Como bem se sabe, o dia do advogado refere-se a data em que, no ano de 1827, o então imperador Dom Pedro I autorizou a criação da Faculdade de Direito de Olinda, no Estado de Pernambuco, e igualmente a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, no Estado de São Paulo.
De lá para cá, ou seja, passados cento e noventa e quatro anos desta data, o cenário atual, como também chama a atenção do público em geral, é de 1.297.489 advogados 1 e um mundo de indecisões sobretudo no que diz respeito ao mercado de trabalho. Dentro dessas incertezas, e diante desse quadro de mais de um milhão de operadores do direito 2 de sobremaneira destacam-se as relacionadas a quais qualidades deve ter o advogado para ter sucesso.
Nesse campo deve-se, pois, o operador do direito recorrer à história para aprender com os erros do passado e especialmente para tomar para si, dentro do possível, os acertos, como se passa a brevemente fazer.
Então veja-se: sobre a história da advocacia e sua importância, exemplo inequívoco de que o emprego do artigo 133 estampado na Constituição Federal de 1988 3 não é desmedido, isto é, de que o advogado é (e sempre foi) indispensável à administração da justiça pode ser vislumbrado, no cenário internacional, pela obra Como os advogados salvaram o mundo: a história da advocacia e sua contribuição para a humanidade, do advogado carioca José Roberto Castro Neves. Neste livro o autor busca responder ao questionamento do título passeando pela história, desde a lei das 12 Tábuas (século V a.C), passando pelo Renascimento, Iluminismo, Revolução Americana, Revolução Francesa, até chegar a discutir a atualidade, momento em que o autor pondera inclusive acerca de riscos para a função do advogado com o advento da inteligência artificial.
Já no plano nacional, advogados do quilate de Rui Barbosa, Luiz Gama (reconhecido recentemente como advogado 4) e Sobral Pinto, sem desprestígio de outros, não deixam dúvidas da importância daquele que empresta a voz (advocatus) para o Estado Democrático de Direito.
Nesta semana comemorativa tenta-se extrair um adjetivo de cada dentro de sua profissão.
De Luiz Gama, nestas poucas linhas, basta consignar que antes mesmo da publicação da lei 3.353, de 13 de maio de 1888 (lei Áurea — a mais breve e mais importante da nação brasileira) já peticionava (o ano é 1869) ao juízo “pedindo” libertação de escravos. Consta da petição: “respeita o Direito e cumpra seu rigoroso dever, para o que é pago com o suor da nação”. 5 Adjetivo: corajoso.
Já do homem que não tinha preço 6: Heráclito Fontoura Sobral Pinto, aguerridíssimo defensor dos direitos humanos, basta contar, novamente por limitações de formatação, a defesa inusitada feita em sede de revisão criminal em que patrocinava os direitos de Harry Berger, preso em condições violadoras à dignidade da pessoa humana. Como se pode ler dos autos (Apelação 4.899/1937) Sobral Pinto lançou mão do Decreto de Proteção e Defesa dos Animais (Decreto 24.645, de 10 de julho de 1934) para pedir cela condigna ao preso. O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, Evandro Lins e Silva, sobre Sobral, foi categórico: “diferente, anomalia, portento. Foi, conforme Rubem Braga: - um monstro”. 7 Adjetivo: ousado.
Chega-se ao baiano Rui Barbosa. No livro Tanques e Togas, de autoria de Felipe Recondo, consta logo das primeiras páginas que o advogado Rui Barbosa, insatisfeito com prisões ilegais decretadas em regime de estado de sítio, impetrou habeas corpus no então Supremo Tribunal de Justiça (hoje Supremo Tribunal Federal) para que este apreciasse tal matéria e, por conseguinte, decidisse pela soltura dos cidadãos presos de modo ilegal. Ocorre que, vencido no caso, Rui percebeu que o Brasil verdadeiramente desconhecia, no final do século XIX, a doutrina do instrumento Habeas Corpus. O estudioso Rui, tempos depois, encontrou-se com o ministro que teve o voto condutor para a não apreciação do HC e lhe entregou um livro chamado The Supreme Court of the United States: Its History, escrito por Hampton Carson. Resultado: o ministro agradeceu e, pouco tempo depois a história se encarregou, a partir do empurrão dado pelos estudos de Rui, de adotar o remédio constitucional Habeas Corpus no ordenamento jurídico brasileiro. 8 Adjetivo: estudioso. 9
Portanto, a nós, advogados, agentes transformadores do curso da história: coragem, ousadia e (muito) estudo. E que se almeje ser exceção a sentença de Álvaro de Campos, heterônomo criado pelo poeta português Fernando Pessoa, na poesia Tabacaria, quando afirma que somos apenas escravos cardíacos das estrelas na medida em que “conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama; mas acordamos e ele é opaco, levantamo-nos e ele é alheio, saímos de casa e ele é a terra inteira (...)”, pois nada é tão nosso quanto os nossos sonhos.
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1 Dados do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Disponível aqui. Acesso em 11 ago. 2021.
2 Para crítica a esse termo veja-se, por todos: O Direito Posto e Direito Pressuposto. São Paulo: Malheiros Editores, 3ª ed., 2000, p. 72.
3 CRFB/1988. Art. 133 - O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.
4 OAB confere título de advogado a Luiz Gama. Disponível aqui. Acesso em 11 ago. 2021.
5 Idem.
6 O homem que não tinha preço. Disponível aqui. Acesso em 11 ago. 2021.
7 O advogado baseia seus argumentos no Decreto de Proteção e Defesa dos Animais (Decreto 24.645, de 10 de julho de 1934) e cita como exemplo o caso de um juiz paranaense que condenou um réu à pena de 17 dias de prisão celular e à multa de 520$000 por ele ter matado a pancadas um cavalo de sua propriedade, para concluir que, se os magistrados timbram em aplicar a legislação para resguardarem os próprios animais irracionais dos maus tratos, não é possível que Harry Berger permaneça "dentro de um socavão de escada, privado de ar, de luz, e de espaço".
8 Sobral Pinto, o monstro. Disponível aqui. Acesso em 11 ago. 2021.
9 RECONDO, Felipe. Tanques e togas: o STF e a ditadura militar. São Paulo, Companhia das Letras, 2018, p. 12. Quem dá veracidade à história é o ministro aposentado do STF Paulo Brossard, que registra: “A prova material do episódio sobreviveu ao tempo e permanece guardada no cofre de um sobrado na rua Corte Real, 716, bairro de Petrópolis, em Porto Alegre. Por lá chegou, num golpe de sorte, oitenta anos depois de trava a conversa entre Rui e Barradas. O advogado, político e futuro ministro do Supremo Paulo Brossard costumava vasculhar catálogos da libraria Kosmos em busca de preciosidades para acrescentar à sua enorme biblioteca. Numa dessas procuras, interessou-se por um lote. A livraria não informava os nomes de todos os livros constantes do pacote. Mesmo assim, pelo pouco que viu, Brossard decidiu compra-lo. Quando a encomenda chegou à sua casa, abriu a caixa para analisar os livros que acabara de adquirir. No fundo dela, servindo de base para os demais, havia um exemplar da obra de Hampton Carson. Quando abriu a capa para assinar seu nome, Brossard viu a dedicatória: “à sua excelência o sr. Conselheiro Barradas, tenho a honra de oferecer. Rui Barbosa”. In: RECONDO, Felipe. Tanques e togas: o STF e a ditadura militar. São Paulo, Companhia das Letras, 2018, p. 13.
10 Sobre estudos, imprescindível é a prece de Rui Barbosa contida na palestra/livro Oração aos Moços, quando registra: “Estudante sou. Nada mais. Mau sabedor, fraco jurista, mesquinho advogado, pouco mais sei do que saber estudar, saber como se estuda, e saber que tenho estudado. Nem isso mesmo sei se saberei bem. Mas, do que tenho logrado saber, o melhor devo às manhãs e madrugadas. (...) Até agora, nunca o sol deu comigo deitado e, ainda hoje, um dos meus raros e modestos desvanecimentos é o de ser grande madrugador, madrugador impenitente. In: Oração aos moços. Edições do Senado Federal – Vol. 271, 2019, p. 46.