A publicidade é um dos princípios norteadores da Administração Pública 1, sendo essencial ao funcionamento de um estado democrático e transparente. Sendo a publicidade regra, o sigilo é exceção, e, portanto, deve ser delimitado rigorosamente. No caso do inquérito policial, o sigilo é moderado, pois é limitado pelo que é necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade, nos termos do art.20 do Código de Processo Penal. No mesmo sentido, o texto constitucional dispõe em diversos momentos acerca da regra de publicidade dos atos praticados por órgãos públicos, ressalvando-a somente hipóteses específicas. 2
Contudo, o sigilo do inquérito policial, bem como das demais espécies de investigação criminal, não se opõe ao patrono do suspeito ou investigado, sendo direito do advogado ter acesso amplo aos elementos de provas já documentados no caderno investigativo, tema este sedimentado na Súmula Vinculante 14 “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”
Nesse cenário, incontroverso que o advogado possui direito de examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos ao agente público responsável, podendo copiar e tomar apontamentos, em meio físico ou digital. Trata-se de prerrogativa profissional garantida, conforme art. 7º, incisos XIII, XIV e XV, da lei 8.906/94 (Estatuto da OAB) 3.
Não se pode olvidar que, diante de certas peculiaridades, algumas investigações precisam proteger as informações colhidas de forma mais restrita, especialmente quando a preservação das informações é de interesse do próprio investigado (ex. quebra de sigilo fiscal). Nestes casos, natural exigir do advogado que apresente procuração para agir em casos de sigilo determinado. 4
Em que pese o acima exposto, não é raro vermos agentes públicos restringindo o acesso do causídico, ainda que com representação regular, aos autos das investigações. Os motivos são os mais variados: a investigação é “super sigilosa”; parte da investigação possui elemento de prova em curso (contudo, inviabiliza-se o acesso aos autos integralmente); ausência de suporte tecnológico em casos de investigação conduzida eletronicamente; e até mesmo por não ver o requerente sequer despachado o seu pedido.
Cabe ao agente público que investiga, mediante expedientes adequados, permitir que o advogado tenha acesso, no mínimo, ao que diga respeito ao seu constituinte e de tudo que já tenha sido documentado, por ser uma imposição do regime democrático, conforme já se manifestou o Supremo Tribunal Federal: “É preciso - e o Supremo Tribunal Federal já assentou isso na Súmula 14 - conceder aos investigados amplo acesso às informações coletadas em seu favor. Essa é uma imposição do regime democrático, sob pena de resvalarmos numa ditadura judicial ou ministerial, data vênia”. 5
O descumprimento da prerrogativa do advogado ofende o exercício da defesa de seu cliente de forma plena, além de poder ensejar o cometimento do crime previsto no artigo 32 da lei 13.869/2019 - Nova lei de Abuso de Autoridade:
“Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível: Pena - detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.”
“A negativa de acesso do advogado aos autos da investigação preliminar, o fornecimento incompleto de autos ou o fornecimento de autos em que houve a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo também implicará responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade do responsável que impedir o acesso do advogado com o intuito de prejudicar o exercício da defesa, sem prejuízo do direito subjetivo do advogado de requerer acesso aos autos ao juiz competente (lei 8.906/94, art. 7º, § 12, incluído pela lei 13.245/16).” 6
A legislação penal especial prevê que haverá o crime quando o agente negar acesso aos autos de qualquer procedimento de investigação de infração penal, civil ou administrativa ou negar que se extraia cópias.
O advogado, ao se deparar com o cometimento do abuso de autoridade, poderá acionar a Ordem dos Advogados do Brasil, a qual deverá designar um delegado de prerrogativas para atuar no caso. Persistindo a situação de violação da prerrogativa profissional, o fato pode ser registrado e o documento produzido poderá servir de substrato para eventual representação junto a órgãos de controle (ex.Corregedoria), bem como para eventual persecução penal do agente público infrator. Ademais, este documento pode servir para reforçar o ajuizamento de Reclamação Constitucional Criminal perante o STF 7, ou até mesmo Mandado de Segurança, com o fim de ver exigido o acesso aos autos do caderno investigativo
Inegável, portanto, que o inquérito policial, em alguns aspectos, pode ser sigiloso, porém a negativa sem o devido fundamento legal fere prerrogativa imprescindível ao exercício da advocacia, além de poder constituir crime de abuso de autoridade, nos termos do artigo 32 da lei 13.869/2019.
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CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Lei 13.869/2019: nova lei de Abuso de Autoridade.. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível aqui.
LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação especial criminal comentada: volume único / Renato Brasileiro de Lima- 8ª ed. rev., atual. e ampl.- Salvador: JusPODIVM, 2020.
LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. Vol. 17. São Paulo, Saraiva Educação, 2020.
1 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)
2 Art.5º, XXXIII, da Constituição Federal/88 - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
3 Art. 7ª, incisos XIII, XIV e XV da lei 8.906/94 (Estatuto da OAB):
XIII - examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estiverem sujeitos a sigilo ou segredo de justiça, assegurada a obtenção de cópias, com possibilidade de tomar apontamentos;
XIV - examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital;
XV - ter vista dos processos judiciais ou administrativos de qualquer natureza, em cartório ou na repartição competente, ou retirá-los pelos prazos legais;
4 Nesse sentido, vide o artigo 7º, §10, da lei 8.906/94, acrescentado pela lei 13.245/16. Na mesma linha, conforme disposto no artigo 107, I, do CPC.
5 Ag .Reg. nos Emb .Decl. no Ag .Reg. no Ag .Reg. na Rcl n. 33.543 Paraná.
6 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação especial criminal comentada: volume único / Renato Brasileiro de Lima- 8ª ed. rev., atual. e ampl.- Salvador: JusPODIVM, 2020. p. 178.
7 Artigo 103-A, § 3º, da Constituição da República; artigo 7º, caput, da lei 11.417/2006; artigos 988, inciso III, e 989, inciso II, do Código de Processo Civil e artigos 156 a 162 do Regimento Interno desta Suprema Corte.