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Jurimetria: indo muito além dos dashboards

Este artigo indica que a jurimetria com uso de IA consiste numa nova ferramenta à disposição dos profissionais do Direito, sobretudo dos advogados, para melhorar sua prática jurídica, oferecer novos e melhores serviços aos seus clientes, criar oportunidades, ampliar sua capacidade de trabalho.

13/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

“Com o recente advento dos computadores eletrônicos, algumas pessoas agora têm a impressãode que seremos capazes

de produzir ou construir uma máquina que nos fornecerárespostas para questões legais, ou pelo menos predições razoavelmente

acuradas de decisões judiciais sobre assuntos legais. Todas essas expectativas parecem infundadas e igualmente fadadas à frustração”1.

Lee Loevinger, 1961.

Beira a platitude afirmar que as “novas” tecnologias estão criando, mudando e extinguindo profissões. Gostemos ou não, essas tecnologias estão afetando diretamente as profissões jurídicas, não para extingui-las, mas certamente para modificá-las. Palavras e expressões como big data, dashboards, automação, inteligência artificial e jurimetria, para se nomear apenas algumas, passaram a fazer parte do vocabulário diário de muitos operadores da área, inclusive de cursos de Direito, que já se deram conta da necessidade de formar profissionais com competências e habilidades adicionais àquelas tradicionalmente ensinadas. O objetivo deste artigo é, a partir de um breve histórico do desenvolvimento da inteligência artificial (IA), descrever como ela tem contribuído na estruturação de dados de processos judiciais e na criação de casos de uso e aplicações de jurimetria.

A IA é um dos campos mais recentes de estudo em ciências e engenharia e seu nome foi cunhado em 1956, quando o professor de matemática da Universidade de Dartmouth, John McCarthy, organizou a primeira conferência sobre o assunto no campus. Para ele, a IA poderia ser definida como a ciência e engenharia de fazer máquinas inteligentes e um dos desafios passou a ser o de criar uma máquina que pudesse agir e pensar como um ser humano.

A partir dessa conferência, dois grandes campos de desenvolvimento da IA se formaram. Andrew McAfee e Erik Brynjolfsson2 apresentam brilhante e didática explicação sobre esses dois campos, partindo da distinção de aprendizagem de uma segunda língua por um adulto e de uma língua por uma criança. Resumidamente, para aprender uma segunda língua um adulto precisa compreender uma infinidade de regras gramaticais e memorizar extenso vocabulário. Baseado nesse modelo, surgiu a escola simbólica, que se caracterizou pela inserção na máquina de todas as regras supostamente existentes no mundo. Apesar de ter ganhado força inicialmente, aludida escola sucumbiu nos anos 1980, dentre outras razões porque é virtualmente impossível incutir num sistema todas as regras do mundo e porque nós, seres humanos, sabemos muito mais do que conseguimos dizer (Paradoxo de Polanyi). Já uma criança, por outro lado, aprende uma língua por experiência, repetição e feedback. Basicamente, segundo os citados autores, os cérebros das crianças são especializados no aprendizado de uma língua: eles operam utilizando, instintivamente, princípios estatísticos para discernir padrões de linguagem, prestando atenção, por exemplo, que quando mamãe ou papai fala sobre si usa a palavra “eu” no começo da sentença, e assim sucessivamente vão aprendendo as regras gramaticais e ampliando seu vocabulário. Essa abordagem de desenvolvimento da IA, fundada na forma de aprendizagem de uma língua por uma criança, deu origem ao campo do aprendizado de máquina (“machine learning”), que prevaleceu sobre a escola simbólica. E para que os sistemas fossem construídos de forma a se assemelharem ao cérebro, foram criados modelos matemáticos que funcionavam como os neurônios, as redes neurais artificiais. Assim, os matemáticos se inspiraram no funcionamento do cérebro humano para construir os primeiros sistemas de IA baseados em machine learning. O treinamento das redes neurais por humanos deu origem ao modelo de aprendizado de máquina supervisionado. Com o passar do tempo, a complexidade e a extensão das redes neurais se ampliaram, se aprofundaram, dando origem ao deep learning. Em 2006, em artigo3 escrito por Geoff Hinton, Simon Osindero e Yee-Whye, descobriu-se que essas redes neurais mais profundas e poderosas, propriamente parametrizadas e desde que presente uma quantidade massiva de dados poderiam também aprender por si mesmas, sem treinamento ou supervisão humana (modelo de aprendizado de máquina não supervisionado).

A esta altura, o(a) leitor(a) pode estar se perguntando por que a IA somente se popularizou recentemente se os estudos começaram na década de 1950. A resposta está no surgimento do mundo digital. Recentemente, o aumento das capacidades de processamento e de armazenamento de dados e a diminuição substancial dos custos foram fatores decisivos para a eclosão do processo conhecido como “digitização” (digitization), ou seja, a transformação de todos os tipos de informação e de mídia em bits (a linguagem binária dos computadores). A digitização, por sua vez, produziu um volume incrível de dados que não existiam e/ou não estavam disponíveis quando os estudos sobre IA começaram na década de 1950. A abundância e a acessibilidade aos dados resultaram no surgimento de soluções baseadas em IA e, por essa razão, sua popularização ocorreu neste século e não no anterior. 

Mas o que tudo isto tem a ver com processos judiciais e jurimetria?

Com o advento dos sistemas eletrônicos de gestão implantados pelo Poder Judiciário, os processos judiciais foram se tornando gradativamente digitais4 e, portanto, mais facilmente acessíveis a qualquer pessoa, em continuado respeito à publicidade dos atos públicos5. Com o auxílio de ferramentas de automação (robôs ou bots), tornou-se possível acessar, simultânea e quase instantaneamente, conteúdos de milhares de processos judiciais por minuto. O que fazer com esses dados?

A resposta vem com a jurimetria. De forma simples e genérica, jurimetria pode ser definida como “a estatística aplicada ao Direito”6. Até onde se tem notícia, o termo foi utilizado pela primeira vez em 1949 por Lee Loevinger, em artigo publicado pela Minnesota Law Review, denominado Jurimetrics: The Next Step Forward 7. Para Loevinger, jurimetria é a investigação científica de problemas legais8. Em termos práticos, os interessados podem se valer da jurimetria para extrair ou suportar conclusões a respeito de dados jurídicos.

Mas antes de se iniciar a jurimetria, há necessidade de se fazer o tratamento desses dados para que possam ser validamente utilizados. Uma das formas de tratamento consiste em saber se o conjunto de dados é composto por dados estruturados, que seguem uma determinada estrutura de organização (por exemplo, dados em planilhas ou em formulários), ou por dados não estruturados, que não possuem uma estrutura de organização definida (por exemplo, textos de decisões judiciais).

Se estivermos diante de dados já estruturados, como por exemplo aqueles extraídos das “capas” dos processos judiciais eletrônicos (número do processo, nome do juiz, vara, valor da causa, assunto, tipo de ação etc.9) ou constantes dos sistemas de gestão de processos judiciais utilizados pelas empresas, é possível, mediante o emprego de ferramentas de Business Intelligence (BI) e com a criação de filtros específicos, a construção direta de painéis de controle de gráficos e de indicadores (dashboards) dos quais o interessado pode, dentre outros, inferir conclusões, suportar conclusões já assumidas, ou mesmo elaborar novas perguntas sobre os fatos demonstrados pelos dashboards. Embora pareçam resultantes de um processo bastante sofisticado ilustrado pelos gráficos, se essas conclusões forem diretamente extraídas dos gráficos ou dos indicadores, sem auxílio da estatística, sequer será jurimetria. Se, por outro lado, forem aplicados aos dados estruturados e constantes dos dashboards métodos estatísticos, ainda que os mais simples (como por exemplo, média, mediana, moda etc.), então estamos diante de um processo de jurimetria, que neste caso pode ser denominada de analítica, porque resultante da aplicação de métodos estatísticos sobre eventos passados10 (análise descritiva).           

Por outro lado, se os dados se apresentarem em forma não estruturada (por exemplo, textos de decisões, sentenças e acórdãos), há necessidade de, primeiramente, estruturá-los para posterior execução da jurimetria. E esse é um dos pontos em que pode ser aplicada a IA. Com efeito, uma das vertentes da IA conhecida como processamento de linguagem natural tem por objetivo dotar o computador com capacidade para adquirir informação a partir da linguagem escrita. E essa aquisição de informação pode ocorrer a partir do treinamento da máquina (machine learning), de modo que os humanos treinem o sistema para que ele aprenda, a partir de textos similares, o que significam, por exemplo, o termo juiz, o número do processo, a decisão, a fundamentação, os pedidos e assim por diante, relativamente àquele conjunto de dados. Uma vez estruturados os dados, então pode-se aplicar a jurimetria analítica para identificação de padrões e comportamentos em eventos passados.

Mas a aplicação da jurimetria limita-se apenas a compreender estatisticamente o passado? A resposta é um sonoro não! Antes, porém, de explicar como a jurimetria pode ser utilizada para estimar o futuro, é interessante notar que alguns advogados executam a atividade de predição, ora de forma consciente, ora inconscientemente. Quando esses profissionais, avaliando o contexto de uma causa que lhes é apresentada, oferecem um prognóstico (de ganho, de perda, ou mesmo recomendação de acordo), o fazem utilizando um modelo mental construído com base na sua experiência, na sua capacidade de extrair uma relação de similaridade com processos judiciais do seu conhecimento para fazer o julgamento. O uso da IA para previsão de eventos jurídicos futuros funciona de maneira parecida. Estando os dados estruturados, seja pelo uso da IA, seja pelo uso de softwares de BI, seja por profissionais do Direito, algumas técnicas de IA podem ser aplicadas para que o sistema, analisando os dados a partir de certas premissas definidas por profissionais do Direito em conjunto com cientistas de dados, possa identificar a existência e extrair um padrão. A partir da análise e da aplicação de técnicas estatísticas, a IA cria um modelo de comportamento futuro dos dados com essas determinadas características, gerando um modelo preditivo para aquela amostra de dados. Essa forma de jurimetria pode ser denominada de estratégica ou preditiva, porque não se limita a analisar o passado, mas permite a extrapolação, fornecendo visões e insights sobre o futuro, habilidade outrora de domínio exclusivo de advogados experimentados. Com o uso da jurimetria estratégica é possível estimar a probabilidade de uma causa estar predestinada ao êxito ou ao fracasso, inclusive dependendo do juiz que vier a julgá-la; se o acordo pode ser a medida mais recomendável, ponderando-se fatores como a possibilidade de perda, o valor envolvido, os custos legais e os valores dispendidos com advogados; o momento mais adequado para realização de eventual acordo, considerando-se, dentre outros, os mencionados fatores; os valores mais efetivos de contingenciamento para cada espécie de causa, levando-se em conta todos esses fatores e também o status processual. Enfim, a jurimetria estratégica com uso de IA abre uma miríade de possibilidades à disposição dos profissionais do Direito, que agora podem construir modelos recorrentes de predição, baseados em padrões extraídos dos seus próprios dados e alimentados automaticamente, para melhoria efetiva e mais estratégica da gestão do risco legal, incluindo políticas públicas.

Dois comentários finais pelo bem da prudência. Primeiro, este artigo não está afirmando que antes do advento da digitalização dos processos judiciais e da consequente possibilidade de utilização de IA não era possível a aplicação da jurimetria (tanto analítica quanto estratégica). Tais aplicações eram possíveis, todavia exigiam enorme dedicação de tempo e um esforço brutal de profissionais altamente qualificados que inviabilizavam a empreitada de forma recorrente. Segundo, em momento algum este artigo sugere ou vaticina que a IA substituirá o advogado na prática do direito ou no exercício da profissão, não apenas porque os advogados sabem muito mais do que conseguem dizer, mas também porque há inúmeras nuances na avaliação das ações judiciais, contratos etc. que somente os bons profissionais conseguem aferir. Ao contrário, este artigo indica que a jurimetria com uso de IA consiste numa nova ferramenta à disposição dos profissionais do Direito, sobretudo dos advogados, para melhorar sua prática jurídica, oferecer novos e melhores serviços aos seus clientes, criar oportunidades, ampliar sua capacidade de trabalho, entre outros. Entretanto, este artigo pontua, sim, a necessidade de os profissionais do Direito adquirirem, adicionalmente, novas competências e novas habilidades para que possam se adaptar às novas exigências de um mercado jurídico marcado pelo uso intensivo de dados e de novas tecnologias que, ao aumentarem a capacidade de trabalho, acabam mudando a natureza deste11.

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1 Tradução livre. Original: “With the recent advent of electronic computers, some people now have the impression that we may be able to produce or construct a machine that will give the answers to legal questions, or at least give us reasonably accurate predictions as to the judicial decision of legal issues. All of these expectations seem unfounded and equally doomed to frustration”. Lee, Loevinger, “Jurimetrics: Science and Prediction in the Field of Law” (1961). Minnesota Law Review 1796. Disponível aqui. Disponível aqui. P. 258, última visita em 22-06-2021.

2 McAfee, Andrew; Brynjolfsson, Erik; “Machine, platform, crowd: harnessing our digital future”; 1st ed., 2017, Norton Company, p. 66-76.

3 “A Fast Learning Algorithm for Deep Belief Nets”. Disponível aqui.

4 Conselho Nacional de Justiça. Revista Justiça em números 2020. Disponível aqui. última visita em 14-07-2021.

5 Art. 5º, incs. XIV e XXXIII da CF/88; exceção aos processos que tramitam sob segredo de justiça.

6 Associação Brasileira de Jurimetria. Disponível aqui. Última visita em 20-06-2021.

7 Lee, Loevinger, “Jurimetrics: The Next Step Forward” (1949). Minnesota Law Review 1796. Disponível aqui. Disponível aqui. Última visita em 21-06-2021.

8 Tradução livre. Original: “...jurimetrics – which is the scientific investigation of legal problems.” Idem, p. 483.

9 Não existe uma uniformidade dos dados constantes da “capa” dos processos entre os diversos sistemas de gestão de processos judiciais eletrônicos existentes no Brasil.

10 Lee, Loevinger, “Jurimetrics: Science and Prediction in the Field of Law” (1961), p. 266. Minnesota Law Review 1796. Disponível aqui. Disponível aqui. Última visita em 22-06-2021.

11 Aoun, Joseph; “Robot-proof: higher education in the age of artificial intelligence”; 1st ed., 2017, The MIT Press; p. 02.

Renato Mandaliti
MBA Insurance & Risk Management University of Wisconsin - Madison Sócio Mandaliti Advogados.

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