobre o patrimônio dos devedores.

A decisão apresentada é de extrema relevância, por representar a primeira aplicação das novas regras de insolvência transnacional incluídas na LFR. A decisão liminar proferida pela justiça fluminense representa um avanço nos esforços de adequar o sistema de insolvência brasileiro à realidade cada vez mais internacional do comércio e de conferir maior segurança jurídica aos agentes econômicos de que os seus direitos serão reconhecidos internacionalmente.

O caso tem especial relevância da perspectiva do direito marítimo, uma vez que, como é notório, as empresas que operam no mercado de embarcações marítimas comumente atuam em âmbito global e, portanto, celebram contratos comerciais e contraem dívidas em diversos territórios, além do local da sede. Notadamente para essas empresas com atuação transfronteiriça, a obtenção de um stay no local da sede seria inútil sem a cooperação nos demais países em que atuam. Evidente, portanto, que a adoção dos mecanismos de cooperação previstos na lei Modelo pelo mundo afora confere maior segurança e previsibilidade às empresas que atuam em múltiplas jurisdições, como é o caso das empresas que atuam no mercado de embarcações marítimas.

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1 A UNCITRAL tem por objetivo principal a harmonização e modernização de legislações internacionais em matéria comercial e a lei Modelo em Insolvência Transnacional é uma das legislações elaboradas pela UNCITRAL dentro de tal escopo.

2 Disponível aquiPara mais informações sobre a lei Modelo da UNCITRAL e as regras de insolvência transnacional incorporadas à lei 11.101/2005.

Processo 1028368-61.2021.8.26.0100, em trâmite perante a 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da Comarca da Capital do Estado de São Paulo.

4 O Grupo LATAM instaurou processo de reestruturação nos Estados Unidos, se valendo das provisões do Chaper 11 do US Bankruptcy Code, que regulam a reorganização de empresas insolventes, de forma semelhante ao instituto da recuperação judicial no Brasil.

5 No Brasil, o processo foi autuado sob o 0129945-03.2021.8.19.0001 e tramita perante a 3ª Vara Empresarial da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro.

Nos autos do processo ajuizado perante a corte singapuriana, a Prosafe SE requereu a suspensão de quaisquer processos judiciais, arbitrais ou administrativos (em curso ou a serem instaurados) contra o Grupo Prosafe, exceto se autorizado expressamente pelo Tribunal Superior de Singapura, bem como a vedação à adoção ou continuação de qualquer processo que vise a constrição de bens do Grupo, bem como a excussão de quaisquer garantias sobre bens do Grupo, entre outras medidas, que foram concedidas pelo Tribunal em sede de decisão cautelar.

Renata Oliveira
Sócia de Machado Meyer Advogados e especialista em reestruturação e recuperação de créditos e empresas, na prevenção e resolução de conflitos perante o Poder Judiciário, órgãos públicos e Centros de Arbitragem nacionais e internacionais.

Antonia Azambuja
Especialista em resolução de disputas, atua em processos judiciais, como os de recuperação de empresas e falências, além de procedimentos administrativos e arbitrais envolvendo diversas matérias, como direito civil, falimentar, comercial, internacional e de infraestrutura.

Nathália Vargas
Advogada com atuação destaque em contencioso cível. Especialista em procedimentos judiciais e arbitragens envolvendo matérias diversas como direito civil (contratos e responsabilidade civil), societário e de infraestrutura. Também atua em litígios empresariais, assessoria a credores e investidores em reestruturações de empresas, recuperações judiciais e falências.

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