A objeção na execução (“exceção de pré-executividade”) e a Lei 11.382/2006
Eduardo Talamini*
(I) as normas constitucionais que consagram o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa em todas as formas processuais (CF, art. 5.o, LIV e LV);
(II) a circunstância de a execução enquadrar-se na atividade jurisdicional, submetendo-se a seus princípios essenciais: o contraditório é tão relevante para o direito processual que certos autores chegam a afirmar que só existe processo (e não mero procedimento) quando incide aquela garantia;
(III) o princípio do menor sacrifício do devedor (CPC, art. 620): seria absurdo sustentar que, ao mesmo tempo em que se assegura ao executado a não imposição de onerações desnecessárias, não lhe são dados instrumentos para exercer esse direito.
O equívoco da antiga afirmação de que não haveria contraditório na execução residia em não se perceber que o que não existe é discussão quanto ao mérito da pretensão de crédito do exeqüente. Ou seja, o juiz não investiga, dentro da execução, se o exeqüente tem ou não razão quando afirma que possui o crédito. O que não há é debate quanto a tal matéria. Essa discussão já terá ocorrido em ação de conhecimento anterior, em que houve a condenação, ou acontecerá em embargos à execução (que constituem ação própria, geradora de processo de conhecimento) ou ainda ocorrerá em impugnação ao cumprimento da sentença (também uma demanda cognitiva, geradora de uma fase própria, incidental à execução do título judicial de pagamento de quantia).
Feita essa ressalva, tem de se reconhecer que há contraditório na execução:
(I) para que se garanta a devida observância do princípio do menor sacrifício ao devedor. Não fosse assim, o princípio seria letra morta. Imagine-se que, depois do momento de oposição dos embargos à execução, o bem penhorado recebe avaliação inferior à correta. Exigir-se que o executado aguarde até a alienação judicial do bem para só então poder argüir o defeito (através de embargos à arrematação ou em ação autônoma) significaria dizimar aquela garantia;
(II) para que se suscitem as questões que o juiz poderia até conhecer de ofício (pressupostos processuais, condições da ação, validade dos atos da execução). Vigora na execução a regra que determina o dever de conhecimento pelo juiz, a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, das questões de ordem pública: pressupostos processuais, condições da ação e nulidades absolutas. É o que se extrai dos arts. 267, §3º, e 301, §4º, c/c art. 598 ; arts. 580, 586 e 618; art. 475-R, todos do Código de Processo Civil (clique aqui). Se cabe ao juiz conhecer tais questões de ofício, nada impede ao executado que aponte ao magistrado a existência delas. Seria ilógico dizer que o juiz pode conhecer dessas matérias na execução, mas a parte não tem o direito de suscitá-las: todo poder conferido ao agente público traz consigo o dever de seu exercício (função) – e as partes têm o direito de provocar o cumprimento desse dever.
Todas essas matérias podem ser suscitadas e discutidas pelo executado a todo tempo na própria execução, independentemente de embargos ou de impugnação ao cumprimento. (Quanto a uma definição mais precisa dos limites de defesa do executado dentro da própria execução, reporto-me a escritos anteriores meus: “A determinação do valor do crédito por simples cálculo”, em Atualidades sobre liquidação de sentença, org. Teresa Wambier, São Paulo, RT, 1996, n. III.1, e Coisa julgada e sua revisão, São Paulo, RT, 2005, n. 8.9.)
Por outro lado, e pelos mesmos fundamentos, também ao exeqüente é dado participar, em contraditório, de todos os atos e etapas do procedimento executivo.
À possibilidade de o devedor formular defesas (que seriam conhecíveis de ofício) dentro da própria execução, independentemente de embargos ou impugnação ao cumprimento, tem-se dado o nome de “exceção de pré-executividade”. O nome não é apropriado. Primeiro, porque se trata da alegação de matérias conhecíveis de ofício pelo juiz. Portanto, é uma objeção (i.e., defesa que versa sobre tema cognoscível ex officio) e não exceção (defesa atinente a matéria que depende de argüição pela parte interessada). Ademais, tal alegação ocorre já no curso do próprio procedimento executivo, inclusive depois de praticados atos de execução propriamente dita. Então, não consiste necessariamente em uma argüição pré-executiva, no sentido de anterior aos atos executivos. Um nome preferível poderia ser objeção na execução.
Mas esse entendimento desconsidera três aspectos fundamentais:
(1º) - no cumprimento de sentença (execução do título judicial) a penhora continua sendo requisito para o cabimento da impugnação, de modo que em tal procedimento a objeção na execução permanece sendo o modo de se viabilizar a argüição de defesas de ordem pública sem a necessidade de penhora;
(2º) - a objeção na execução pode ser suscitada a todo tempo no curso do procedimento, diferentemente dos embargos e da impugnação, cuja interposição submete-se a prazo preclusivo – de modo que, mesmo no âmbito da execução do título extrajudicial, cuja defesa típica (embargos) ora dispensa penhora, a objeção na própria execução revela-se medida útil e adequada para o executado especialmente para argüir matérias conhecíveis de ofício depois de já decorrido o prazo para embargar (apenas não poderão ser argüidas por tal via defesas já veiculadas e rejeitadas por sentença de mérito nos embargos ou na impugnação). Aliás, as mudanças implementadas pela Lei 11.382 no Livro II do Código tendem a ampliar o número de objeções formuladas depois do momento oportuno para embargar a execução. Tanto a penhora original quanto outras, fruto de reforço ou substituição daquela, poderão ocorrer depois do decurso do prazo para embargos à execução (embargos de primeira fase). Como não há mais vinculação entre penhora e embargos (antes a cada intimação da penhora, abria-se uma oportunidade para embargar), para alegar um defeito na penhora (por exemplo, impenhorabilidade absoluta) mediante embargos, o executado teria de esperar o momento de oposição dos embargos de segunda fase, ou seja, teria de embargar apenas depois de o bem penhorado já ter sido objeto de arrematação, adjudicação ou alienação por iniciativa privada. Então, será muito razoável que o executado não aguarde o próprio bem ser expropriado para apenas então indicar que ele nem sequer poderia ter sido penhorado: poderá – e será até mais salutar à eficiência da execução – desde logo argüir o defeito no próprio processo executivo, mediante objeção.
(3º) - além disso, em todo e qualquer caso, a oposição de embargos ou de impugnação ao cumprimento é sempre mais complexa e onerosa do que a simples argüição na própria execução. Como exemplo, imagine-se a hipótese em que o executado dispõe de elementos instrutórios aptos a demonstrar de plano a falta de uma condição da ação ou pressuposto processual da execução, mas ainda precisa de mais tempo para reunir subsídios para defender-se quanto ao mérito da pretensão creditícia. Nesse caso, ele pode optar por apresentar a objeção imediatamente ao juiz da execução para assim obter, o quanto antes, a extinção da execução, de modo a evitar a penhora de bens seus. Note-se que, embora a penhora não constitua mais requisito para os embargos, ela continua sendo cabível logo na fase inicial da execução – e os embargos, mesmo quando excepcionalmente receberem efeito suspensivo, se opostos antes da penhora, não impedirão sua realização.
Portanto, permanece existindo objeção na execução (“exceção de pré-executividade”). E nem poderia ser de outro modo. Não há lei que revogue a incidência na execução das garantias constitucionais do processo. Não há lei que revogue a inserção da execução na teoria geral do processo. A objeção na execução não é mais do que decorrência desses dois aspectos irrevogáveis.
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* Advogado do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados