Migalhas de Peso

Julgamento virtual, supressão da sustentação oral e violação às prerrogativas profissionais

Em homenagem aos Advogados brasileiros.

11/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O princípio constitucional do contraditório – e o seu desdobramento na garantia do direito de defesa – corresponde a um postulado considerado eterno. Realmente, nenhuma restrição de direitos pode ser admitida sem que se propicie à pessoa interessada a produção de ampla defesa (nemo inauditus damnari potest), e, consequentemente, essa só poderá efetivar-se em sua plenitude com a participação ativa e contraditória dos sujeitos parciais em todos os atos e termos do processo.

É que, aliás, ampliando, explicitamente, tradicional regra de nosso ordenamento jurídico, a garantia do contraditório foi elevada ao plano constitucional, no Brasil, pela atual Constituição Federal, no inciso LV do artigo 5º: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

O processo judicial, arbitral ou administrativo, como instituição eminentemente dialética, em qualquer de suas vertentes, encontra-se sob a égide do princípio do contraditório. Não se faz possível conceber um processo unilateral, no qual atue somente uma parte, visando à obtenção de vantagem em detrimento do adversário, sem que se lhe conceda oportunidade para apresentar as suas razões.

Acrescente-se que, garantindo aos sujeitos parciais uma equivalência nas respectivas posições, por eles assumidas, o princípio do contraditório sedimenta-se na possibilidade de atuação não em momentos episódicos, mas em todo o iter procedimental, numa sequência de atuações, estratégias e reações, que tornam efetiva a ampla defesa.

Não é preciso salientar que, nesse cenário, o advogado desempenha papel fundamental!

Pois bem, no que se refere ao princípio do contraditório à luz do CPC/2015, é de se assinalar que o objetivo precípuo da Comissão de Juristas que elaborou o respectivo Anteprojeto veio revelado na própria exposição de motivos, ao ser enfatizado, com todas as letras, que: “A necessidade de que fique evidente a harmonia da lei ordinária em relação à Constituição Federal da República fez com que se incluíssem no Código, expressamente, princípios constitucionais, na sua versão processual. Por outro lado, muitas regras foram concebidas, dando concreção a princípios constitucionais, como, por exemplo, as que preveem um procedimento, com contraditório e produção de provas, prévio à decisão que desconsidera da pessoa jurídica, em sua versão tradicional, ou às ‘avessas’. Está expressamente formulada a regra no sentido de que o fato de o juiz estar diante de matéria de ordem pública não dispensa a obediência ao princípio do contraditório [...]”.

Verifica-se, pois, que, em perfeita simetria com o princípio da publicidade e com o denominado princípio da cooperação entre os protagonistas do processo, a garantia do contraditório é expressamente contemplada ou referenciada, de algum modo, em inúmeros dispositivos do diploma processual em vigor. E isso bem demonstra a preocupação do legislador em resguardar, de forma pormenorizada, o contraditório, que é considerado cânone fundamental do processo.

Importa ainda registrar que a sustentação oral é assegurada ao advogado, de forma expressa e detalhada, no artigo 937 do Código de Processo Civil: “Na sessão de julgamento, depois da exposição da causa pelo relator, o presidente dará a palavra, sucessivamente, ao recorrente, ao recorrido e, nos casos de sua intervenção, ao membro do Ministério Público, pelo prazo improrrogável de 15 (quinze) minutos para cada um, a fim de sustentarem suas razões, nas seguintes hipóteses, nos termos da parte final do caput do art. 1.021: I – no recurso de apelação; II – no recurso ordinário; III – no recurso especial; IV – no recurso extraordinário; V – nos embargos de divergência; VI – na ação rescisória, no mandado de segurança e na reclamação; VIII – no agravo de instrumento interposto contra decisões interlocutórias que versem sobre tutelas provisórias de urgência ou da evidência; IX – em outras hipóteses previstas em lei ou no regimento interno do tribunal. § 1º A sustentação oral no incidente de resolução de demandas repetitivas observará o disposto no art. 984, no que couber. § 2º O procurador que desejar proferir sustentação oral poderá requerer, até o início da sessão, que o processo seja julgado em primeiro lugar, sem prejuízo das preferências legais. § 3º Nos processos de competência originária previstos no inciso VI, caberá sustentação oral no agravo interno interposto contra decisão de relator que o extinga. § 4º É permitido ao advogado com domicílio profissional em cidade diversa daquela onde está sediado o tribunal realizar sustentação oral por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que o requeira até o dia anterior ao da sessão”.

Dentre outras hipóteses previstas em lei, destaca-se o caput do artigo 942, que também admite a sustentação oral quando se verifica o denominado julgamento estendido, isto é, quando houver dissenso entre os desembargadores, por ocasião do julgamento da apelação, da ação rescisória ou do agravo de instrumento sobre decisão parcial de mérito.

mens legis nessa situação propicia a intervenção oral do advogado, em subsequente sessão de julgamento, mas desde que não tenha estado presente pelo menos um dos dois desembargadores que passam a integrar a turma julgadora. Evita-se, com esse sábio expediente, desnecessária repetição.

Ressalte-se que a sustentação oral, de um modo geral, é recomendada para que o procurador da parte possa ressaltar questões de fato determinantes do julgamento do recurso.

A sustentação oral, como prerrogativa profissional dos advogados das partes, também poderá ser útil para suscitar alguma questão de direito de conhecimento ex officio, até então não arguida nos autos, como, por exemplo, a falta de pressupostos de constituição e desenvolvimento válido do processo, da perempção, litispendência e coisa julgada, e, ainda, da exceção de prescrição.

Em hipótese alguma, quando admitida pela lei, o tribunal pode violar o direito de o advogado manifestar-se oralmente em prol de seu constituinte.

A ofensa a essa prerrogativa implica inequívoco cerceamento de defesa!

E, diante dessa premissa, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no recente julgamento do Recurso Especial n. 1.903.730/RS, com voto condutor da ministra Nancy Andrighi, deu provimento à impugnação, por violação aos artigos 937, inciso VIII, e 1.021, inciso VIII, do Código de Processo Civil, visto que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao julgar um agravo de instrumento que tinha como objeto tutela de urgência, em ambiente virtual, desconsiderou prévio e insistente requerimento do agravante, a permitir que seu advogado efetivasse sustentação oral.

Extrai-se, com efeito, do corpo do acórdão que na hipótese de:

“agravo de instrumento interposto contra decisão interlocutória que versa sobre tutela provisória de urgência ou de evidência – como na hipótese dos autos –, é dever dos julgadores, antes de proferirem seus votos, conceder a palavra aos advogados que tenham interesse em sustentar oralmente.

Trata-se de dever imposto, de forma cogente, a todos os tribunais, em observância aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, consoante assentado em inúmeras oportunidades pelo Supremo Tribunal Federal (Rcl 37.598 AgR-ED, 2ª Turma, DJe 26/06/2020; MS 36.139 AgR-ED, 1ª Turma, DJe 25/9/2019; MS 35.444 AgR-ED, 2ª Turma, DJe 5/9/2018).

Cabe transcrever, por oportuno, trecho do brilhante voto proferido pelo e. Min. Celso de Mello acerca da questão controvertida, que, embora relacionado à matéria penal, revela-se absolutamente pertinente à hipótese:

‘A realização dos julgamentos pelo Poder Judiciário, além da exigência constitucional de sua publicidade (CF, art. 93, IX), supõe, para efeito de sua válida efetivação, a observância do postulado que assegura ao réu a garantia da ampla defesa. A sustentação oral constitui ato essencial à defesa. A injusta frustração dessa prerrogativa qualifica-se como ato hostil ao ordenamento constitucional. O desrespeito estatal ao direito do réu à sustentação oral atua como causa geradora da própria invalidação formal dos julgamentos realizados pelos Tribunais’ (HC 71.551, 1ª Turma, DJ 06/12/1996).

Nesta Corte Superior de Justiça, a importância de se garantir ao advogado a faculdade de sustentar de forma oral as razões de interesse de seu constituinte foi assentada em inúmeras ocasiões... Não se trata, portanto, de mero formalismo, mas de garantia fundamental cuja efetivação tem por objetivo assegurar às partes o ‘poder de influenciar’ na tomada de decisão exatamente no momento de sua gênese...”.

Nessa linha de argumentação, este corretíssimo julgamento, sensível ao princípio do devido processo legal, ao prover o indigitado recurso especial, reconheceu a nulidade do acórdão impugnado, uma vez que, havendo oposição tempestiva e expressa à realização do julgamento do recurso em sessão virtual, deverá ser ele retirado de pauta, privilegiando-se a opção da parte pelo julgamento presencial ou telepresencial, no qual possa ser facultada ao seu advogado a realização de sustentação oral. 

José Rogério Cruz e Tucci
Advogado, professor titular sênior da faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e ex-presidente da AASP.

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