O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo em qualquer critério: econômico, educacional, social, político, etc. Mas, muitos não percebem que grande parte das desigualdades é gerada por leis e até pela Carta Magna. Vejam alguns exemplos.
Pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), um empregado infrator e demitido por justa causa recebe apenas o salário pendente e eventuais férias não gozadas. Pela Lei Orgânica da Magistratura, um juiz condenado por venda de sentença e outras faltas disciplinares graves é simplesmente aposentado para receber o seu salário integral (R$ 30 mil mensais ou mais) acrescido de reajustes ao longo do tempo.
Todos sabem que o salário inicial de um juiz de direito é de R$ 27.500,00 mensais garantido por lei. Você conhece algum advogado de empresa, recém-formado, que ganhe isso? É claro que as atribuições de um juiz são complexas e delicadas, pois envolvem a vida, a liberdade, o trabalho e o patrimônio das pessoas. Mas, bem além do salário inicial, estão os penduricalhos que fazem a remuneração final dos magistrados chegar e/ou ultrapassar o teto de R$ 39.000,00 fixado por lei. E, volta e meia, a imprensa nos assusta com os casos de magistrados que recebem grandes somas de tempos em tempos, sem falar nos 60 dias de férias por ano e mais uns 15 dias de recesso de fim de ano. Tudo garantido por lei.
Vejam este outro exemplo. Durante a pandemia, os trabalhadores contratados pela CLT tiveram que aceitar uma redução de jornada e de salário ou a suspensão do contrato de trabalho por força da Lei 14.020/2021 para não perder os empregos. Por força de leis específicas e de sentença do Supremo Tribunal Federal, os servidores públicos não estão sujeitos a esses expedientes por mais calamitoso que seja o orçamento dos órgãos em que trabalham. Aliás, a referida sentença foi dada nas barbas de mais de 10 milhões de brasileiros do setor privado que, em 2020, tiveram cortes de salário e suspensão do contrato de trabalho – e muitos perderam o emprego. É uma discriminação intolerável, mas tem base legal.
Os servidores públicos, de modo geral, desfrutam de proteções que os empregados do setor privado não têm: adicionais de salário por tempo de serviço (anuênios, quinquênios), licença-prêmio, estabilidade e aposentadoria com salário integral ou próximo dele. Tudo garantido por lei. A proposta de reforma administrativa que está no Congresso Nacional ataca distorções importantes, mas deixa de lado várias desigualdades gritantes do quadro de servidores atuais, em especial, dos Poderes Legislativo e Judiciário. Ou seja, também as novas leis prometem cultivar as desigualdades atuais.
Mais um exemplo. Depois do grande esforço para fazer a reforma previdenciária, em 2019, a Emenda Constitucional 103 manteve uma enorme diferença entre os valores da aposentadoria dos atuais servidores públicos e dos trabalhadores do setor privado com base no princípio constitucional do direito adquirido – ou privilégio adquirido. Na aposentadoria, os servidores públicos ganham em média, dez vezes mais do que os trabalhadores do setor privado – tudo dentro da lei.
Para não ficar apenas no setor público, há muitas outras fontes de desigualdade com base legal. As famílias ricas e de classe média alta pagam fortunas para seus filhos estudarem em escolas médias caríssimas e se livram de qualquer despesa quando eles entram numa universidade pública onde tudo é gratuito. É o que estabelecem as leis e a Constituição Cidadã.
Com a pandemia, as desigualdades se agravaram. A renda média dos trabalhadores que tiveram a sorte de continuar empregados caiu drasticamente. Os servidores públicos sofreram a “penalidade” de ter os valores de sua remuneração congelados até dezembro de 2021. Tudo garantido por lei.
Para citar exemplos do setor privado, lembro que, por força de lei, uma das categorias que mais ganham no Brasil trabalha apenas seis horas por dia e 30 por semana – os bancários.
Lembro também que, por força de lei, o desempregado solteiro ganha o mesmo valor de seguro desemprego que o desempregado casado e com vários filhos. Tem lógica?
Por força de lei foram criados mais de 1.000 novos municípios nos últimos dez anos, cuja maioria (90%) não se sustenta com recursos próprios, o que exige os aportes do Tesouro Nacional, portanto, dos brasileiros de menor renda – o povo.
Não se discute se tais leis são justas ou injustas. O fato é que elas criam uma enorme desigualdade e estimulam o ativismo de corporações bem aparelhadas para defendê-las e ampliar as benesses. Vejam o caso recente da aprovação de um Fundo Eleitoral de R$ 5,7 bilhões para cada eleição! Só não virou lei porque até o fechamento deste ensaio, o Presidente da República não sancionou. Mas, ao revelar seu descontentamento, disse que preferia aprovar “apenas” R$ 4 bilhões...
Não há espaço para arrolar os vários disparates legais que sustentam desigualdades inaceitáveis. Jean-Jacques Rousseau, no discurso sobre a origem das desigualdades (1762), disse bem: “Se me perguntarem como puderam os homens chegar a tanta desigualdade, eu não sei responder. Mas, se me indagarem como puderam tais desigualdades serem legitimadas, isso eu sei responder... A legitimação veio das convenções criadas pelos próprios homens. Afinal, o direito nada mais é do que o poder convencionado”.
Temos de ser realistas. Para o Brasil sair desse quadro de pobreza e desigualdade é imperioso corrigir as distorções apontadas - e muitas outras. É imperioso fazer profundas mudanças nas leis e na Constituição Federal. Isso significa que o combate às desigualdades será doloroso, pois implica reavaliar vários sonhos criados pelos Constituintes de 1987-88. A tarefa é difícil, mas não é impossível. Vários países mudaram princípios sacrossantos. Confúcio dava uma importante lição, dizendo que o governante precisa de armamento, alimento e apoio do povo para governar, quando um dos seus discípulos perguntou:
- E se eu não puder dispor dos três. De qual devo abrir mão?
- Abra mão do armamento, disse Confúcio.
- E se eu não puder dispor dos dois?
- Abra mão do alimento porque sem a confiança do povo é impossível governar.