Migalhas de Peso

Democracia cibernética?

Quais os impactos do descompasso entre o desenvolvimento tecnológico e seu efetivo uso e acesso da população? O presente artigo visa refletir o cenário de nossa “àgora digital”.

29/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A compreensão da ideia de democracia sofreu fortes transformações a partir do desenvolvimento da internet e de todas as suas ferramentas decorrentes. As modificações estão desde as campanhas políticas, que permitem ao eleitor estar a apenas a um clique de distância do seu candidato, como também, na própria relação do sujeito com a sua cidadania. Mas podemos realmente dizer que vivemos em uma democracia cibernética?

A modalidade de governo instituído hoje no Brasil parte do pressuposto que as decisões políticas são tomadas com base na vontade do povo, ainda que concretizadas indiretamente. Abandonamos a ideia de democracia direta construída na Grécia Antiga para dar lugar a um movimento de participação indireta, levada a cabo pelo instrumento do voto. Assim, em nossa democracia, os assuntos de interesse coletivo são discutidos através dos representantes eleitos para tal.

Curiosamente, na Constituição da República, publicada em 1988, após regime militar, ainda que reconhecidamente prolixa, a palavra “democracia” não aparece uma só vez, em que pese a instituição do Estado Democrático de Direito.

Apenas na Declaração Universal da Democracia, assinada em 1997 por representantes de 128 países, dentre eles, o Brasil, que a ideia de democracia é definida como um “direito básico de cidadania, a ser exercido em condições de liberdade, igualdade, transparência e responsabilidade, com o devido respeito à pluralidade de pontos de vista, no interesse da comunidade1.

De todo modo, é necessário analisar o conceito de democracia frente à nova realidade digital. Até recentemente, o eleitor que era apenas um receptor passivo de conteúdo do candidato, via mídias analógicas, passa para a imersão em redes em que se torna um sujeito ativo com poderes para colaborar e exigir, por meio das mídias digitais, demonstrando um exemplo claro de como as transformações tecnológicas afetaram o exercício democrático.

Nesse mesmo sentido, a título ilustrativo, as campanhas políticas que eram exercidas nas ruas, por meio do contato direto, hoje são feitas por meio de lives em aplicativos e até os debates entre eleitores são feitos por meio de videochamadas. O que se observa, entretanto, é a essencialidade de ciberespaços para a realização da democracia plena. A partir disso, “o ideal da democracia direta terá finalmente se tornado possível, justamente através de novas tecnologias, substituindo assim a democracia representativa que nos acompanhou nos últimos séculos?2

Na verdade, a tradicional concepção de que a democracia se delineia por meio do alinhamento entre a vontade do povo e seus ditames políticos, dotada de uma relação esporádica e cíclica, não abarca a complexidade da sociedade contemporânea, na medida em que, o contato entre governantes e governados se torna desmediatizado, instantâneo e em constante vigilância.

Argumenta-se ou até mesmo, esperava-se que a tecnologia se tornasse instrumento potencializador da cidadania, da política e até, da representatividade, traduzindo-se em efetivo sinônimo de poder. Mas a alteração do locus para o exercício da cidadania não veio necessariamente acompanhada da inclusão digital. Assim, paradoxalmente, tem-se que as novas tecnologias, promotoras da democracia não são democráticas per si, ao menos na realidade brasileira.

De acordo com o IBGE, 40 milhões de brasileiros não possuem acesso à internet 3. A marginalidade digital se revela ainda mais assustadora se considerarmos a exclusão instrumental, isto é, mesmo aquelas pessoas que têm acesso à internet, não possuem os equipamentos devidos, pois, não detém recursos para pagar pelo serviço. Observa-se que para o atingimento completo do acesso às tecnologias, para além de aspectos ligados à necessária alfabetização e barreiras do uso excessivo de estrangeirismos, diversas noções ligadas ao acesso à tecnologia devem ser tuteladas, evidenciando o seu aspecto antidemocrático 4.

Podemos perceber que apesar do advento da tecnologia ter trazido a pretensa ideia de amplificação dos espaços democráticos, para grande parte da população brasileira, o que ocorreu, na verdade foi o esvaziamento do conceito de democracia e uma crise de representatividade. Isso porque, à medida em que existem expressivos grupos de indivíduos afastados dos ambientes digitais, essas pessoas também não conseguem expor suas necessidades, para efetividade das políticas públicas.

Dessa forma, a ideia de “ágora 5 digital” que a internet trouxe nos remonta à época em que parte da população não era considerada como cidadão – mulheres, negros e escravos – ou seja, as satisfações e necessidades eram ditadas por apenas uma parte da comunidade que tinha voz para exercer o poder. Assim, a ágora digital se revela efetivamente virtual, isto é, meramente simulada e sem ligação com a realidade. Não à toa, ainda que uma pluralidade de indivíduos esteja inserida em ciberespaços, grupos comumente se fecham em suas próprias echo chambers 6, dando azo a radicalismos e completa ausência de debates democráticos.

Consequentemente, ao invés de ampliar o debate e proporcionar o pluralismo de ideias, os espaços virtuais propiciam uma visão reducionista e autocentrada do mundo. Soma-se ao fato de que os algoritmos embutidos nas redes ao coletar, compilar e perfilar seus usuários intensificam as polarizações sociais, pois fornecem apenas aquilo que acreditam que determinados nichos queiram ver, ou seja, a informação é personalizada de acordo com os interesses daqueles que as buscam.

Deslocando o eixo de representados para representantes, esse debate suscita ainda mais atenção quando o próprio governo exige o acesso à internet para ter alcance a direitos e espaços, como por exemplo, o auxílio emergencial devido à pandemia do Covid-19 7. A única forma que o governo cogitou em disponibilizar o valor mensal foi por meio de aplicativos em smartphones, porém, como sustentar essa política em um país com pessoas sem acesso à tecnologia? Observa-se que o isolamento daqueles desprovidos de tecnologia é atemporal a qualquer pandemia. Afinal, se o objetivo fosse efetivamente evitar aglomerações em tempos de pandemia, as agências bancárias e lotéricas não permaneceriam lotadas em dias de disponibilização dos valores para saques.

Em todas as esferas a cidadania é ameaçada. Na educação não é diferente. Mesmo após um ano e meio de pandemia, existem crianças ainda sem aulas, porque não conseguem ter acesso à internet ou ao único aparelho eletrônico da família 8. Isso fica ainda mais sensível ao analisar que no Brasil, tivemos uma queda de 7,7% no número de alunos na educação de jovens e adultos (EJA) em 2019 9. A consequência dessas circunstâncias é um inevitável ciclo vicioso, tendo em vista que essa pessoa em formação não conseguirá, no futuro, ser inserida nas redes, em razão da barreira linguística e mais uma vez, sub-representada.

Ainda que a ONU, em 2014, tenha dito que o acesso à internet é um direito humano do século XXI e no mesmo ano tenha sido editado o Marco Civil da Internet no Brasil, a realidade brasileira nos demonstra que estamos muito longe da concretização dessa premissa.

Isso porque a internet não é democrática per si, e só poderá ser democrática, quando se tornar acessível à população e, por meio do compartilhamento de informações reais, sem influências das ações algorítmicas enviesadas, de modo a promover as potencialidades do meio e o livre desenvolvimento da pessoa humana. Estes aspectos se demonstram tão necessários quanto aos atuais debates envolvendo a privacidade e a proteção de dados pessoais de indivíduos na internet.

Na medida em que concentramos as informações mais relevantes em um único meio e esse instrumento está afastado de boa parte das pessoas, geramos a assimetria de informações, remando na contramão do que se pressupõe da ideia de democracia.

Não há como ser cidadão sem informação clara e verdadeira, uma vez que, para todo o exercício da democracia, o ser humano precisa estar imbuído do máximo de subsídios possíveis, a fim de que ele possa exercer seus direitos democráticos de forma digna. Enquanto inserido em espaços virtuais, nesse sentido, deve ser dotado de efetiva educação midiática, capaz de mitigar os efeitos nefastos das fake news, atualmente vistas como principal fenômeno de manipulação da autodeterminação da pessoa humana. Orientado da maneira correta e instruída, o indivíduo se torna capaz de participar ativamente da sociedade, por meio de movimentações políticas, controle social e escolha de representantes que consigam promover as políticas públicas que o atenda. Afinal de contas, “a democracia morre quando há escuridão10.

A partir do momento que verificamos que a tecnologia transformou estruturalmente as relações entre representantes e representados e a própria ideia de democracia, devemos nos debruçar sobre essa temática que representa um pilar do Estado Brasileiro, antes que seja demasiadamente tarde e que já estejamos longe da nossa tão estimada cidadania.

Respondendo a questão inicial, observamos que ainda estamos longe de termos uma democracia cibernética no Brasil. Apesar das concepções de cidadania e do exercício democrático estarem intimamente associados à conexão virtual, este mero acesso à rede mundial de computadores e o próprio poder de voto não se demonstram suficientes. Precisamos compreender que a participação efetiva em um sistema democrático multifacetado é ter a oportunidade de interagir, compartilhar e ter acesso integral a um plexo de ideais e informações que sejam capazes de promover a isonomia e potencializar o exercício da cidadania.

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1 SENADO FEDERAL. Declaração universal da democracia: resolução A/62/7 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas - ONU, setembro de 2007. Disponível aqui. Acesso em: 05.06.2021

2 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 160.

3 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE INTERNET. IBGE: 40 milhões de brasileiros não têm acesso à Internet. Disponível aqui. Acesso em: 07.06.2021

4 Assim, para que seja possível o acesso à Internet, primeiramente se faz necessário que o consumidor possua uma assinatura de prestação de serviços de telefonia, que possibilitará, através do uso do modem, o acesso à World Wide Web. A segunda relação de consumo que se estabelece é com o fornecedor de serviço de provedor de acesso. MULHOLLAND, Caitlin. Internet e contratação: panorama das relações contratuais eletrônicas de consumo. Renovar: Rio de Janeiro, 2006, p. 96.

5 Ágora é um termo de origem grego utilizado para descrever uma reunião geral de pessoas para a discussão de assuntos de interesse público.

6 Echo chamber é um ambiente onde uma pessoa só encontra informações ou opiniões que refletem e reforçam as suas. As echo chambers podem criar desinformação e distorcer a perspectiva de uma pessoa para que ela tenha dificuldade em considerar pontos de vista opostos e discutir tópicos complicados. Elas são alimentadas em parte pelo viés de confirmação, que é a tendência de favorecer informações que reforçam as crenças existentes (trad. livre). GCF GLOBAL.What is an echo chamber? Disponível aqui. Acesso em: 10.06.2021

7 ANDRETTA, Filipe. Por falta de celular e internet, mais pobres ficaram sem auxílio, diz FGV. Disponível aqui. Acesso em: 07.06.2021

8 SOUZA, Felipe. Ensino remoto na pandemia: os alunos ainda sem internet ou celular após um ano de aulas à distância. Disponível aqui. Acesso em: 07.06.2021

9 INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA (INEP). Matrículas na educação de jovens e adultos caem; 3,3 milhões de estudantes na EJA em 2019. Disponível aqui. Acesso em: 22.06.2021

10 DIÁRIO DE NOTÍCIAS. "Democracia Morre na Escuridão", o novo slogan do Washington Post. Disponível aqui. Acesso em 10.06.2021

Pedro Gueiros
Advogado na área de Proteção de Dados e Governança do Lima = Feigelson Advogados. Mestrando em Direito Civil pela PUC-Rio.

Fernanda Paes Leme
Doutora e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Professora Titular de Direito Civil do Ibmec-RJ. Coordenadora da graduação em Direito do Ibmec-RJ. Advogada e Pesquisadora.

Thaís Saraiva
Advogada da BR Distribuidora na Gerência Cível. Graduada em Direito pelo Ibmec-RJ

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