Migalhas de Peso

Comentários sobre “PEC da prisão em 2.ª instância”

Limitar a discussão à execução da sentença condenatória criminal empobrece o debate, haja vista a proposta pode abranger todas as decisões proferidas pelo Judiciário, indiscriminadamente.

10/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Não é o objetivo deste texto discutir sobre as guinadas jurisprudenciais a respeito da execução da prisão em segunda instância que, atualmente, conforme entendimento do STF, só pode ser executada após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Traz-se um apanhado das ideias sustentadas pelo ex-presidente do STF, Cezar Peluso, no dia 05 de fevereiro de 2020 na Câmara dos Deputados, em audiência pública 1. Adiciona-se alguns comentários.

A fim de melhor ilustrar esclarece-se ao leitor que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) serão referidos apenas como tribunais de superposição, em razão de não pertencerem à nenhuma das “Justiças”, estando acima delas 2. O recurso especial e o recurso extraordinário serão referidos somente como recursos extraordinários (lato sensu).

De fato, sendo os tribunais de superposição instâncias extraordinárias da Justiça Brasileira, são eles competentes para julgar os recursos extraordinários lato sensu (RESP e RE).

A questão que se coloca é: quando se dá o Trânsito em Julgado? A Constituição não diz.

Atualmente, de acordo com o artigo 6.º, § 3.º da LINDB “Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.”

A redação do artigo 502 do Código de Processo Civil não difere, dispondo que “denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.”

Portanto, havendo possibilidade de interposição de recursos extraordinários aos tribunais de superposição, não há, atualmente, coisa julgada.

Desde logo é bom que se diga que o objeto da PEC 199/2019, conhecida popularmente como “PEC da prisão em 2.ª instância” é muito mais amplo, abrangendo todos os ramos do Poder Judiciário Nacional, aí incluídas as Justiças Especializadas.

Aliás, não pode um tema com tamanha relevância ser visto tão somente sob a ótica da execução da prisão em segunda instância, isso empobrece o debate e leva à análises casuísticas.

Como afirmado pelo ex-ministro Cezar Peluso, o tema não deve ser abordado tendo como objetivo tão somente possibilitar o Trânsito em Julgado de decisões penais condenatórias na segunda instância, o que seria uma norma casuística e desembocaria em inconstitucionalidade 3.

Pela PEC que tramita no Congresso Nacional, tombada sob o número 199 4, o artigo 102 da Constituição da República passaria a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente:

s) a ação revisional extraordinária;”

A nova redação do artigo 105 da Constituição Federal seria a seguinte:

“Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: I - processar e julgar, originariamente:

j) a ação revisional especial;”

Referida proposta não incide no mesmo erro da PEC n.º 400/2018[5] (já arquivada), cuja intenção era alterar apenas o art. 5.º, inciso LVII da Constituição de 1988, que passaria a dispor:

“Art. 5º. [...]

LVII – ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso.”

Além do objetivo de modificar apenas a matéria criminal, a redação da PEC 400 não era boa e visava alterar garantia individual, o que certamente não passaria pelo crivo do controle de constitucionalidade, seja no próprio parlamento (controle preventivo) ou após a aprovação (controle repressivo), tendo em conta que as propostas tendentes a abolir cláusulas petrificadas pela Constituição não podem nem sequer ser objeto de deliberação (art. 60, § 4.º, inc. IV, CRFB/88).

Mas a redação da PEC 199 também pode melhorar, e é essa justamente a proposta do ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso.

O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal defende que devam ser mantidas as denominações “Recurso Especial” e “Recurso Extraordinário”, com o que, humildemente, se concorda, apenas alterando o momento em que se dá o trânsito em julgado (com a aprovação da PEC, se daria logo após preclusa decisão de segundo grau).

Transformar referidos recursos em ações revisionais, nas palavras do jurista, só tumultuariam o sistema de justiça, já que seria necessário estabelecer os ritos dessas novas ações.

A propósito, como ações que seriam, essa revisionais naturalmente teriam algum grau cognitivo, abrindo margem para nova produção probatória e eventualmente análise fática, o que não se admite em sede de recursos extraordinários. 

O jurista esclarece que essa nova roupagem desses recursos contra decisões já definitivamente acobertadas pela coisa julgada não seria uma invenção brasileira, em razão de já existirem previsões semelhantes no sistema romano germânico 

Os referidos recursos extraordinários, nas palavras do ex-ministro, simplesmente perderiam a função de obstar o trânsito em julgado da demanda e, por outro lado, ganhariam os efeitos rescindente e rescisório.

É dizer, uma vez interpostos os recursos extraordinários contra as causas já decididas definitivamente, abriria a possibilidade do juízo rescindente (desconstituir a decisão com retorno à origem) e rescisório (se houver rejulgamento pelos tribunais de superposição).

É importante observar que nesses recursos “rescisórios” os tribunais superiores continuarão a uniformizar a jurisprudência, não havendo alterações neste sentido.

O magistrado aposentado ainda reforça que devem ser assegurados o direito ao duplo grau de jurisdição nos processos de competência originária dos tribunais, cite-se, como exemplo, o caso de uma autoridade com foro por prerrogativa de função em determinado Tribunal de Justiça.

A solução proposta por ele seria de que nesses casos o Superior Tribunal de Justiça ou o Supremo Tribunal Federal fariam as vezes de tribunais de apelação, solução, aliás, já existente na Constituição, não havendo que se falar em alterações neste sentido.

Reforça-se este argumento tendo em vista a possibilidade de confusão entre as expressões “segunda instância” e “duplo grau”, ou seja, ainda que julgado originariamente em segunda instância, evidentemente não haveria imediato trânsito em julgado, mas somente haveria decisão definitiva após oportunizado o duplo grau de jurisdição (garantia individual que decorre do devido processo legal, contraditório e ampla defesa).

Outra solução, que não fora citada pelo jurista, seria de atribuir a órgãos fracionários desses tribunais a incumbência do julgamento originário, sendo o recurso ordinário (que faz as vezes da apelação), ou outro recurso a ser disciplinado, proposto perante o pleno ou órgão especial do respectivo tribunal.

No entanto, esta solução alternativa deveria passar por uma análise mais acurada, já que em determinados casos o Constituinte Originário fez opções, elegendo, a título de exemplo, o Supremo Tribunal Federal como “tribunal de apelação” (v.g. crime político).

Antevendo objeções sobre a proposta, o eminente ex-julgador também sugere uma solução em casos excepcionais: a possibilidade de o relator do tribunal de segundo grau conferir, repita-se, excepcionalmente, efeito suspensivo aos “novos” recursos extraordinários em casos de elevada probabilidade de direito.

Fácil perceber, dessa maneira, que os famosos recursos especiais dirigidos ao STJ e os famosos recursos extraordinários (stricto sensu) dirigidos ao STF terão a mesmíssima função que já possuem: controlar lei federal ou norma constitucional.

É excelente a proposta, já que remanescem as hipóteses já previstas hodiernamente para os recursos extraordinários, sem prejuízo de ações rescisórias em matérias cíveis ou as revisionais em matéria criminal.

Assim, transitando em julgado a decisão proferida (esgotado o duplo grau de jurisdição), o prejudicado terá duas opções: propor as ações de desconstituição do julgado com base nos Códigos Processuais ou se valer dos recursos extraordinários.

O encurtamento dos longos processos brasileiros trará vantagens e segurança jurídica a todos os setores. Recorde-se que até mesmo os precatórios poderão ser pagos com antecedência, enfim, o novo regime da coisa julgada valerá indiscriminadamente.

Neste ponto, oportuno recordar que o Direito Sancionador como um todo, a exemplo das ações por ato de improbidade, ações eleitorais, ações baseadas na lei anticorrupcao empresarial, na lei antitruste etc. também colherá os bons frutos da segurança jurídica e celeridade.

Ora, a despeito de ser possível a execução provisória (numa ação de improbidade, por exemplo), é inegável que o manto da coisa julgada tão logo decidida a causa no segundo grau de jurisdição, trará segurança e eficiência às referidas ações, ressarcindo mais rapidamente os prejuízos sofridos pela sociedade.

O Ministério Público também continuará desempenhando seu papel normalmente nos tribunais, interpondo os recursos extraordinários que julgar pertinentes.

Peluso ainda propõe que a referida emenda só passe a valer para os casos posteriores, invocando razões de segurança jurídica.

Como dito anteriormente, o Texto Constitucional não dispõe expressamente e tampouco implicitamente sobre quando se daria o fenômeno da coisa julgada, razão pela qual o multicitado jurista defenda que se possa fazer a alteração via lei ordinária.

Nada obstante, a fim de conferir maior legitimidade a tema tão sensível, reconhece que a alteração via emenda seria oportuna.

Enfim, a alteração na Carta Magna consistiria tão somente em dispor que os recursos extraordinários não impedem o trânsito em julgado, aliada a alterações na Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro e no Código de Processo Civil.

Voltando à seara criminal, a respeito das decisões proferidas pelo Tribunal do Júri, o tema parece ser resolvido com base na soberania dos veredictos, que pode se sobrepor ao princípio da presunção de inocência, para fins de execução penal, obviamente com lastro na legislação ordinária.

Como visto o tema pode ser mais simples do que parece, não necessitando de mudanças radicais na legislação ordinária e tampouco no texto Constitucional, bastando singela alteração, dispondo que a interposição de recurso especial perante o Superior Tribunal de Justiça ou a interposição de recurso extraordinário perante o Supremo Tribunal Federal não obsta a certificação do trânsito em julgado para fins de execução do que fora decidido, seja qual for a matéria.

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1 Disponível aqui.

2 Interesses difusos e coletivos / Adriano Andrade, Cleber Masson, Landolfo Andrade – 8. Ed. ver. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: MÉTODO, 2018. p. 138.

3 Disponível aqui.

Disponível aqui.

Disponível aqui.

Paulo Eduardo Castanho Filho
Advogado especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul - FMP/RS

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