Em 2019 defendi a tese de doutoramento no PPGD da UNICAP – Universidade Católica de Pernambuco sobre o Fracionamento Decisório, o que o ordenamento processual positivou como Decisão Parcial, com a possibilidade de fracionamento da jurisdição em si, com a resolução de parcela do que se pleitou, seja com mérito (art. 356 do CPC), seja sem mérito (art. 354, parágrafo único do CPC).
A tese foi transformada em 2020 em uma versão comercial com o título de A decisão parcial e as questões de fato, com alguns acréscimos significativos e uma análise geral sobre o fracionamento decisório, os seus requisitos, a sua construção e os impactos processuais posteriores.
A partir disso, diversos assuntos paralelos e específicos sobre o tema não são debatidos e trazidos à tona, por vezes ficando de maneira lateral ou esquecida e, diante disso, o intuito é preparar uma série de 10 textos, além deste de abertura, sobre a decisão parcial e alguns aspectos sobre a sua possibilidade no processo.
Iniciando a série, é importante entender o que seria o fracionamento decisório e a possibilidade de prolação de uma decisão parcial.
O primeiro ponto passa por entender o objeto do processo possível numa demanda.
Um processo pode ser simples ou objetivamente complexo. Por simples entende-se uma pretensão deduzida que tem como partes um autor e um réu, com somente um pedido. Diante de uma hipótese como essa, o transcorrer procedimental é uno, com uma unidade em busca da resolução das questões cognitivas – quaisquer delas – para culminar no ato sentencial resolutivo de mérito, ou, excepcionalmente, julgar extinto sem mérito.
Por outro lado, um processo objetivamente complexo é aquele que os pedidos ou partes são plurais. Por pluralidade de partes significa a existência de mais de um componente em um ou ambos os polos da demanda. Já no tocante aos pedidos seria a cumulação de mais de um pedido naquela pretensão. Em qualquer das duas pluralidades, o processo tem uma série de demandas a serem expostas ao mesmo tempo, com a necessidade de que o juízo enfrente e responda todas as questões existentes e, posteriormente, os pleitos ali realizados, pela própria completude da jurisdição, mesmo diante de uma complexidade das relações jurídicas plurais.
Pela temática enfrentada ser exatamente a complexidade objetiva do processo, diante da formação de uma pluralidade de relações jurídicas naquela pretensão, enfrentou-se as cumulações e suas espécies, no intuito da diferenciação entre as espécies e uma melhor definição conceitual de cada qual, justamente para uma interligação posterior com o fracionamento decisório.
A pluralidade de partes – fora o litisconsórcio unitário – enseja também uma pluralidade de relações jurídicas em juízo, com cada qual representando um objeto diverso e, por isso, necessário de ser considerado para os argumentos de cada uma das partes, em cada um dos polos, relacionando com as outras partes individualmente, seja em sua construção narrativa fática, seja na produção de provas, seja nos demais atos processuais até a sentença.
Qualquer que seja a cumulação existente no processo o transforma em uma cumulação de objetos a serem decididos, tornando-o complexo em sua processualidade e, ainda, na quantidade de relações jurídicas a serem decididas.
Um processo complexo objetivamente pode ser cindido, com a possibilidade de prolação de uma decisão parcial, seja sem resolução de mérito, seja com resolução de mérito. No entanto, quais seriam os critérios para que a lei, diante dos arts. 354, parágrafo único e 356 do CPC, constrói para a autorização da cisão cognitiva e procedimental, com a decisão parcial? Esse é o cerne do problema.
Qualquer processo contém uma série de questões a serem decididas e, nesse ponto, é importante o estudo da cognição judicial.
A cognição judicial está calcada no trato de questões, enfrentamento sobre diversas questões necessárias para que o juízo possa conhecer, enfrentar e resolver pontos cruciais para o desenvolvimento da demanda. As questões não se apresentam de modo estanque, com divisões possíveis de enquadrá-las facilmente, podem ser divididas entre questões de fato e de direito, incidentes e principais, preliminares e prejudiciais, dependendo sempre do prisma que se tenha para a análise, podendo, para tanto, ser um misto de cada ponto dessa divisão.
A análise cognitiva deve ocorrer à medida que as questões aparecem no processo e são necessárias de enfrentamento para possibilitar o desencadear do procedimento. Evidentemente que há uma lógica nessa organização das questões, como as questões prévias, aquelas que são, necessariamente, analisadas de modo anterior ao mérito.
Essas premissas são necessárias de serem postas e definidas: (i) qualquer demanda tem divisão entre cognição sobre as questões de admissibilidade e questões de mérito; (ii) qualquer cognição de mérito se subdivide entre cognição fática e jurídica. Para o desenvolvimento da consequência da complexidade objetiva do processo e as questões de fato, considera-se a divisão entre questão de fato e de direito como possível, apesar de difícil, em dois polos: (i) a existência de controvérsia sobre algum ponto de fato necessário para a subsunção; (ii) a necessidade de instrução probatória sobre essa questão para possibilitar a subsunção.
A atividade do juízo se dividirá, ao menos procedimentalmente, em um momento para definição das questões de fato, com a necessidade, ou não, da instrução probatória e, após a definição destas, o início da resolução das questões de direito, com a subsunção pertinente para a resolução das questões e a aptidão para a decisão da demanda, aquela que terá o condão de formar coisa julgada.
Mas, as questões de fato não perfazem capítulos da demanda, somente trabalham diante de uma cognição judicial necessária para definição da narrativa fática a ser considerada como um suporte fático concreto. O problema a ser enfrentado é se existe a relação entre complexidade objetiva do processo e a sua relação com as questões de fato.
A possibilidade de cisão cognitiva de um processo objetivamente complexo passa pela resolução de questões de fato e a abertura para que parcela do processo seja julgado antecipadamente e o restante do processo ainda necessite de produção de provas, com a postergação para um momento posterior.
Quanto mais complexo objetivamente for um processo, a tendência é existir mais questões de fato a serem enfrentadas, o que importa em uma pluralidade de questões de fato. E o modo com que estas se relacionam com cada capítulo da demanda é importante para o estabelecimento da influência em cada matéria, em cada pedido.
Todavia, não basta que haja uma complexidade objetiva no processo, com pluralidade de pedidos ou de partes nos polos, outros requisitos são pertinentes, o que se torna o problema desta pesquisa: a fixação de requisitos para a prolação de uma decisão parcial, com o fracionamento decisório no processo objetivamente complexo.
Para essa construção perceptiva dos requisitos configurativos de uma situação de bifurcação cognitiva há a necessidade de relacionar o processo objetivamente complexo com a pluralidade de questões de fato, uma vez que estas que serão resolúveis ou não e, dessa maneira, possibilitarão a ocorrência de um fracionamento decisório.
A cisão cognitiva e o fracionamento decisório são inerentes ao próprio processo objetivamente complexo, mas dependem de uma pluralidade de questão de fatos a serem resolvidas, uma vez que somente constando uma questão de fato na demanda, com duas relações jurídicas, com ambas dependendo de tal resolubilidade, quando esta sobrevier, o processo estará pronto para a prolação da sentença.
Consequentemente, há a necessidade no processo objetivamente complexo que haja uma pluralidade de questões de fato, para, após a percepção cognitiva sobre estas e suas possíveis resolubilidades e impactos em cada capítulo, entender como possível o fracionamento decisório.
Em qualquer processo, a resolubilidade da questão de fato é antecedente às questões de direito, com a necessidade de uma cognição prévia num caminho anterior a ser seguido para conceder a aptidão à resolução da questão de direito e, posteriormente, a decisão como um todo. Quando um processo for complexo objetivamente, seja pela cumulação de pedidos, seja pela pluralidade de partes em um dos polos, o processo será dividido em capítulos para serem resolvidos de modo autônomo.
Numa hipótese de um processo complexo objetivamente, cada capítulo terá uma relação própria com as questões de fato, seja uma relação com uma questão ou com várias questões. E, ainda, essa questão de fato pode ser impactante para diversos capítulos concomitantemente, sem necessariamente ser uma relação de modo fechado e estanque com um só capítulo.
Há, portanto, uma grande dinâmica complexa entre as relações jurídicas a serem solucionadas e a quantidade de questões de fato que lhe subsidiarão.
As questões de fato existentes num processo objetivamente complexo podem ser plurais ou somente uma, o que não ensejaria um fracionamento, mesmo com a complexidade do processo, como exposto. Para que os capítulos decisórios sejam fracionáveis necessita-se de duas possibilidades inter-relacionais com as questões de fato e os capítulos: (i) pluralidade de questões de fato e interligação específica de cada pedido com um fato; (ii) pluralidade de questões de fato, com uma destas com impacto em ambos os pedidos e uma outra questão de fato que impacta somente um dos pedidos.
Sobre a cisão cognitiva e o fracionamento decisório, esse é um ponto relevante para a construção dos requisitos para a ocorrência da decisão parcial. Mesmo diante de um processo complexo objetivamente, o que determinará a possibilidade de cisão será a relação da demanda e de seus capítulos decisórios autônomos com as questões de fato, seja da própria demanda, seja de situações específicas, como fatos atinentes a um pressuposto processual específico.
Para tanto, há de se separar a complexidade objetiva do processo e as questões de fato da relação entre cada capítulo, a sua complexidade entre admissibilidade e mérito e as questões de fato inerentes à admissibilidade.
Dessa feita, os requisitos construídos como pertinentes para a cisão cognitiva e o fracionamento decisório são: (i) a complexidade objetiva do processo por cumulação de pedidos ou pluralidade de partes; (ii) a pluralidade de questões de fato; (iii) a resolubilidade ou estabilização via incontrovérsia de uma questão de fato e pendência de, no mínimo, outra questão de fato; (iv) a dependência de parcela do processo somente da questão de fato já resolvida/estabilizada.
Por mais que o ordenamento processual não mencione nada sobre a relação da questão de fato e a possibilidade da prolação de decisões parciais, cisões cognitivas e fracionamentos decisórios, evidentemente que a pluralidade de questões de fato e resolubilidade parcial destas são igualmente requisitos possibilitantes e autorizantes para o julgamento parcial de uma demanda que for complexa objetivamente nos moldes do exposto, com a necessidade da construção inter-relacional entre os dois institutos permissiva para o fracionamento.
Para a prolação de uma decisão parcial com mérito, os requisitos devem estar presentes e a possibilidade de julgamento parcial daquela determinada parcela da demanda, relacionando com as questões de fato que autorizam essa cognição exauriente parcial, diante da construção narrativa feita pelo autor e contraproposta pelas possíveis atitudes do réu, permitindo, para tanto, a bifurcação cognitiva.
Todavia, para uma decisão parcial sem mérito há uma notória diferença sobre as questões de fato, com essas divididas entre dois vieses, um deles quanto à narrativa fática do autor, do mesmo modo de qualquer outra decisão, mas com a existência de questões de fato específicas sobre as hipóteses impeditivas de continuidade do processo, com a extinção daquela parcela do pedido.
Por fim, as questões de fato são tão importantes para o fracionamento decisório e a prolação de uma decisão parcial quanto a complexidade objetiva do processo.