Na sessão de julgamento do dia 23 de junho, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça desafetou o último recurso especial e cancelou o Tema 987, que tratava sobre a possibilidade da prática de atos constritivos em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução de dívida tributária e não tributária.
A desafetação veio no contexto da lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020, também conhecida como “Nova Lei de Falências”, que promoveu alterações na Lei de Falências de 2005 (Lei nº 11.101/2005). Entre as mudanças, destaca-se a regra contida no art. 6º, no sentido de que a decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica: i) suspensão do curso da prescrição das obrigações do devedor sujeitas ao regime desta Lei; ii) suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência; e iii) proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial ou à falência.
No específico caso da recuperação judicial, segundo o §4º do mesmo dispositivo, tal regra perdura por um prazo de cento e oitenta dias, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido com a superação do lapso temporal.
Trata-se do chamado stay period, que, apesar do alarde gerado com o advento da lei 14.112/20, não foi criado por ela. Em sua redação original, a Lei de Falências já previa o instituto.
De todo modo, esse período de sobrestamento da prescrição, das execuções e de qualquer forma de constrição de bens não se aplica às execuções fiscais, a teor do §7º-B do mesmo artigo 6º da Lei de Falências. Ou seja, grosso modo, o deferimento do processamento da recuperação judicial não obsta a execução fiscal, mas concentra no juízo da recuperação a competência para controlar os atos constritivos.
Mas se a nova lei não criou o stay period nem a sua inaplicabilidade às execuções fiscais, em que consistiu, então, a alteração legislativa?
Na verdade, a nova lei apenas positivou a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça quanto à competência do juízo recuperacional para tratar de demandas que afetem interesses e bens de empresas em recuperação judicial, notadamente no que se refere à constrição de bens1. Trata-se, assim, de uma reafirmação da universalidade do juízo recuperacional.
No mais, criou-se a possibilidade de prorrogação do período de sobrestamento, mas isto também não traz inovação para a realidade das execuções fiscais, pois inaplicável o stay period a tais feitos.
Feito este panorama, passemos ao tema 987 da sistemática dos recursos repetitivos no STJ, cuja questão jurídica central estava assim resumida: “possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal de dívida tributária e não tributária”.
Observado superficialmente, o resumo da questão jurídica submetida a julgamento não revela bem a amplitude do debate, que não diz respeito à suspensão ou não da execução fiscal, já que a não suspensão estava posta na lei original e se mantém na nova lei, mas sim à possibilidade da prática de atos constritivos em si. E sobre o tema, principalmente quanto ao impacto da nova lei, o STJ perdeu uma grande oportunidade para arrematar alguns itens essenciais, notadamente questões de competência, o formato da cooperação jurisdicional entre os juízos da execução e da recuperação e a aplicação da lei no tempo.
Quanto ao primeiro item, estava em discussão a competência da Primeira Seção, de Direito Público, ou da Segunda Seção, de Direito Privado, considerando que o tema transita entre a execução fiscal e a recuperação judicial. Nos termos do voto do Relator, Ministro Mauro Campbell, prevaleceu a competência da Primeira Seção. No entanto, o entendimento contraria precedente da Corte Especial no Conflito de Competência 153.998/DF (rel. p/ o Acórdão Ministra Nancy Andrighi), julgado em dezembro de 2019, em que se declarou a competência da Segunda Seção para “processar e julgar conflito de competência entre o juízo da recuperação judicial e o da execução fiscal, seja pelo critério da especialidade, seja pela necessidade de evitar julgamentos díspares e a consequente insegurança jurídica”.
Naquela ocasião, o Ministro Mauro Campbell restou vencido e, no julgamento do Tema 987, acabou fazendo prevalecer o seu posicionamento, no que foi seguido pelos Ministros Assusete Magalhães, Sérgio Kukina, Regina Helena Costa, Gurgel de Faria, Manoel Erhardt (Desembargador convocado do TRF-5ª Região), Francisco Falcão e Herman Benjamin. Desses, apenas o Ministro Sérgio Kukina havia participado daquele julgamento do conflito de competência, votando, inclusive, no sentido da competência da Segunda Seção (sentido contrário, pois, ao por ele votado no julgamento do Tema 987).
Ora, ao reconhecer a competência da Segunda Seção para processar e julgar conflito de competência que trazia o mesmo pano de fundo do Tema 987 (execução fiscal vs. recuperação judicial), e ao constar expressamente o critério de especialidade e de respeito ao juízo universal da recuperação, instaurou-se a competência da Segunda Seção não apenas para conhecer do conflito, mas para definir o mérito desse tipo de celeuma.
Inclusive, como consignou a Ministra Nancy Andrighi, condutora do posicionamento vencedor, “a controvérsia se cinge em definir se compete à Primeira ou à Segunda Seção a apreciação de conflitos instaurados entre o Juízo da Execução Fiscal e o Juízo da Recuperação Judicial na hipótese em que a discussão se restringe ao prosseguimento do processo executivo (ainda que com penhora determinada), sem pronunciamento do juízo da recuperação judicial acerca da incompatibilidade da medida constritiva com o plano de recuperação”. E mais: registrou que estava reafirmando o entendimento unânime assentado pela Corte Especial quando da apreciação de Questão de Ordem no CC 120.432/SP, julgado em setembro de 2012.
Aliás, tal conflito de competência merece especial atenção, na medida em que a questão submetida ao crivo da Corte Especial dizia respeito a “todos os conflitos que envolvem o binômio recuperação judicial e execução fiscal”, tendo prevalecido a competência da Segunda Seção.
Trata-se exatamente do cenário do Tema 987, que, assim, deveria ter sido submetido a julgamento da Segunda Seção ou, no mínimo, deveria ter processado de modo mais cauteloso, com a afetação da questão à Corte Especial. A competência da Segunda Seção é bem mais consentânea com a formação do juízo universal da recuperação, que se sobrepõe a outras sistemáticas, tais como a da execução fiscal, e atende melhor à ratio da legislação recuperacional. Decorre nomeadamente do art. 47 da lei 11.101/05 a ênfase no elemento econômico privado, sempre com o objetivo de viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira da empresa. Este é o primeiro e, portanto, mais marcante, dos três valores consagrados pelo referido dispositivo, ficando a manutenção do emprego dos trabalhadores, em segundo plano, e a manutenção dos interesses dos credores, em terceiro2.
Por fim, ressalte-se que esse imbróglio de competência no âmbito do STJ, inclusive com o atropelo de precedentes da sua Corte Especial, certamente irá reverberar na base, nos juízos de origem e seus respectivos tribunais de apelação, inclusive internamente, no âmbito da competência de órgãos especializados, quando haja. É justamente para evitar esse tipo de contradição interna nos tribunais, com efeitos negativos para as bases, que o Código de Processo Civil impõe a observância de orientação do plenário ou do órgão especial (art. 927, V). E, ainda que se trate de decisão de desafetação e cancelamento do tema que perpassa o reconhecimento de perda de objeto, é preciso preservar a autoridade das decisões da Corte Especial, submetendo-se o feito à Segunda Seção.
A falta de uniformidade quanto à competência nessa matéria é o primeiro elemento que nos traz um maior número de dúvidas e, por conseguinte, um maior nível de insegurança jurídica do que tínhamos antes do julgamento do Tema 987 pela Primeira Seção do STJ, algo que contribuirá para uma dispersão do tema e uma pulverização de orientações diversas em âmbito nacional.
No segundo artigo, seguiremos para a cooperação jurisdicional entre os juízos da execução fiscal e da recuperação no contexto da prática de atos constritivos em face de empresa recuperanda e a aplicação do §7º-B do art. 6º da nova lei de recuperações e falências no tempo.
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1 Nessa linha: “O STJ assentou o entendimento de que, tanto após o deferimento do pedido de recuperação judicial, quanto após a decretação da quebra, o destino do patrimônio da sociedade não pode ser afetado por decisões prolatadas por juízo diverso do que é competente para a recuperação ou falência. Nesse sentido: CC 79170/SP, Primeira Seção, DJe 19/09/2008; e CC 106.768/RJ, Segunda Seção, DJe 02/10/2009.” (CC 171374/AL, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 25/03/2020); “AgInt nos EDcl nos EDcl no CC 149.791/SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, Segunda Seção, DJe 09/09/2020); e “(...) Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é competência do Juízo Recuperacional para deliberar sobre atos de constrição ou alienação de bens e/ou valores da sociedade em recuperação” (AgInt no REsp 1760505/SP, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 25/05/2020, DJe 28/05/2020).
2 Essa ordem de prioridade na consecução dos fins da lei é trazida por Manoel Justino Bezerra Filho nos seguintes termos: (...) a Lei, não por acaso, estabelece uma ordem de prioridade nas finalidades que diz perseguir, colocando como primeiro objetivo a “manutenção da fonte produtora”, ou seja, a manutenção da atividade empresarial em sua plenitude tanto quanto possível, com o que haverá possibilidade de manter também o “emprego dos trabalhadores”. Mantida a atividade empresarial e o trabalho dos empregados, será possível então satisfazer os “interesses dos credores”. Esta é a ordem de prioridades que a Lei estabeleceu – o exame abrangente da Lei poderá indicar se o objetivo terá condições de ser alcançado. No entanto, a eficiência da Lei para o fim pretendido só se conhecerá com a prática no tempo, pois a avaliação final é feita pelos resultados efetivamente obtidos. Como lembra Jorge Lobo (Revista Forense 379), para a boa aplicação da lei deve haver ponderação de fins e princípios, sempre tendo em vista que a solução do conflito em si será casuística, condicionada pelas alternativas que se apresentem como hábeis para a solução do problema. Deverá o juiz sempre ter em vista, como orientação principiológica, a prioridade que a lei estabeleceu para a “manutenção da fonte produtora”, ou seja, recuperação da empresa. (Manoel Justino Bezerra Filho, Lei de Recuperação de Empresas e Falência, 2 ed. Revista dos Tribunais, e-book)