Migalhas de Peso

A vítima e o arquivamento do inquérito policial

Aos advogados, frente ao desarrazoado do sistema penal, até mesmo na defesa dos interesses de ofendidos de crime, resta a perseverança sugerida por Albert Camus, de maneira poética: “No meio do inverno descobri, dentro de mim, um verão invencível”.

9/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A construção dos direitos individuais depende da militância do advogado. Daí a classe não poder se resignar quando lê repetidas decisões judiciais que expressam absoluta desconsideração à dignidade humana (art. 1º, III, da CR).

Curioso observar como a jurisdição penal passou a desprezar o papel da vítima no processo penal nos últimos tempos. Isto, muito embora o legislador tenha enunciado direitos para o ofendido, na primeira fase da persecução penal, desde o Código de Processo Penal de 1941 e o constituinte de 1988 haver assentado o direito à jurisdição de quem sofre lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, da CR). 

A lei processual penal conferiu à vítima o direito de requerer a instauração do inquérito policial (art. 5º, II, do CPP). Depois, garantiu-lhe o direito de ser ouvida pela autoridade policial (art. 6º, IV, do CPP). Por consequência, também lhe facultou indicar diligências para apuração de materialidade e autoria delitivas no curso do procedimento investigatório (art. 14, do CPP).

A vítima pode pedir a busca e a apreensão (art. 242, do CPP), bem assim medidas assecuratórias para proteção do patrimônio (art. 127, do CPP), inclusive. E, a inércia do titular da ação penal pública (art. 24, do CPP) autoriza a propositura da queixa subsidiária pelo ofendido (art. 29, do CPP), ou por quem tenha qualidade para representá-lo (art. 30, do CPP).

Note-se que todos os referidos direitos podem ser exercidos, antes mesmo do oferecimento da ação penal. Deduzida a denúncia em juízo, o ofendido tem a possibilidade de ser habilitado como assistente do acusador público, momento em que se verá apto a “propor meios de prova, requerer perguntas às testemunhas, aditar libelo e os articulados, participar do debate oral e arrazoar os recursos” (art. 271, do CPP). 

Essa gama de dispositivos legais, assegurados a quem sofre com a perpetuação de uma infração penal, deveria levar a concepções abertas que compreendam o direito do particular ofendido a: (i) ver o fato investigado; (ii) acompanhar a investigação criminal e de requerer provas no inquérito policial; (iii) devido procedimento de inquérito policial; e (iv) decisão judicial fundamentada na hipótese de arquivamento.

A questão do arquivamento do inquérito policial encontra-se viva, diante da nova redação do artigo 28, do CPP (art. 3º, da Lei 13.964/19) estar suspensa por liminar na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.298/DF, do Supremo Tribunal Federal. E deve continuar o problema, após o julgamento, o qual deve tender a reconhecer a inconstitucionalidade de se retirar o controle jurisdicional para se pôr fim à persecução penal. Afinal, para dizer o mínimo, perdem segurança jurídica investigados e vítimas.   

Exatamente, no sentido oposto do que se deveria dispor no tocante à implantação do juiz de garantias, tal previsão presenteou o Ministério Público com exacerbado poder de resolver o final da investigação criminal, sem se submeter à regra da reserva de jurisdição, sem ter de obedecer à força da coisa julgada – ainda que coisa julgada formal – da decisão judicial de arquivamento do inquérito policial.

Cabe destacar que até o texto suspenso do artigo 28, do CPP, dá ao particular ofendido o direito de se manifestar sobre o arquivamento, submetendo a questão à instancia superior ao promotor natural que tenha determinado o encerramento do inquérito policial, sem propositura de denúncia.  

Na verdade, há má compreensão quanto ao sentido jurídico da decisão de arquivamento, a qual tem natureza de sentença, pois encerra o procedimento administrativo destinado à apuração do crime e autoria (Cf.: Pitombo, Sérgio Marcos de Moraes. Obra em processo penal. São Paulo: Singular, 2018, p 153).   

Inaceitável, assim, decisão de arquivamento que somente venha a concordar com as razões expostas pelo Ministério Público. O juiz penal - melhor será o juiz de garantias – controla a legalidade da persecução penal o tempo todo. Não age subserviente à manifestação do acusador público, nem se mostra burocrático diante de eventuais omissões, ou exageros, da polícia judiciária.

É juiz de Direito, que se sobrepõe a todos os envolvidos na persecução penal, no interesse de desvendar a verdade sobre o fato e de distribuir justiça. Protege vítima, indiciado, testemunhas e respectivas famílias de atos não conformes à lei e à Constituição da República, os quais possam ocorrer na fase de investigação criminal. Esqueçam-se os dogmas estrangeiros, porque o sistema brasileiro não se exibe acusatório puro, logo, maior ainda a responsabilidade do magistrado na fase de inquérito policial.

Em suma, quando o juiz criminal decide, por sentença, pelo arquivamento do inquérito policial, necessita de ofertar motivação explícita (art. 93, IX, da CR, art. 381, do CPP e art. 489, do CPC).

Nesse sentido, quando se arquivam procedimentos investigatórios na pendência de provas pertinentes e relevantes para a formação da culpa, ou sem motivos de fato e de Direito, é manifesto o direito da vítima e dos familiares de buscar tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CR).

Na ausência de recurso, previsto na legislação, contra a decisão de arquivamento, surge claro o direito líquido e certo da vítima de pedir controle jurisdicional de segundo grau, por meio da impetração de mandado de segurança. Repise-se: a vítima ostenta direito de ver o fato investigado, por meio de atos ordenados (art. 6º, do CPP), voltados a encontrar prova de materialidade e indícios de autoria. No mínimo, tem direito de compreender o porquê de faltar justa causa para a ação penal e de entender as razões judiciais para finalizar a atividade instrutória.    

Em Estado Democrático de Direito, estranho seria que a ofendida de grave crime sexual, ou familiar de vítima de homicídio, recebesse de seu advogado papelucho de uma página, com timbre do poder judiciário, no qual apenas encontrasse escritos singelos três parágrafos com a concordância às conclusões superficiais do acusador público.  

Pior, ainda, se constituiria a situação se, questionado o mesmo advogado, este houvesse de dizer que inexistiria medida judicial diante do descumprimento de tantos dispositivos legais e da afronta aos direitos da vítima e parentes. Não haveria nem duplo grau de jurisdição, infelizmente. 

“Que país é esse?” - alguém poderia perguntar, nos corredores do Superior Tribunal de Justiça, cujos julgados nessa matéria nem sequer conhecem dos referidos writs, numa repetição irrefletida dos assessores, desapercebida por bons ministros. Dessa forma, as estatísticas reduzem o número de mandados de segurança e recursos ordinários na Corte, mas se semeiam injustiças, em muitos cantos, para maior padecimento das vítimas de infração penal.

Aos advogados, frente ao desarrazoado do sistema penal, até mesmo na defesa dos interesses de ofendidos de crime, resta a perseverança sugerida por Albert Camus, de maneira poética: “No meio do inverno descobri, dentro de mim, um verão invencível”. 

Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo
Advogado, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Advoga no escritório Moraes Pitombo Advogados.

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