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Nova lei de licitações e a matriz de riscos do registro de preços

Todo o regramento sem previsão expressa na nova lei deverá constar na matriz de riscos do edital da licitação que antecede o registro de preços.

11/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O registro de preços sempre foi importante instrumento de aquisição de produtos pela administração pública quando não há possibilidade de previsão exata de quantitativos.

Nesse diapasão é a súmula 31 do TCE/SP:

“Em procedimento licitatório, é vedada a utilização do sistema de registro de preços para contratação de serviços de natureza continuada”

As principais inovações sobre o registro de preço na nova lei referem-se à possibilidade de “carona”, registro de mais de um licitante e a possibilidade de prorrogação por novo período de um ano.

O objetivo deste texto é debater a inovação acerca da possibilidade de mais de um licitante ser o detentor da ata e as consequências desta regra quanto aos riscos assumidos (matriz de riscos).

O primeiro ponto a ser observado é a maneira pela qual os “licitantes” (no plural) poderão fazer parte deste Registro de preços.

Também há possibilidade de que o licitante faça oferta parcial do montante a ser objeto do registro de preços, reduzindo sua matriz de riscos.

Outra novidade digna de registro (permitam a ironia) é quanto ao prazo de validade que na lei federal 8.666/93 e na antiga lei do pregão (lei 10.520/02) é de 60 dias e na nova lei dependerá exclusivamente da previsão do edital (art. 90,§3º da nova lei)

Há visível aproximação do novo registro de preços com regras da iniciativa privada tais como oferecimento parcial da proposta e a “carona” do RP de outro ente político tal como faria uma empresa privada em relação a compras feitas por outra empresa do mesmo grupo econômico.

As características de direito privado do Registro de Preços fizeram com que Marçal Justen Filho 1 afirmasse em sua reconhecida obra:

“A ‘ata de registro de preços’ não produz diretamente um contrato de fornecimento ou de serviço. Ela formaliza um contrato preliminar, que envolve a disciplina de futuras contratações entre as partes.” 

Assim, a figura do contrato preliminar tem previsão nos artigos 462 a 466 do Código Civil e somente pode ser aplicado ao registro de preços com adaptações em consonância com as cláusulas exorbitantes e a supremacia do interesse público.

Prevê o artigo 463 do Código Civil:

“Art. 463. Concluído o contrato preliminar, com observância do disposto no artigo antecedente, e desde que dele não conste cláusula de arrependimento, qualquer das partes terá o direito de exigir a celebração do definitivo, assinando prazo à outra para que o efetive.”

Evidentemente que o contrato administrativo não tem essa amplitude do contrato de direito privado. A “liberdade de arrependimento” do contrato preliminar está prevista implicitamente ao se admitir a existência de vários fornecedores pelo mesmo preço oferecido pelo licitante vencedor, garantindo o interesse público na pluralidade de detentores da ata.

Assim, prevê o artigo 82

“Art. 82. O edital de licitação para registro de preços observará as regras gerais desta lei e deverá dispor sobre:

(...)

VII - o registro de mais de um fornecedor ou prestador de serviço, desde que aceitem cotar o objeto em preço igual ao do licitante vencedor, assegurada a preferência de contratação de acordo com a ordem de classificação;”

Desta forma, o edital deve prever qual será, especificamente, a multa a ser aplicada na hipótese de descumprimento pelo licitante vencedor.

Tal arrependimento, porém, somente poderá ser exercido após o prazo de validade (necessariamente previsto no edital) de sua proposta.

A nossa modesta interpretação é a de que a imposição de multa é obrigatória apenas na hipótese de descumprimento do primeiro licitante, caso não haja outro licitante apto a fornecer pelo mesmo preço.

Havendo outro licitante apto a fornecer o produto/serviço do RP a mera sanção de advertência parece ser suficiente, caso seja a primeira desistência do licitante.

A multa será fixada entre 0,5% a 30% do valor do contrato descumprido pelo licitante vencedor, sendo recomendável a escolha do percentual aplicável já no edital do Registro de Preços de maneira a evitar discussões estéreis e protelatórias.

Aparentemente, a imposição de multa seria uma sanção obrigatória ao licitante vencedor que não efetiva a entrega/produto do registro de preços. Não é, porém, a interpretação que aqui se pretende.

O licitante vencedor que deixar de efetivar a entrega do produto/serviço poderá ser novamente convocado para oferecer o produto/serviço pelo qual foi sagrado vencedor da licitação já que o novo modelo permite tal interpretação, desde que haja expressa previsão no edital.

Essa interpretação está em consonância com o princípio da ampla competitividade do processo licitatório e da possibilidade de registro de mais de um licitante junto ao registro de preços.

Assim, apenas se houver duas negativas de fornecimento pelo licitante vencedor, ou uma única negativa, na hipótese de ser o único licitante detentor da ata de registro de preços.

A interpretação da aplicação da multa apenas de hipótese de inexistência de outro licitante apto e registrado no RP tem como fundamento, também, a regra de que as partes do contrato respondem na proporção das consequências de sua inexecução. Assim:

“Art. 115. O contrato deverá ser executado fielmente pelas partes, de acordo com as cláusulas avençadas e as normas desta lei, e cada parte responderá pelas consequências de sua inexecução total ou parcial.”

A interpretação que se faz do artigo 115 é a de que é verdadeiro princípio a ser seguido no momento da aplicação de sanções.

O grande problema do registro de preços é o fato de que indiretamente ele acaba “inflando” os valores dos produtos/serviços pois o particular terá que “reservar” produto/serviço sem a a certeza da entrega do mesmo.

No caso de produto é mais visível que o preço será inflado em razão do “estoque permanente” que terá que ser feito pelo particular sem que haja qualquer garantia de fornecimento.

A interpretação que flexibiliza a obrigatoriedade de manutenção de produto/serviço acaba favorecendo a redução indiretamente do produto ou serviço já que não há mais aquele vínculo “manu militare” que acabava por impulsionar o preço criando um “spread” licitatório invisível a olho nu.

Desta forma, havendo mais de um licitante no registro de preços, a possibilidade de cumprimento pelos licitantes seguindo a ordem de classificação ameniza o risco e diminui o “spread” que sempre acompanhou o registro de preços.

As consequências concretas do inadimplemento do licitante vencedor e o prazo de validade da proposta são os maiores parâmetros a serem seguidos de forma a implementar o interesse público albergado no registro de preços.

É superlativamente recomendável que haja já no edital a descrição da matriz de riscos, constando, expressamente, que na hipótese de haver um único detentor da ata, o vínculo existente entre o Poder Público e o licitante vencedor tem a característica de vinculação plena, sendo aplicáveis as sanções por inadimplemento, caso haja recusa de fornecimento no prazo de validade da ata (rotineiramente, de um ano).

Assim, o novo registro de preços pode ter vários licitantes registrados pela ordem de classificação e como consequência confere uma pequena liberdade ao licitante vencedor consistente em poder negar o fornecimento com a modesta sanção da advertência, caso a negativa ocorra após a validade de sua proposta e caso haja outro licitante registrado apto a promover o fornecimento.

Todo o regramento sem previsão expressa na nova lei deverá constar na matriz de riscos do edital da licitação que antecede o registro de preços.

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1 “Comentários à lei de licitações e contratos administrativos”, EDITORA RT, 2.021,pág.1.159.

Laércio José Loureiro dos Santos
Procurador Municipal, mestre em Direito pela PUCSP, autor de "Inovações da Nova Lei de Licitações", Ed. Dialética, 2.021, Foi coordenador do curso de Direito da UNISAL/SP, foi membro do TED-OAB

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