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Crítica face a imprecisão legislativa no tratamento da consolidação substancial no processo de Recuperação Judicial

Já não é novidade o fato de que a lei 14.112 de 24 de dezembro de 2020 implementou significativas mudanças na lei 11.101/2005 que, por sua vez, regula os processos de recuperação judicial, extrajudicial e falência do empresário.

11/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Já não é novidade o fato de que a lei 14.112 de 24 de dezembro de 2020 implementou significativas mudanças na lei 11.101/2005 que, por sua vez, regula os processos de recuperação judicial, extrajudicial e falência do empresário.

Dentre as inúmeras alterações legislativas, buscar-se-á tratar no presente escrito acerca das inovações inseridas no artigo 69-J da mencionada lei, que trata do fenômeno da consolidação substancial e assim dispõe, in verbis:

Art. 69-J. O juiz poderá, de forma excepcional, independentemente da realização de assembleia-geral, autorizar a consolidação substancial de ativos e passivos dos devedores integrantes do mesmo grupo econômico que estejam em recuperação judicial sob consolidação processual, apenas quando constatar a interconexão e a confusão entre ativos ou passivos dos devedores, de modo que não seja possível identificar a sua titularidade sem excessivo dispêndio de tempo ou de recursos, cumulativamente com a ocorrência de, no mínimo, 2 (duas) das seguintes hipóteses:    

I - existência de garantias cruzadas;

II - relação de controle ou de dependência;

III - identidade total ou parcial do quadro societário; e

IV - atuação conjunta no mercado entre os postulantes. 

De pronto, fácil concluir que trata-se de instituto de aplicação excepcional que busca consolidar ativos e passivos de determinado grupo econômico para que conjuntamente as empresas apresentem plano único de recuperação contemplando os credores de todo o grupo, que passará a ser tratado com um único devedor, o que se extrai dos artigos 69-K e 69-L do mesmo diploma legal 1.

De fato, excepcional deve ser, pois trata-se de instituto que visa a quebra da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas que integrem determinado grupo para que passem a ser tratadas como se uma só pessoa jurídica fossem. Nesse tocante, ensinam Daniel Carnio Costa e Alexandre Correa Nasser de Melo 2:

“Na consolidação substancial, a autonomia patrimonial das sociedades recuperandas é afastada. Trata-se de fenômeno intimamente ligado ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica, na medida em que haverá a desconsideração das estruturas divisórias das várias pessoas jurídicas que integram o grupo econômico que ajuizou o pedido de recuperação judicial de forma conjunta.”

Justamente em paralelo ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica, chama atenção, a delimitação dos requisitos legais necessários para a consolidação substancial, impostos pelo caput e incisos do mencionado art. 69-J. Por primeiro, nota-se que a autorização para a consolidação substancial deve se dar quando constatada a “interconexão e a confusão entre ativos ou passivos dos devedores, de modo que não seja possível identificar a sua titularidade sem excessivo dispêndio de tempo ou de recursos”, em aparente correspondência à “confusão patrimonial” tratada pelo art. 50 do Código Civil.

Por outro lado, fácil perceber que as hipóteses tratadas pelos incisos refletem situações corriqueiras vivenciadas por grupos econômicos no geral e não casos de exceção configuradores de quebra de autonomia patrimonial das pessoas jurídicas. Isto porque, da análise do art. 50 do Código Civil e de seus parágrafos recentemente incluídos pela lei da Liberdade Econômica, conclui-se que a desconsideração da personalidade jurídica ocorrerá sempre que ficar constatado o abuso de personalidade jurídica, seja por confusão patrimonial ou por desvio de finalidade, mas mormente quando presentes intenção de fraudar credores ou praticar ilícitos.

A nosso sentir, a interconexão ou confusão mencionada pelo Art. 69-J da lei 11.101/2005, poderia/deveria ter sido tratada de forma mais clara e objetiva, sobretudo por conferir perigosa subjetividade à análise no que diz respeito ao trecho “excessivo dispêndio de tempo ou recursos”. A esse respeito, entendemos ter sido o legislador mais feliz, quando delimitou de maneira mais precisa as situações caracterizadoras de confusão patrimonial e de desvio de finalidade por meio dos §§ 1º e 2º do art. 50 do Código Civil 3.

Obviamente a consolidação substancial e a desconsideração da personalidade jurídica são institutos distintos mas que versam sobre mesma matéria e por isso, a nosso ver, podem ser interpretados sistematicamente a fim de conferir maior segurança jurídica às sempre excepcionais hipóteses de quebra da autonomia patrimonial da pessoa jurídica.

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1 Art. 69-K. Em decorrência da consolidação substancial, ativos e passivos de devedores serão tratados como se pertencessem a um único devedor. 

Art. 69-L. Admitida a consolidação substancial, os devedores apresentarão plano unitário, que discriminará os meios de recuperação a serem empregados e será submetido a uma assembleia-geral de credores para a qual serão convocados os credores dos devedores. 

2 Comentários à lei de Recuperação de Empresas e Falência, Editora Juruá, pág. 198.

3 Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

§ 1º  Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:

I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;

II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e

III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

Rafael Campos Macedo Britto
Advogado e professor universitário, especialista em Direito Empresarial, sócio proprietário do escritório Britto & Simões Advogados.

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